quinta-feira, 30 de junho de 2011

Comunicado da Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude

A Presidência da recém-criada Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude emitiu um comunicado no dia de hoje, 30, dirigido aos jovens, dirigentes adultos e assessores dos Movimentos Eclesiais, Novas Comunidades, Pastorais da Juventude e Congregações.
Leia abaixo a íntegra do comunicado.
Caros jovens, dirigentes adultos e assessores dos Movimentos Eclesiais, Novas Comunidades, Pastorais da Juventude, Congregações
É grande nossa alegria em poder saudá-los neste mês dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, ainda contagiados pela vibração do tempo pascal, pela solenidade de Pentecostes e Corpus Christi, momentos ricos de fortalecimento da fé e de nosso compromisso eclesial.
O Documento 85 da CNBB - Evangelização da Juventude - destacou a importância da valorização dos diversos grupos que atuam junto aos jovens. A partir de então, temos motivado para que em todas as dioceses se organize o Setor Juventude como um importante espaço de comunhão da riqueza que Deus têm nos proporcionado em vista desta missão.
No encontro com os Bispos Referenciais, realizado em março, após uma longa reflexão e partilha sobre a realidade da juventude nos dezessete regionais da CNBB chegou-se à conclusão da importância de termos uma equipe de Jovens que represente a pluralidade de expressões de trabalho juvenil eclesial em nosso país. Essa coordenação nacional será a referência principal para a pastoral juvenil na Igreja do Brasil e nos representará nas instâncias internacionais, principalmente no CELAM e no Pontifício Conselho para os Leigos. Ela está sendo composta pelos quatro jovens secretários das Pastorais da Juventude, por dois jovens de Movimentos Eclesiais, por dois jovens de Novas Comunidades e por dois jovens ligados às Congregações que possuem este carisma. A sua organização e seu acompanhamento estarão sob a responsabilidade direta dos Assessores Nacionais, Pe. Carlos Sávio e Pe. Toninho.
Para este primeiro grupo foram chamados os seguintes jovens:
•    das Novas Comunidades: Diogo Victor Rocha (Shalon) e Adriano Gonçalves (Canção Nova)
•    das Congregações Religiosas: Alex Bastos (Franciscanos) e Félix  Fernando Siriani  (Salesianos)
•    das Pastorais da Juventude: Francisco Antonio Crisóstomo de Oliveira  (PJ), Monique Cavalcante Benevent (PJE), Eric Souza Moura (PJMP), Josiel Ferreira (PJR)
•    dos Movimentos Eclesiais: Renato Conte Rocha (ENS) e  Lisiane Griebeler (RCC)
A coordenação terá a responsabilidade de garantir o protagonismo juvenil na organização nacional e o espirito de unidade das diversas expressões de juventude do Brasil. Detalhes da identidade e missão dessa coordenação serão posteriormente delineados. A articulação e as consequentes despesas serão por conta da Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude.
Que o amor transbordante e rejuvenescedor do Coração de Jesus abençoe a generosidade das diversas expressões de juventude que têm se colocado generosamente a serviço da Evangelização.
Atenciosamente,
Dom Eduardo Pinheiro da Silva
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Juventude
P. Carlos Sávio da Costa Ribeiro
Assessor Nacional da CEPJ
P. Antonio Ramos do Prado
Assessor Nacional da CEPJ

Pedro e Paulo: colunas da Igreja

 A celebração da Solenidade de Pedro e Paulo nos dá ocasião para aprofundar o nosso amor à Igreja e a nossa missão aos povos. Em ambos vemos a nossa missão de discípulos missionários.

Pedro e Paulo aparecem como anunciadores do Evangelho para os povos, fundadores de comunidades cristãs e testemunhas de Cristo até o martírio. A festa de hoje associa-os na fé em Cristo e na fundação da Igreja de Roma. Com especial atenção e alto valor teológico, o autor dos Atos dos Apóstolos enfatiza a sintonia entre Pedro na prisão e a comunidade cristã (At 12,1-11, primeira leitura): "Da Igreja subia fervorosamente a Deus uma oração por ele" (v. 5). A libertação milagrosa de Pedro da prisão o torna, então, livre para outros horizontes missionários.
São Paulo, na prisão, faz um balanço de sua vida (2Tm 4,6-8.17-18, segunda leitura), dá graças ao Senhor que esteve perto dele e deu-lhe força para que ele pudesse "levar a cumprimento o anúncio do Evangelho a todos e as gentes o aceitassem" (v. 17).
O serviço missionário de Pedro, dos apóstolos e de todos os cristãos funda, necessariamente, as raízes na experiência de uma chamada e correspondida no amor. "Eu sei em quem eu confiei", afirma Paulo, sem hesitação (2 Tm 1,12). Pedro vai gradualmente crescendo na confiança e no abandono ao seu Mestre. Pedro vai além da opinião corrente, para acolher a novidade de Jesus: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (v. 16). Essa resposta ultrapassa a compreensão humana (da carne e do sangue), porque é o resultado de uma revelação do Pai (v. 17). Então, Jesus, em um clima de profunda abertura, revela a Pedro e aos outros discípulos o seu projeto para uma nova comunidade, sua Igreja, que vai durar para sempre (v. 18). Depois da paixão e morte de Cristo, a fé de Pedro, em Cristo, é total: "Senhor, Tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo" (Jo 21, 17).
Apesar das dificuldades e resistências contra esses textos de Mateus e João, o plano de Jesus em relação à Igreja subsiste no tempo, de acordo com a tradicional interpretação das três metáforas: a pedra (v. 18), as chaves (v. 19) e o binômio ligar-desligar (v. 19), que são a confirmação pós-pascal a Pedro do seu serviço de apascentar, no amor, o povo da nova aliança (cf. Jo 21,15 s). Para Jesus, que é  "o Senhor e o Mestre" (Jo 13, 14), que "não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida" (Mateus 20, 28), a autoridade é dada a Pedro e à Igreja para um serviço ao povo de Deus, em uma diaconia do amor sem fim.
O Concílio nos dá a dimensão teológica e missionária desse projeto: "Em cada época e toda nação é agradável a Deus aquele que o teme e age com justiça (cf. At 10, 35). Mas Deus quer santificar e salvar os homens, não individualmente, e sem qualquer vinculação mútua, mas quer transformá-lo em um povo "(LG 9). De fato, "a Igreja peregrina é missionária por natureza" (AG 2). Porque "existe para evangelizar" (EN 14). Não é secundário o fato de que Jesus fale de seu projeto estando presente em um território pagão (região de Cesaréia de Filipe), em um contexto geográfico semelhante ao da mulher cananeia: esses fatos narrados por Mateus demonstram o caráter universal da missão de Cristo e da Igreja.
A liturgia deste dia nos convida a refletir sobre a fidelidade e testemunho dos dois pilares da Igreja. Pedro mostra-nos as chaves do reino, primeiro príncipe dos apóstolos. Ouvir a sua confissão, que agora pertence a nós como seguidores da mesma fé. Sentimo-nos como a fonte da nossa alegria pertencer a Cristo, a fonte da qual ele bebeu a mesma fé, o compromisso de também nos colocarmos como testemunhas. É também um dia de ação de graças a Deus, a Cristo Jesus pelos seus apóstolos, os fundadores da Igreja, nossa mãe. O que há para dizer na história da Igreja até os nossos dias, quando se vive um percurso onde as fragilidades humanas foram suplantadas pela força do Espírito. Quando em nossas escolas, universidades e livros a história é escrita excluindo a colaboração dos cristãos e até mesmo condenando a missão da Igreja, este momento de nossa liturgia é a hora de, mesmo reconhecendo as fragilidades históricas de nossas comunidades, olharmos com confiança para a missão desempenhada pelos seguidores de Cristo na construção da civilização do amor.
Temos a certeza de que ainda estamos apoiados sobre a rocha, que é o próprio Cristo, e sobre a Pedra, que é a fé do Apóstolo Pedro e de seus sucessores, e hoje do Romano Pontífice, o Papa Bento XVI. As portas do inferno, mesmo quando se manifestaram com violência contra nós, não prevaleceram. A promessa de Cristo é realizada em sua plenitude. A história de Pedro, no início fraco, arrogante e com medo, se torna depois corajoso e sem medo de dizer a verdade e a morrer como testemunho da sua fidelidade a Cristo. Isso se tornou substancialmente a história de nossa Igreja e de muitos cristãos.
Foi determinante nesse árduo caminho a contribuição de Paulo, convertido na estrada de Damasco, o Apóstolo dos gentios. Ele primeiro atravessou as fronteiras do mundo judaico para anunciar a mensagem da salvação aos gentios. A segunda leitura de hoje soa como um testemunho alegre que Paulo confidencia a seu amigo e colaborador Timóteo: "Quanto a mim, meu sangue está para ser derramado em libação e é chegado o momento de partir. Combati o bom combate, terminei minha carreira, guardei a fé. Agora eu só tenho a coroa da justiça que o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia, e não só a mim, mas também para todos aqueles que esperam a sua vinda ".
Ver espalhado em libação o seu sangue é a suprema aspiração do Apóstolo, após a labuta dura de seu intenso apostolado. Ele anseia ao martírio por querer estar totalmente assimilado a Cristo e, assim, dar o supremo testemunho de fidelidade e amor. Esses dois traçam, de modo diverso, o caminho da Igreja e de todos nós: fracos como Pedro antes de Pentecostes, porém fortalecidos depois da vinda do Espírito Santo. Nós, perseguidores do Senhor como Saulo, mas depois tranfigurados pela graça. Quem sabe se estamos também  nós realmente prontos e dispostos a dar nossas vidas para Cristo?
Embora no Brasil a Solenidade de Pedro e Paulo tenha sido transferida para o Domingo, no entanto, no dia de 29 de junho celebramos também os sessenta anos de nosso Papa Bento XVI, sucessor de Pedro, o doce Cristo na terra. Rezemos por sua missão!

 Dom Orani João Tempesta, O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro - RJ

terça-feira, 28 de junho de 2011

DIA NACIONAL DA JUVENTUDE


O Dia Nacional da Juventude (DNJ) deste ano que propõe o estudo e a celebração do tema “Juventude e Protagonismo Feminino” e o lema ”Jovens mulheres tecendo relações de vida”. O DNJ busca inspiração no encontro de Jesus com a Mulher Samaritana (Jo. 4, 1-42).

Divulgado o programa de viagem do papa Bento XVI durante a Jornada Mundial da Juventude



A Sala de Imprensa da Santa Sé divulgou no último sábado, 25, o programa oficial da viagem do papa Bento XVI a Madri (Espanha), por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) que acontecerá na capital espanhola, de 16 a 21 de agosto. Uma das novidades do programa será a confissão de alguns jovens com o papa. Bento XVI chegará à capital espanhola na quinta-feira, 18 de agosto. Ali fará o seu primeiro discurso no aeroporto internacional de Barajas.
Às 19h30, do dia 18, presidirá a celebração de acolhida dos jovens na Praça de Cibeles onde fará o seu segundo discurso em território espanhol.
Na sexta-feira, 19, Bento XVI iniciará seus trabalhos às 7h30 com uma missa privativa, na Capela da Nunciatura Apostólica em Madri. Às 10h, realizará uma visita de cortesia aos Reis da Espanha, no Palácio de La Zarzuela, de Madri. Às 11h30 presidirá um encontro com jovens religiosas no “Patio de los Reyes de El Escorial”.
Às 12h o papa presidirá um encontro com os jovens professores universitários na Basílica de San Lorenzo del Escorial. Às 13h45 almoçará com um grupo de jovens no Salão dos Embaixadores da Nunciatura.
Às 17h o Santo Padre participará de um encontro oficial com o presidente espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, na Nunciatura. Logo em seguida, às 19h30 presidirá a Via Sacra com os jovens na Praça de Cibeles.
Para o sábado, 20, está programada a confissão de alguns jovens da JMJ, nos Jardins del Buen Retíro. Às 10h presidirá uma missa com os seminaristas na Catedral de Santa María la Real de la Almudena de Madri.
Às 12h45 almoçará com os cardeais da Espanha, os bispos da província de Madri e o séquito papal na residência do arcebispo de Madri e presidente da Conferência Episcopal Espanhola, cardeal Antônio Maria Rouco Varela.
Às 17h o papa se encontrará com os membros do Comitê Organizador da JMJ Madri 2011, na Nunciatura. Às 19h40 visitará a Fundação Instituto San José de Madri onde pronunciará um discurso.
Às 20h30 presidirá a Vigília de Oração com os Jovens no Aeródromo de Quatro Ventos em Madri aonde pronunciará um discurso.
No domingo 21 de agosto, o papa Bento XVI presidirá a missa de encerramento da 26ª Jornada Mundial da Juventude, às 9h30, no Aeródromo de Quatro Ventos, logo depois rezará com os presentes a Oração Mariana do Angelus.
Às 12h45 o papa almoçará com os cardeais da Espanha. Às 17h00 se despedirá dos presentes e, às 17h30, presidirá um Encontro com os voluntários da JMJ no Pavilhão 9 do novo centro de exposições Madrid.
Às 18h30 a cerimônia de despedida no Aeroporto Internacional de Barajas, de Madri, onde fará seu último discurso em solo espanhol. Seu avião deverá decolar às 19h em direção a Roma.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

FESTA DE CORPUS CHRISTI

A quinta feira 23 de junho foi a festa de Corpus Christi, o Corpo e o Sangue de Cristo. A celebração começou pontualmente às 8h30 com a participação de todas as comunidades. A missão foi na comunidade São Pedro, com procissão pela Av. Amazonas até a comunidade São Judas Tadeu. Agradecemos a todas as pessoas que ajudaram na celebração queremos parabenizamos especialmente as ministras e ministros extraordinários da sagrada comunhão. 















quarta-feira, 22 de junho de 2011

Juventude será o tema da CF em 2013

Fraternidade e Juventude. Este será o tema da Campanha da Fraternidade de 2013. A escolha foi feita no dia 15 de junho pelo Conselho Episcopal Pastoral, que está reunido desde ontem na sede da CNBB.

O tema foi proposto pelo Setor Juventude da CNBB, que recolheu cerca de 300 mil assinaturas junto aos jovens do Brasil. O lema será escolhido na próxima reunião do Consep. 
O Setor da Mobilidade Humana da CNBB apresentou e defendeu o tema do tráfico de pessoa humana e o trabalho escravo. Outros temas foram apresentados, mas não receberam votos.
Esta será a segunda Campanha da Fraternidade sobre a Juventude. A primeira foi realizada em 1992 com o lema “Juventude, caminho aberto”.
A escolha dos temas da Campanha da Fraternidade é feita com antecedência de dois anos.

A eucaristia e o 'amor primeiro'

Estamos na semana da festa de Corpus Christi, celebração litúrgica do "corpo de Cristo entregue e do sangue derramado por nós". É a solene comemoração do amor do Filho de Deus, que deu a vida para nos salvar.

1) Na Quinta-Feira Santa recordamos a última ceia, na qual Jesus instituiu o Sacrifício da Nova Aliança e a selou com seu próprio sangue, aceitando a morte violenta na cruz. O apóstolo João faz a apologia desse "amor primeiro" pelo qual Jesus Cristo -antes de qualquer resposta de nossa parte- entregou-se a Deus pai por nós (1 Jo 4,8). A ênfase litúrgica é colocada no amor de Cristo por nós. "Não há maior amor do que dar a vida pelo amado" (Jo 15, 13).

2) Na festa do "corpo de Cristo" louvamos a Deus pelo grande dom da eucaristia. Um aspecto primordial nessa celebração é a resposta da nossa parte à doação do salvador. "Deu a vida por nós", diz são João, que conclui: "Também nós devemos dar a vida pelos irmãos" (1 Jo 3,16). Amor com amor se paga. Assim, a mensagem e o significado do "corpo entregue de Cristo" é a descoberta de que, ao amor gratuito e "primeiro" de Deus para conosco, deve corresponder o nosso "amor primeiro" aos irmãos: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amo" (Jo 13,35). Entrar em comunhão com Cristo pela eucaristia é imitar o divino salvador e comprometer-se em empenhar-se a fim de que todos tenham vida.

3) Em cada celebração eucarística, estamos pedindo a Deus que nos auxilie a cumprir o mandamento da nova lei, amando "primeiro" -com plena gratuidade- aos irmãos, a começar dos mais necessitados. A eucaristia é, assim, fonte de doação fraterna e tende a se expressar em gestos de solidariedade e partilha, lançando, ainda nesta vida, as bases para um tipo novo de sociedade, marcada pela justiça, concórdia e paz.

4) Concentra-se, portanto, na eucaristia um enorme potencial de doação e serviço ao próximo, nascido do mandamento do amor, que deveria dinamizar cada um de nós e a comunidade cristã para atender às necessidades espirituais e materiais do nosso povo. Nessa perspectiva insere-se o trabalho de evangelização como forma de aproximação mais pessoal, como visitas domiciliares, roteiros de reflexão para grupos de famílias, catequese crismal para os jovens, cursos de teologia para leigos, preparação e acompanhamento de casais, diálogo ecumênico e inter-religioso.

Na mesma vontade de servir vão as comunidades descobrindo como ir ao encontro das situações de injustiça social e pobreza. Crescem a consciência da cidadania e o compromisso político como forma qualificada do amor cristão. Entre as iniciativas imediatas mais frequentes, intensificam-se as atividades da Pastoral das Crianças, os cuidados para deficientes, enfermos e idosos. Recente é o método de atendimento em família aos portadores de HIV. Várias comunidades, neste ano, criaram bancos de emprego, recebendo pedidos e habilitando candidatos. Há união de esforços para construção de casas em mutirão, assentamento de famílias, organização de trabalhos artesanais e distribuição de alimentos, roupas e remédios.

São formas de expressar a fraternidade cristã e de promover o bem comum que nascem do zelo em imitar o coração de Jesus realmente presente na eucaristia. O corpo entregue e o sangue derramado de Cristo permanecem para sempre como o grande exemplo de amor a ser seguido. São também o alimento que nos fortalece a fim de sermos capazes de cumprir a missão de tornar visível no mundo de hoje o amor primeiro que o Espírito Santo em nós infunde.
Dom Luciano Mendes de Almeida, SJ
Artigo de dom Luciano Mendes de Almeida (falecido em 2006), publicado na Folha de S.Paulo, em 5 de junho de 1999.

Igreja celebra a festa de Corpus Christi

A Igreja celebra amanhã, 23, em todo o mundo a festa de Corpus Christi ou do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. A festa remonta ao século XIII e foi instituída pelo papa Urbano IV. Chamam a atenção, em muitos lugares, os tapetes coloridos feitos nas ruas para a procissão com o Santíssimo Sacramento.
Segundo o padre italiano Augusto Bergamini, no livro “Cristo, festa da Igreja – O Ano Litúrgico”, a festa de Corpus Christi “é produto da devoção eucarística medieval ocidental” e surgiu para afirmar a presença real de Cristo na Eucaristia “contra os erros de Berengário de Tours”, sendo  estendida a toda a Igreja pelo papa Urbano IV em 1264.

De acordo com Bergamini, a reforma do Vaticano II deu uma denominação mais completa à festa ao mencionar não apenas o Corpo, mas também o Sangue de Cristo

Missa de Corpus

Amanha, 23 de junho teremos a missa do "CORPO DE CRISTO" às 8h30 na comunidade São Pedro, com procissão até a comunidade São Judas onde teremos a benção final com o Santíssimo. Venha participar!!!

Novela um Tal Jesus, capítulo 85 a 96


85
O PATRÃO FOI VIAJAR



Naquela tarde, Rufina havia ido ao mercado e suas crianças brincavam na rua de cabra cega. Quando Jesus entrou na casa de Pedro, a avó Rufa estava sozinha, cuidando de Tático, o menorzinho de seus netos.

Rufa: Dorme, meu pequenino, nana, nenê... hmmm.
Jesus: O que foi, vó Rufa?
Rufa: Psss!... Fale baixo, moreno, que ele acaba de dormir... Com tanto alvoroço como sempre por aqui, ele tem um sono de passarinho, coitado...
Jesus: Bem, vovó, o que me conta de novo?
Rufa: Sim, eu já lhe dei um ovo, mas ele não quis comer. Este pequenino está sem apetite.
Jesus: Não, vovó, eu lhe perguntei como andam as coisas por aqui...
Rufa: Ai, meu filho, fale mais alto que não estou ouvindo nada!
Jesus: Estou perguntando o que você me conta da...
Rufa: Eu lhe digo que esta é uma casa de loucos, Jesus. E o mais louco de todos é o Pedro, esse meu genro.
Jesus: Por que você diz isso, vó Rufa?
Rufa: Por que? E você ainda pergunta? Ai, meu filho, eu não sei com que tipo de gente você se meteu... Agora que estamos sozinhos... Eu acho que entre esses amigos que você arranjou  há mais de uma ovelha negra...
Jesus: Você acha, vó Rufa?
Rufa: Olhe só para esse Mateus, para citar um... Não é porque ele seja publicano, isso seria de menos, é que ele é um coitado Jesus, um fracassado... e Natanael, o carequinha... Não vou com a cara dele... E o Tomé então, o ga..ga...gago... Humm! Você tem cada traste nesse baú!
Jesus: Você acha mesmo, vovó?... Olhe que as pessoas podem surpreender...
Rufa: Não, eu não quero que prendam essas pessoas... Tanto assim não precisa, mas...
Jesus: Eu disse que as pessoas têm suas surpresas, vovó Rufa.  E há muita gente que precisa de uma oportunidade para fazer algo que valha a pena... Escute... Era uma vez um homem muito rico que precisava viajar...

Patrão: Epa, onde estão meus capatazes? Quero os três aqui antes do pôr-do-sol... Quero falar com vocês antes de partir...

Jesus: E eles foram falar com ele...

Levi: O que o senhor manda, patrão?
Patrão: Levi, você já deve ter ouvido falar que eu vou viajar por uns tempos... Pois bem, pegue isso... Deixo com você cinco mil denários....Vamos ver que negócio você vai fazer para aproveitá-los bem...
Levi: Não que eu estou querendo me incensar, patrão. Mas pode estar certo de que o senhor está deixando esses denários em boas mãos... Vai tranqüilo, que este seu capataz é mais esperto que uma raposa com fome!

Jesus: E entrou o capataz seguinte...

Patrão: Venha cá, Jeú... Tome, são para você...
Jeú: O que é isso, patrão?
Patrão: Deixo com você dois mil denários, contados e sonantes. Trabalhe com eles. Tira disso um bom lucro. Quando voltar acertaremos as contas. De acordo?
Jeú: Totalmente de acordo, patrão!
Patrão: Pense em algum negócio e...
Jeú: Nem precisa dizer, patrão! Entre uma pestanejada e outro, já tenho uma idéia que... aiaiii! O senhor vai ver tudo o que vou ganhar com esse dinheiro...!

Jesus: Chegou a vez do terceiro capataz...

Patrão: Aqui estão, Matatias... mil denários... Pegue-os, são seus.
Matatias: Mas... Mil denários?... Para mim?
Patrão: Sim, para você, para você, para quem mais seria? Você não é o terceiro capataz da minha fazenda?
Matatias: Mas, patrão, eu...
Patrão: Isto lhe parece pouco?
Matatias: Não, não, pelo contrário... Puff... E o que eu faço com tanto dinheiro?
Patrão: Ponha-se a negociar com ele! Comprar, vender, lucrar! Enquanto estou fora quero que administre uma parte do meu dinheiro, o mesmo que Levi e Jeú... Está claro ou não?
Matatias: Bem, claro... quer dizer, não tão claro... mas... puff... Tentarei fazer o melhor possível, patrão.

Jesus: Em poucos dias, Levi, o primeiro capataz, o que havia recebido cinco mil denários, que era astuto e bom comerciante...

Levi: Eu comprei de vocês os cavalos por trezentos denários. É isso. Depois você me devolveu cinqüenta das ferraduras que eu lhe havia vendido, mas como eu lhe adiantei cento e setenta e cinco, agora só tenho que lhe pagar a metade do que está faltando, isto é...
Um homem: Espere, espere, Levi... Ontem você me deu vinte e cinco...
Levi: E outros vinte e cinco hoje, são cinqüenta. Mas os outros cinqüenta das ferraduras e menos os cento e setenta e cinco que foram somados ao pagamento de cem que você havia descontado quando eu lhe dei os cinco denários dos cravos...

Jesus: Jeú, o segundo capataz, que havia recebido mil denários, estava pregando um grande letreiro na porta de sua casa...

Jeú: “Empréstimos a dez por cento”... Sim, sim, isso vai ser o máximo... As pessoas me conhecem bem e logo vão encher minha casa... Para ser um bom prestamista é preciso ter o olho aberto e a mão fechada. Para mim não falta nem uma coisa, nem outra... Bom, pensando bem, o que me falta para qualquer negócio? Rá, rá...!

Jesus: Enquanto isso, Matatias, o terceiro capataz que havia recebido só mil denários, já estava há sete dias sem pregar o olho...

Matatias: E se eu experimentasse no comércio de Dom Célio?... E, mas esse gordo não simpatiza comigo. Não, melhor nem perguntar a ele... Puff... Comprar, então? Mas, comprar o que?... Azeitonas?... E se elas acabam estragando...? Não tire isso da cabeça, Matatias. Quem compra, depois tem que vender, e para vender é preciso ter simpatia e... e eu sou um cara sem graça. Ahuummm...!

Jesus: O tempo correu e deu quatro voltas ao redor daquela terra. E quando já se haviam passado muitas luas, o dono da fazenda regressou de sua viagem...

Patrão: Êpa, onde estão meus capatazes?! Venham, venham os três, quero vê-los agora mesmo!

Jesus: Logo depois Levi, o primeiro capataz, se apresentou...

Levi: Meu senhor! Como foi de viagem?
Patrão: Muito bem, Levi, muito bem. E como foram os negócios?
Levi: Aí está, meu senhor! Conte, conte... cinco mil o senhor me deu, outros cinco mil fui eu que consegui...
Patrão: Bom trabalho, meu rapaz!
Levi: Eu já havia dito ao senhor que tudo iria... mmm!, como mel pela garganta. Cada um sabe do que é capaz, caramba... Eu sou como os gatos: não há muro que não pule!

Jesus: E depois, entrou Jeú, o segundo capataz...

Patrão: E para você, como foram as coisas?
Jeú: Melhor do que essa minha cabeça imaginou, patrão! Eu sou um sortudo, sabe... Veja só... foram dois mil denários, não é mesmo? Pois eles deram uma boa cria: aí o senhor tem outros dois mil...
Patrão: Bom trabalho, meu rapaz!

Jesus: E, finalmente, apareceu Matatias, o terceiro capataz...

Matatias: Aí está o seu dinheiro, patrão...
Patrão: Vamos ver... oitocentos... novecentos... mil. Mas, quanto eu lhe dei, Matatias?
Matatias: Isto aí, patrão, mil denários. Está tudo aí, até o último centavo. Nem um a mais, nenhum a menos...
Patrão: Mas, não combinamos que eu lhe dava esses denários para você tirar proveito deles e conseguir mais?
Matatias: Veja só, patrão, combinar, nós combinamos. Mas eu disse para mim mesmo: Matatias, bronco do jeito que você é, se for negociar, vai perder tudo em duas semanas. Melhor guardar e... e bem, fiz um buraco na terra e escondi tudo até hoje.

Jesus: Matatias estava com as orelhas vermelhas de vergonha e tremia da ponta do cabelo até o dedão do pé. Uma vez mais, como sempre, sentia na boca o sabor do fracasso...

Matatias: Eu não sirvo para nada, patrão. Os colegas na escola riam de mim, porque eu era sempre o último... Minha mãe também dizia: você nasceu torto, Matatias, e não haverá vento que o endireite... O senhor sabe melhor do que ninguém, patrão: eu não sirvo para nada...

Rufa: É bem o que eu dizia. Que esse rapaz não serve para nada. E, além disso, não quer fazer sua parte. É um irresponsável, um frouxo e um molóide!
Jesus: Está bem, vovó Rufa, está bem. Matatias era muito pouca coisa. Mas o patrão, não. O patrão era um sujeito generoso, tinha coração de sobra. Por isso, a história não acabou por aí...

Patrão: Não sirvo para nada! Não sirvo para nada! Quanto mais você repete isso, mais acredita e mais se afunda! Pelo amor de Deus, Matatias. Escute bem: na próxima vez eu lhe arrancarei as orelhas se você não inventar alguma coisa para fazer render o que você tem...
Matatias: Próxima vez... mas, o senhor me daria uma outra oportunidade, patrão?
Patrão: Sim, eu vou lhe dar. Porque você pode ir pra frente. Você pode fazer algo que valha a pena, claro que pode...

Jesus: Algum tempo depois, o dono da fazenda teve que ir novamente em viagem. E voltou a chamar seus três capatazes. A Levi, o astuto comerciante, confiou outra vez cinco mil denários. A Jeú, o hábil prestamista, deu dois mil. E ao infeliz Matatias, como antes, entregou mil...

Patrão: Negociem com este dinheiro até que eu volte. Trabalhem duro e com ânimo! Adeus!

Jesus: Desta vez a viagem do patrão foi mais curta. E quando já havia passado um par de luas, estava de regresso na fazenda. Em seguida mandou chamar seus três capatazes...

Patrão: O que você está dizendo, Levi?
Levi: O senhor já vai entender, meu patrão. Desta vez que quis fazer as coisas com mais calma, compreende?... Não há pressa, disse para mim mesmo, você é mais esperto que o próprio diabo e o caso foi que...
Patrão: ... que você não fez nada. Que confiou demais no seu gênio, não? Parece mentira, Levi, com tantas coisas que poderia ter feito... e não fez nada.

Jesus: E depois entrou Jeú, o segundo capataz...

Jeú: Ahuuummm...! e aí está o lucro...
Patrão: Como? Somente três moedas?... Como foi que ganhou tão pouco?
Jeú: Bem, patrão, a vida se complicou, sabe... Ahuummm!... As coisas já não estão como antes...
Patrão: Você é que não é como antes. Também se cansou. Também caiu no sono e dormiu sobre a própria fama...

Jesus: Finalmente, chegou Matatias, correndo e com todos os cabelos revoltos...

Matatias: Patrão, olhe, conte... Você me deu mil, tenho outros mil! Ganhei mil denários, veja só! Eu consegui, patrão!
Patrão: Eu tinha certeza de que você ia pra frente, Matatias. Tinha certeza.
Matatias: E foi isso que me empurrou, patrão. O senhor pôs tanta confiança em mim, que eu sentia como se tivesse duas asas nas costas. Tinha medo, sim, mas me lembrei do que o senhor me disse: você pode fazer, Matatias, você pode fazer.
Patrão: E você fez!
Matatias: Eu me lancei. Puff! Fechei os olhos e fui comprar tomates. E depois os troquei por lã. E com a lã, montei uma oficina e o negócio não foi tão mal, o senhor está vendo... ganhei mil denários, patrão!
Patrão: Você trabalhou muito bem, Matatias. Foi valente com pouca coisa. Agora vou lhe dar mais dinheiro e mais responsabilidade. E, de novo, você irá em frente. Porque quem sabe ser fiel no pouco, também saberá ser no muito...

Jesus: Está vendo, vó Rufa, as pessoas com suas surpresas... O que foi? Não gostou da história?
Rufa: Sim, Jesus, gostei. Mas acho que ainda não acabou, não é mesmo?
Jesus: Como não acabou, vovó?
Rufa: Está na cara que não, porque se esse patrão deu uma segunda oportunidade a Matatias, também dará uma terceira para esse par de dorminhocos que se cansaram antes do tempo, não acha?
Jesus: Sim, vovó, creio que você tem razão. Deus sempre nos dá uma nova oportunidade. Não duas nem três vezes... Sempre.


A parábola “dos talentos” é, como a das virgens prudentes, a do ladrão que chega de noite e a do patrão que regressa inesperadamente, uma parábola “de crise”. Isto é, foram parábolas contadas por Jesus principalmente para sacudir as consciências dos dirigentes e sacerdotes a quem Deus iria pedir rigorosas contas do que haviam feito, ou melhor ainda, do que haviam deixado de fazer pelo povo. As primeiras comunidades cristãs transformaram depois essas histórias em chamados catequéticos à responsabilidade dos cristãos, para que estivessem alertas e “negociassem” bem com seu tempo, sua vida e suas possibilidades, para quando chegasse o juízo de Deus.

Assim geralmente foi entendida a parábola dos talentos: uma chamada à responsabilidade. No entanto, a sociedade técnica e eficacista em que vivemos -  ou se não vivemos, é a que mostram marcadamente os meios de comunicação – tornam perigosa na atualidade uma apresentação literal desta parábola. Poderia parecer que Deus prefere os mais espertos, os mais intrépidos, os negociantes mais audazes. E como de fato, essa imagem do homem de negócios que prospera e sabe acumular dinheiro é privilegiada na sociedade capitalista, a autêntica mensagem do evangelho poderia ser totalmente desvirtuada. Diante de uma transcrição literal, poder-se-ia também interpretar que os menos dotados, os indecisos, os complexados não são aceitos por Deus. E é evidente que para muitíssimos pobres, por causa da contínua exploração e dependência em que têm vivido, custa-lhes tomar iniciativas, lançar-se em alguma tarefa responsável, ser criativos. É por tudo isso que esta original chamada à responsabilidade contida na parábola – o ser ativo em negociar – complementa-se neste episódio com outra importante dimensão da responsabilidade: não instalar-se na própria segurança, não dormir sobre os lauréis. Os talentos, como freqüentemente se chamou a soma entregue pelo patrão aos seus capatazes, são uma medida de peso que oscila – cada talento – entre 26 e 36 quilos, sejam de prata ou de outro. Em geral, um talento equivale a 1.000 denários. Para se fazer uma idéia aproximada do dinheiro que isso poderia representar, é preciso lembrar que a diária de um camponês ou operário era de um denário.

No tocante à conduta cristã, esta parábola é um chamado à responsabilidade, no tocante a Deus, a história quer ressaltar a infinita capacidade de confiança que Ele põe no homem e sua também infinita paciência com nossas falhas e nossas limitações. É a confiança que os pais põem em seus filhos que os faz crescer. Quando uma criança é ainda pequena, um pedaço de carne, necessitada de tantos cuidados, os pais já a amam. E esse carinho faz com que a criança aprenda a viver. Um órfão nunca cresce igual a um menino que tem proximidade com seus pais. Crescendo e amadurecendo, chegará o dia em que a criança será um homem e se tornará independente de seus pais. Pela confiança que nele puseram, alcançará um dia sua liberdade. Com Deus acontece algo semelhante. Deus se compadece da fraqueza humana, nunca condena, sem deixar uma porta aberta, sempre dá uma oportunidade. Quer que vivamos. Se soubermos descobrir a profundidade desta confiança sem limites, iremos crescendo e seremos livres diante dele.

Somente a confiança nascida do carinho consegue descobrir as qualidades que uma pessoa tem e que às vezes estão escondidas. Mas isso não acontece só ao nível pessoal, mas também estruturalmente, ao nível de sociedade. Somente em uma sociedade organizada na justiça e na fraternidade, descobrir-se-á para que serve cada um, quais são seus valores, qual a missão que melhor pode desempenhar. E isto se consegue – da mesma forma que o patrão da parábola – dando oportunidades a todos. Uma das maiores injustiças da organização social de nossos países é a desigualdade tão tremenda de oportunidades que há entre os seres humanos. Desde o momento da concepção e em todos os níveis – médico, alimentício, cultural, de habitação, de diversão, de trabalho – uns poucos têm tudo e a grande maioria tem apenas a oportunidade de superar os níveis infra-humanos da vida. Tudo isto é contrário ao projeto de Deus, que quer igualdade entre todos os seus filhos. E se há um plano onde a igualdade entre os homens pode e deve ser uma realidade é precisamente este: o da igualdade de oportunidades.

(Mt 25, 14-30; Lc 19, 11-27)
86
O SANGUE DOS GALILEUS



Naquele inverno Jerusalém se vestiu de branco, com neve sobre as muralhas e sobre os tetos da casas. Era o mês de Kisleu, quando nosso povo comemora, com alegria e com lâmpadas acesas, a dedicação do Templo e a purificação do altar. Jesus e alguns do grupo subimos à capital durante a festa. E, como sempre, hospedamo-nos no povoado próximo de Betânia, na taberna de nosso amigo Lázaro...

Lázaro: ...É isso mesmo que vocês estão ouvindo, amigos. Aconteceu ontem mesmo, um pouco antes de vocês chegarem. Eram dois rapazes galileus. Estavam no Templo, oferecendo uma ovelha em sacrifício. Então, entraram os soldados romanos, o agarraram ali mesmo e, zaz! de um pontapé só, os jogaram na Torre Antônia.
Maria: Estavam hospedados aqui com a gente, os coitados... Suas roupas e coisas ainda estão no quintal...
Lázaro Um é filho de um tal de Rubens, de Betsaida. Ao outro chamam Nino. Sua mãe é de Coroazim.
Jesus: E o que eles fizeram, Lázaro?
Lázaro: Quem sabe, Jesus? A vida dos presos está pendurada por um fio de aranha. Depende do capricho de Pôncio Pilatos. Vejam vocês, o grande canalha não respeitou o Templo nem o sacrifício que estavam oferecendo...
Jesus: A história se repete. Os romanos agora riem de nós do mesmo jeito que antes riram os gregos...

Durante a dominação grega, nos tempos do cruel Antíoco Epifanes, duzentos anos atrás, os estrangeiros haviam saqueado o Templo de Jerusalém e profanado o altar dos sacrifícios. Depois das primeiras vitórias dos irmãos Macabeus, nossos antepassados realizaram grandes cerimônias de expiação. E, desde então, todos os anos, à chegada do inverno, celebrávamos aquela festa da Dedicação...

Maria: Ei, Lázaro... Marta... vocês!
Lázaro: O que foi, Maria? Alguma notícia?
Maria: Sim, o coxo Saul me disse que vão julgar os dois rapazes galileus na Torre Antônia. E que Pilatos vai mostrá-los no pátio, diante de todo mundo...
Judas: Quando será isso, Maria?
Maria: Agora, pela manhã, Judas. Se formos depressa, chegaremos a tempo...
Lázaro: Vamos lá, companheiros!

Lázaro, suas duas irmãs e nós, saímos juntos da taberna. Em poucos minutos ganhamos o casario de Betfagé, subimos a ladeira do monte das Oliveiras, atravessamos a torrente do Cedron, escorregadia por causa da neve que havia caído e entramos na cidade de Jerusalém. Muita gente se apinhava pelas ruas. Pouco a pouco, à custa de cotoveladas e empurrões, fomos abrindo caminho até chegar em frente à Torre Antônia... Nas ameias ondulavam as bandeiras amarelas e negras de Roma... Sobre a escadaria, uma gigantesca águia de bronze nos lembrava que nossa pátria estava sob o domínio de uma nação estrangeira...

Um homem: O julgamento é ali!... Corram, o governador já está saindo!

Na parte de baixo da Torre Antônia havia um pequeno pátio lajeado, onde Pôncio Pilatos, o governador romano, julgava publicamente os presos e pronunciava as sentenças...

Pilatos: Quer dizer então que vocês nunca aprendem? O que esperam que eu diga?... Estão proibidas as reuniões clandestinas!
Uma mulher: Meu filho não estava fazendo nada, governador, meu filho não estava reunido com ninguém!
Pilatos: Este seu filho e seu amiguinho estavam conspirando contra Roma. E os conspiradores eu esmago como piolhos, estão me ouvindo, como piolhos e pulgas!

Pôncio Pilatos, o governador de Jerusalém e de toda a região sul de nosso país, era um homem alto e robusto. Trajava uma toga de linho branco e sandálias trançadas. Tinha o cabelo cortado ao estilo romano e na boca um eterno esgar de desprezo contra nós judeus...

Mulher: Governador, meu filho é inocente! Estava no Templo!
Um homem: E o Templo é um lugar sagrado!
Pilatos: O Templo é uma toca de ratazanas. E meus soldados se encarregam de apanhar os ratos que querem esconder-se nesse bueiro.
Mulher: Governador, eles não estavam conspirando! Eles estavam oferecendo um sacrifício, derramando o sangue de uma ovelha sobre o altar de Deus!
Pilatos: Ah, é? E a troco de quê estavam fazendo isso?... Pois o sangue de seu filho e o do outro Galileu vão logo se misturar ao sangue desta ovelha!... Soldados, tragam-me essa dupla de rebeldes agora mesmo!
Um soldado: Imediatamente, governador!

Fez-se um silêncio tenso enquanto os guardas romanos saíram do PATIO e se dirigiram aos fossos da Torre Antônia onde os presos esperavam a sentença. Pouco depois voltaram empurrando com lanças os dois jovens galileus apanhados no dia anterior dentro do Templo... O primeiro era bem moreno. Tinha o cabelo revolto e a túnica feita de remendos. O outro, mais baixo, escondia o rosto entre as mãos amarradas. Tremia como se tivesse febre e se podia ver as costas destroçadas pelos açoites...

Mulher: Tenha um pouco de piedade, Pôncio Pilatos, perdoa-os! Será que o senhor não tem coração?... Não lhe dói ver uma mulher chorando?...Perdoa meu filho, perdoa-o!
Homem: Clemência também para o outro rapaz!
Pilatos: Não há perdão para os rebeldes. Roma é uma águia e ninguém escapa de suas garras. E vocês, judeus xucros, quando voltarem para seus povoados depois da festa, contem aos demais o que agora verão com seus próprios olhos...

Pôncio Pilatos olhou-nos a todos de um modo burlesco e levantou sua mão encrespada para da a ordem faltal...

Pilatos: Degolem-nos!
Mulher: Não, não...!

Dois soldados da guarda do governador agarraram os jovens galileus e os derrubaram sobre o úmido lajeado. Outros dois se aproximaram, desembainhando suas espadas... e de um golpe fizeram rolar as cabeças ainda imberbes dos rapazes... Um alarido de espanto saiu de nossas bocas. A mãe de um dos justiçados gritava enlouquecida, e o pelotão de soldados teve que cerrar fileiras para conter a avalanche da multidão... Mas Pôncio Pilatos permanecia indiferente...

Pilatos: Tragam-me um pouco de sangue.

Então um soldado, pegou um jarro, o aproximou dos corpos das vítimas e o encheu com o sangue que saía aos borbotões dos pescoços decepados... Depois o entregou ao governador romano que esperava de pé...

Pilatos: Este será meu sacrifício. Irei derramar o sangue desse par de xucros sobre o altar deste Deus, ainda mais xucro, de vocês judeus. Escutem bem, rebeldes: o único Deus que tem poder está sentado em Roma. O imperador Tibério é o único Deus verdadeiro. Reina sobre todos vocês e mistura o sangue dos filhos de Israel com o sangue das ovelhas e dos cães. Viva César!
Um homem: Maldito seja, Pôncio Pilatos!. Que algum dia esse sangue caia sobre sua cabeça!.

O desconcerto foi muito grande. Muitos de nós tapamos os olhos com horror enquanto o governador, fortemente guardado, atravessou pelo passadiço que unia a fortaleza romana com o Templo. Pilatos se apresentou sem nenhum respeito diante do altar dos holocaustos e derramou ali, em meio aos risos de seus soldados, o sangue ainda quente daqueles jovens galileus...

Outro homem: Profanação! Pôncio Pilatos profanou o altar! Rasguem a túnica, irmãos!
Outro homem: O governador zomba de nós. Há pouco, colocou as bandeiras de César nos átrios do Templo! E agora isto!
Um velho: Se os macabeus levantassem a cabeça, empunhariam outras vez a espada da vingança!
Homem: Vingança, sim, vingança! Juro por meu povo que haverá vingança!

A partir desse dia, multiplicaram-se em Jerusalém os protestos, os distúrbios populares e os assassinatos. Um grupo de zelotas tentou fazer um túnel até à torre de Siloé, um pequeno arsenal junto à fonte de água de Ezequias, onde os romanos guardavam espadas e lanças... Mas os alicerces da torre estavam podres e a construção veio abaixo inesperadamente... No desmoronamento morreram várias famílias galiléias que tinham seus casebres junto à torre.

Lázaro: A situação está muito ruim, Jesus...
Jesus: E ficará pior, Lázaro. Dizem que Pilatos vai aumentar a vigilância.
Judas: Então, com toda certeza aumentará o número de presos e crucificados.
Maria: Se vocês já sabem disso, por que continuar se metendo em confusão, por que?
Judas: Porque já não há quem agüente isso, Maria. Esses malditos estrangeiros não têm o direito de pisar em nós desse jeito.
Maria: Mas, Judas, também não é direito derrubar um torre na cabeça desses dezoito inocentes, caramba! Quebrem os ossos de Pilatos se quiserem e puderem, mas, o que vocês ganham fazendo essas coisas? Não percebe que mataram esses pobres infelizes que não tinham culpa de nada, heim?
Lázaro: Fazem isso para provocar Pilatos.
Maria: Sim, e Pilatos matando para provocá-los. E assim, estamos como estamos, já não se pode andar pela cidade por puro medo de que lhe cravem um punhal em qualquer esquina. Não, não, não, eu não quero sabe nem de uns nem de outros.
Jesus: Sim, Maria tem razão. Pilatos é um sanguinário. E alguns dos que lutam contra ele se tornaram tão sanguinários quanto ele. Mas, quem os ensinou a ser assim? Quem pôs para rodar a pedra da violência? Aí está um assunto que merece ser pensado, não acha? Os de cima semearam ventos. Agora estão colhendo tempestades dos de baixo. E se isto continuar assim, se todos nós não mudarmos, logo nos afogaremos em um dilúvio de sangue.

A festa daquele inverno se tornou amarga pelos crimes, pelo medo e pela vigilância romana. Foi durante aquela semana da Dedicação em que um grupo de judeus rodearam Jesus em um dos arcos do Pórtico de Salomão...

Um homem: E você, nazareno, o que acha de tudo isso? Até quando você vai nos deixar em suspense, caramba?!
Outro homem: Se você é o Messias que esperamos fale claramente, e não percamos mais tempo!
Um velho: Aqui está fazendo falta alguém com coragem, que dê a cara por seu povo!
Todos: Sim, é isso, é isso!
Jesus: Não, amigo. O que está fazendo falta é um povo que aprenda a dar a cara por si mesmo! Quando a criança é pequena, a mãe lhe dá a mão para que não tropece. A criança cresceu, se fez homem, e tem de caminhar por suas próprias pernas.
Judas: De que criança está falando, Jesus?
Jesus: De nós mesmos. Já é hora de fortalecer os joelhos e levantar a cabeça. A libertação está em nossas mãos! Não temos que esperar por ninguém! O Messias já está aqui, entre nós! Onde dois ou três homens lutam pela justiça, aí está lutando o Messias! Sim, Deus soprou sobre os ossos secos e os ossos se uniram e o povo reviveu e se pôs de pé! O Messias é um grande corpo! Em um corpo há cabeça e mãos e pés! Mas todos os membros têm um mesmo espírito e todos são necessários! Todos juntos temos de quebrar o jugo que nos oprime e levantar juntos o bastão de comando! E todos juntos construir uma nova Jerusalém e escrever um nome novo em suas muralhas: “Casa de Deus, Cidade de Homens Livres”! E nela não haverá mais violência, nem a violência do lobo que mata a ovelha, nem a violência da ovelha que se defende do lobo! Transformaremos as espadas em enxadas e as grades dos cárceres em relhas de arado!
Um homem: É assim que se fala! Viva o Messias de Deus!
Todos: Viva, viva!
Um soldado: Ei, galileus, dispersando, vamos lá! Não sabem que é proibido reunir-se? Vamos, vamos, saiam daqui se não quiserem amanhecer com a cabeça cortada como aqueles dois!

Os soldados romanos tentaram prender Jesus. Mas conseguimos escondê-lo. E nos dispersamos entre as pessoas que lotavam o Pórtico de Salomão. E naquele mesmo dia empreendemos viagem até Jericó, porque a situação em Jerusalém estava se tornando cada vez mais difícil para nós.


Na palestina há somente duas estações no ano: verão e inverno. Também se fala em Calor e Frio, semeadura e colheita. O mês de Kisleu corresponde ao nono mês do ano, equivalente aos nossos meados de novembro, meados de dezembro. Como Jerusalém é uma cidade situada no deserto, no inverno chega a baixar muito a temperatura e não é raro nevar.

A Festa da Dedicação do Templo caía em dezembro e durava oito dias. Esta festa, que fazia referência à consagração do Templo nos tempos do rei Salomão, havia se renovado à época dos Macabeus (uns cento e sessenta anos antes de Jesus). Nos tempos evangélicos, o povo de Israel comemorava nesta festa a vitória dos Macabeus, guerrilheiros nacionalistas, sobre os gregos selêucidas, invasores do país, e a purificação do Templo e a construção de um novo altar depois das profanações que o cruel rei selêucida Antíoco Epifanes havia feito no lugar santo. Celebrava-se também como festa da luz, recordando que, ao dedicar o Templo, se havia tornado a acender o santo candelabro de sete braços. Em Jerusalém, para esta festa, acendiam-se de novo as tochas usadas na festa das Tendas de Inverno. As celebrações tinham também um sabor messiânico, como as da colheita. Na atualidade, os judeus acendem solenemente nestas festas a “hanuká” (candelabro com oito luzes, uma por cada dia da festa).

Roma dominava suas colônias através de funcionários enviados como representantes de César às províncias do império. Essas províncias era de três tipos: as senatoriais (governadas por pró-cônsules romanos, que eram trocados anualmente), as imperiais (tinham à frente governadores, legados ou procuradores, sempre romanos) e outros territórios que eram províncias, mas eram governadas por nativos, que serviam aos interesses econômicos e políticos do império. Este último era o caso da Galiléia governada por Herodes. A Judéia – com sua capital Jerusalém - foi província “imperial” de forma definitiva desde o ano 6 depois de Jesus. Tinha à frente um governador, tropas romanas a ocupavam militarmente e a administração estava nas mãos de funcionários também romanos. Pôncio Pilatos foi governador da Judéia desde o ano 62 até 36. Vivia habitualmente na cidade costeira de Cesaréia – residência oficial de governadores – e se transladava com suas tropas especiais a Jerusalém para as festas, pois esses eram dias mais propícios para os distúrbios e mobilizações populares. A classe sacerdotal de Jerusalém, máximas autoridades religioso-políticas de Israel, estava em total conivência com o poder imperial romano representado por Pilatos.

Não corresponde à realidade histórica a imagem que uma certa tradição cristã fez de Pilatos como um homem intelectual, de uma certa estatura humana, ainda que covarde. Todos os dados dos historiadores daquele tempo – Filon, Flávio Josefo e Tácito, tanto judeus como romanos – confirmam a crueldade daquele homem, odiado pelos israelitas por causa de suas  contínuas provocações e situado em tão alto cargo por sua estreita amizade com Sejano, militar favorito do imperador Tibério. Sejano foi um dos personagens mais influentes em Roma durante aqueles anos. Conhecendo a aversão religiosa que os judeus sentiam pelas imagens, Pilatos fez desfilar pelas ruas de Jerusalém imagens do César Tibério e as colocou no antigo palácio de Herodes, o Grande. A pressão do povo o obrigou a tirá-las. Pilatos também profanou o santuário em várias ocasiões, roubou dinheiro do tesouro do Templo para suas construções etc. O texto de Lucas que serve de base a este episódio corresponde com grande probabilidade a uma destas vinganças políticas e profanações religiosas protagonizadas pelo detestado governador. Por ser a Galiléia o principal foco das correntes anti-romanas do país, Pilatos perseguia com mais sanha os galileus, sempre suspeitos para ele de zelotismo.

A Torre Antônia, situada junto ao Templo e em comunicação com os lugares mais sagrados do santuário por escadarias interiores, foi durante a dominação de Roma, sede das guarnições imperiais encarregadas de vigiar a cidade e especialmente a explanada do Templo, lugar de concentração multitudinária do povo. Na torre encontrava-se o tribunal – pretório – onde Pilatos julgava todos os acusados de rebeldia contra Roma e suas leis. Esses julgamentos não tinham nada a ver com os atuais tribunais, pela pouca justiça que havia neles. As sentenças – que nos casos de oposição ao império sempre podiam ser de morte – dependiam unicamente da vontade arbitrária do governador.

As profanações e a crueldade de Pilatos desencadearam movimentos populares de rechaço e ações violentas por parte dos zelotas, mais organizados para isso. A dominação romana opressiva, política e militarmente, e exploradora no plano econômico, gerou fortíssimos movimentos de resistência em Israel, que foi a província do império que mais contínua e iradamente se rebelou contra o poder romano, até o último levante do ano 70 depois de Jesus, em que Jerusalém foi destruída e começou o exílio judaico, que durou até nossos dias.

O tempo de Jesus foi um tempo semeado de violência dos opressores e contra-violência dos oprimidos, nas quais inevitavelmente morria pessoas inocentes, como no suposto desmoronamento da torre de Siolé, a que se refere este episódio. Existe uma violência gerada por estruturas injustas de poder. É uma violência que está nas leis, nos tribunais, em tantas desigualdades econômicas, na falta de oportunidades. Ela tem a forma de fome, exploração dos trabalhadores, falta de cultura, de higiene etc. Esta violência também toma formas repressivas de tortura e assassinato, quando encontra resistência. Há outra violência: a protagonizada pelos que, cansados de suportar a injustiça, rebelam-se e resistem, atacam e lutam. Não é justo, do ponto de vista cristão, julgar com a mesma medida estas formas tão diferentes de violência. Como exercer a contra-violência justa sem deixar-se arrebatar pelo ódio, que cega e desumaniza, como se esquivar do perigo de exercer esta contra-violência como revanche ou vingança, é um dos temas maiores que se coloca hoje.

O Pórtico de Salomão, estava situado na fachada oriental do grande pátio exterior do Templo. Nas palavras que ali dirige ao povo reunido para escutá-lo, Jesus está fazendo referência, com textos proféticos e às vezes com textos do próprio Paulo, a idéia do “Messias coletivo”. (Ez 37, 1-14; Is 2, 3-5; 9, 2-4; 11, 6; I Cor 12, 1-29 e 13-11). Desde o profeta Miquéias (Mq 2, 12-13) começa a ganhar espaço na mentalidade israelita a idéia de um messianismo pobre que vai fazendo pouco a pouco de um “resto” popular ou de todo o povo de Israel, cativo na Babilônia, o portador das promessas messiânicas do Reino (Sf 3, 11-13). Jesus, fiel a esta tradição teológica, nunca pretendeu o monopólio da ação messiânica, mas se encontrou mais a si mesmo nesse messianismo pobre (em oposição ao triunfalista).

(Lc 13, 1-5; Jo 10, 22-40)
















































87
NO GALHO DE UM SICÔMORO



De Jerusalém viajamos a Jericó, a cidade das rosas, aquela que Josué conquistou com o clamor das trombetas. Naquele inverno Jesus já era bastante conhecido em todo o país, das terras da tribo de Dan, até o deserto da Iduméia, do mar dos fenícios até as secas montanhas de Moab... Quando chegamos a Jericó, os moradores se alvoroçaram e saíram para receber-nos...

Uma mulher: Ele está chegando! O profeta está chegando!
Um homem: Viva o nazareno e abaixo os romanos!

As pessoas se apertavam por todos os lados. A duras penas conseguíamos avançar pelo caminho ladeado de árvores que uniam as velhas muralhas da cidade com a praça quadrada... Ali, na praça, ficava a sinagoga, o quartel da guarda romana e o escritório de alfândega e impostos...

Zaqueu: Que porcaria de confusão é esta?... Aqui não há quem consiga trabalhar e fazer uma conta direito!...Ei, você, rapaz, que diabos está acontecendo na rua?... Um incêndio, um casamento ou um enterro?
Um rapaz: Um profeta! O profeta dos galileus chegou, um tal Jesus de Nazaré!
Zaqueu: Era só o que faltava em Jericó. Como se já não tivemos o suficiente com João, aquele cabeludo que afogava as pessoas no rio!
Rapaz: Pois este também tem cabeleira, senhor Zaqueu!
Zaqueu: Que também será cortada, meu rapaz! Israel fabrica os profetas com uma mão e com a outra os prega na cruz!
Rapaz: Achegue-se mais para ver isso, senhor Zaqueu, parece um formigueiro transbordado! Olhe só!
Zaqueu: Bem, bem, vamos dar uma espiada!

Zaqueu precisou de um banquinho para alcançar a janela. Era um homenzinho gorducho e imberbe. Não tinha mais que seis palmos, do chão à cabeça. Desde jovem havia se dedicado ao desprezível ofício de cobrar os impostos que tínhamos de pagar ao governo romano. Sua habilidade com os números e as coisas relativas a dinheiro o haviam transformado bem depressa em chefe de todos os publicanos da região. Jericó inteira odiava Zaqueu e se vingava de seus abusos zombando de sua pequena estatura...

Um homem: Anão, anão traidor! Este seu negócio vai acabar! O novo profeta vai expulsar os romanos do país e todos aqueles que lambem o traseiro deles como você!

A cidade toda estava na rua. Quando Zaqueu saiu do escritório de impostos, os insultos choveram sobre ele...

Homem: O profeta da Galiléia vai torcer o pescoço da águia de Roma, está escutando, anão?!... Veja, desse jeito... grrr...
Zaqueu: Pois veja se ele torce antes de sábado. Você me deve cinqüenta denários, e se não pagar logo, vai para a cadeia com essa língua comprida e todo o resto.
Outro homem: Você é que vai pagar caro, sanguessuga do povo! Mesmo que você se esconda numa privada, não escapará! O nazareno o arrancará de lá e o arrastará pela praça!
Zaqueu: Continuem, continuem dormindo de boca aberta, que uma galinha vai botar dentro dela... imbecis!

Os moradores continuavam amontoados na praça, gritando e aplaudindo Jesus, que mais se distinguia naquele mar de cabeças... Zaqueu foi abrindo caminho entre as pessoas. Levava debaixo do braço o rolo de couro onde guardava os recibos, anotavas as dívidas e controlava os pagamentos alfandegários... Pouco a pouco, conseguiu distanciar-se dali, cortou caminho por entre uns barracos e se dirigiu à cômoda casa onde vivia, na outra ponta do bairro...

Zaqueu: O profeta da Galiléia... veja só... veja só... É o que sempre eu digo, este país morre de fome mas tem indigestão de profetas... E ao final, muito blá-blá-blá, e tudo continua como sempre... Muitas palavras, sim, mas as coisas não mudam com palavras... Palavras bonitas, mas cada um puxa a sardinha pro seu lado...

Antes de entrar em sua casa, Zaqueu se olhou no canal de água que atravessava a cidade... E se viu pequeno, ridiculamente pequeno... E uma vez mais se encheu de amargura...

Zaqueu: Nada muda, maldição, nada muda!... Droga de vida!

Zaqueu entrou em sua casa, deu um beijo rotineiro em sua mulher e sentou-se à mesa para comer sozinho, como sempre... Depois deitou-se para dormir um pouco... Mas o alvoroço continuava e seu sono durou muito pouco.

Zaqueu: Mas, que raios está acontecendo agora? Será que nem na minha casa posso ficar tranqüilo?
Sara: É aquele profeta que chegou ao bairro quem está alvoroçando todo mundo!
Zaqueu: Outra vez? Já não agüento esse bendito profeta... Feche a janela, mulher!
Sara: Está fechada, Zaqueu. Acontece que estão fazendo muito barulho.
Zaqueu: Pois então, abra-a!... Resultado, aqui ninguém prega o olho... Puff! Ahuuummm! Droga de vida!

Zaqueu se levantou pesadamente da cama e se aproximou da janela, subindo em um banquinho...

Sara: Você o está vendo, Zaqueu?
Zaqueu: Vendo quem?
Sara: Quem poderia ser? O profeta.
Zaqueu: E para que eu iria querer ver um profeta?
Sara: Não sei, já que você se aproximou da janela...
Zaqueu: É você que está querendo ver? Pois vai ver, vai ver, porque eu não preciso esbarrar em nenhum profeta!

A mulher de Zaqueu abriu a porta, saiu para a rua e se perdeu no meio daquele tumulto de gente que gritava e aplaudia...

Zaqueu: Às favas, com esse sujeito!... Que isca será que ele tem no anzol?... Até a Sara beliscou... Quem diria... Minha mulher correndo também atrás deste Galileu... Veja só, veja só... Deve ser um tipo especial... tem a chusma na mão... Estou começando a ficar curioso também...

Na rua, o barulho e o alvoroço cresciam...

Um homem: Diga lá, Jesus, quando é que você vai tirar os romanos do país?
Outro homem: Conte o que aconteceu em Jerusalém, profeta!
Uma mulher: Escute aqui, mocinha, veja onde põe o pé. Você acaba de pisar no meu calo!
Outra mulher: Vizinhos, olhem só aquilo, não percam essa! Rá. Rá, rá!

Quando aquela mulher de longas tranças gritou aquilo, todos nos voltamos para onde ela apontava. Trepado em um dos sicômoros do quintal de sua casa estava Zaqueu. Suas pernas curtas balançavam de um lado para outro...

Um homem: Mas, como é que esse anão conseguiu subir ali? Caramba! O grande maldito, enroscado na árvore como a serpente do paraíso!
Um velho: Quer dizer então que você também está querendo ver o profeta, heim?
Homem: Não está sabendo que o nazareno chegou para arrancar-lhe a língua, rolha de poço!
Outro homem: Desça daí, sem-vergonha! Ei, vizinhos, vamos derrubá-lo de lá!

As pessoas se esqueceram de nós e correram para o quintal da casa do publicano. Um grupo de homens rodeou o sicômoro e começou a sacudir os galhos com força... Jesus e nós também saímos correndo para lá...

Jesus: Mas, quem é esse que está na árvore?
Uma mulher: É Zaqueu, o chefe dos publicanos daqui! Um safado, um ladrão!
Um homem: Um anão traidor!
Outro homem: Abaixo os traidores. Abaixo os traidores!
Jesus: Zaqueu, desça logo, porque senão esses aqui vão descê-lo bem mais depressa.

Por fim, os moradores de Jericó, entre gritos e gargalhadas, fizeram Zaqueu cair do sicômoro. O pequeno corpo do publicano se desequilibrou e caiu no meio do quintal...

Homem: Fora, fora anão traidor!
Zaqueu: Fora da minha casa, todos vocês! Vão para o inferno!
Mulher: Só se você for na frente!

Jesus abriu caminho entre as pessoas e chegou até onde estava Zaqueu que, com a cara vermelha de raiva e vergonha, trocava insultos com seus vizinhos...

Mulher: Esmague-o como a uma barata, profeta!
Todos: Sim, sim, esmague-o!
Jesus: Escute, Zaqueu, quanto você vai nos cobrar?

Quando Jesus disse aquilo, os moradores o olharam espantados... Zaqueu também olhou Jesus com surpresa.

Zaqueu: O que você disse?
Jesus: Disse quanto vai nos cobrar? Vamos jantar aqui em sua casa... E se a noite nos surpreender, é bem capaz que ficaremos para dormir...

Um tempo depois, entramos na casa de Zaqueu. Ninguém em Jericó entendeu aquilo e criticavam Jesus, despeitados por ele ter escolhido a casa daquele homem que todos odiavam. Para nós também, que desprezávamos os publicanos e que tanto nos havia custado admitir em nosso grupo Mateus, o publicano de Cafarnaum, tornou-se difícil senta-nos à mesa de um chefe deles...

Zaqueu: Vocês são meus hóspedes, vocês mandam! Peçam o que quiserem, comam de tudo o que gostarem, que na minha casa não falta nada!
Tiago: Como vai faltar, com tudo o que você rouba?
Zaqueu: O que você disse?
Tiago: Não, nada, estou falando de abobrinhas... Na Galiléia há muitas...

Zaqueu estava contente. Sentado à cabeceira da mesa, ao lado de Jesus, seus olhos brilhavam de satisfação. Pela primeira vez, depois de muitos anos, havia convidados em sua casa...

Zaqueu: Pois é, o que eu menos esperava era por isso. Ter o profeta aqui comigo, e partir meu pão com todos vocês, amigos galileus!
Pedro: E a você vão partir as pernas, anão!
Zaqueu: Perdão, o que você disse?
Pedro: Que a carne está muito tenra, companheiro!
Zaqueu: Ah, sim, pode crer. São cordeiros dos rebanhos do outro lado do rio. Nós negociamos diretamente com os pastores moabitas, e os conseguimos bem baratos.
João: E com os impostos, saem ainda mais em conta, sem-vergonha!
Zaqueu: Você dizia que...?
João: Nada, dizia que... hoje é Segunda-feira! Rá, rá...!
Tiago: E amanhã é Terça! Rá, rá, rá!
Pedro: E depois é Quarta! Rá, rá, rá...!

O riso foi contagiando uns depois de outros como se uma mão invisível nos fizesse cócegas...  Pedro e eu nos debruçávamos sobre a travessa de cordeiro. Zaqueu também estava vermelho de tanto rir. De repente, levantou-se da mesa...

Zaqueu: Rá, rá, rá...! Ai, rá...! Pois eu digo que... que apesar de ser um anão,  vocês não têm porque partir-me as pernas... Sou anão, mas não sou surdo... As abobrinhas da Galiléia... Sim, estas mãos roubam... roubaram muito... essa é a verdade. Meus vizinhos têm razão: sou um sanguessuga, e já chupei sangue demais.

Todos nós nos olhamos sem saber o que fazer ou dizer... até que Jesus quebrou o silêncio...

Jesus: Eu lhe peço desculpas, Zaqueu. Não queríamos ofender você...
Zaqueu: Guarde as palavras bonitas, profeta. As coisas não vão mudar com palavras.

Então Zaqueu se aproximou do armário onde guardava o rolo de couro dos recibos e das dívidas. Colocou-o sobre a mesa, à vista de todos...

Zaqueu: Eu não vou falar muito. Prefiro fazer isso... Meus devedores estão livres. Aos vizinhos, contra quem tenha cometido alguma fraude, devolverei quatro vezes o roubado. E pegarei a metade do dinheiro que tenha no baú: já não é meu, é dos outros!

As palavras de Zaqueu surpreenderam a todos. A Jesus, encheram de alegria...

Jesus: Sabe, Zaqueu? Eu acredito que hoje você foi profeta em Jericó... Porque, veja, uma obra de justiça vale mais que mil palavras. Sim, as coisas mudam, quando as pessoas mudam. E, o fato é que... a salvação veio hoje à sua casa!
Zaqueu: Como você disse? Quer que lhe sirva mais vinho da casa? Mas, é claro, Jesus! Vamos, erga essa jarra!! E vocês também!!

Zaqueu encheu novamente as jarras de vinho. E continuamos comendo e bebendo na casa do chefe dos publicanos. Sem saber então estávamos anunciando o grande banquete do Reino de Deus, onde os mais desprezados ocuparão os lugares de honra.


Jericó é uma cidade situada no meio do deserto da Judéia, no centro de uma fértil planície de clima tropical. Está a 250 metros abaixo do nível do mar e a uns sete quilômetros da orla do rio Jordão. A partir das escavações feitas em 1952, chegou-se à conclusão de que Jericó é a mais antiga cidade conhecida de todo o mundo, conservando restos de muralha que remontam a Idade da Pedra. Jericó foi a primeira cidade conquistada pelos israelitas ao entrar na Terra Prometida, a mando de Josué (Js 6,1-27). Estas importantíssimas ruínas estão situadas a uns dois quilômetros da atual Jericó.

No tempo de Jesus, Jericó era uma cidade importante como lugar de passagem das caravanas comerciais que atravessavam o deserto. Por isso havia ali um escritório de certa categoria para a cobrança de impostos, à frente do qual estava um tal Zaqueu como chefe dos publicanos ou cobradores. Os impostos cobrados em Jericó iam engordar as arcas romanas, já que a cidade está na Judéia, província dominada administrativamente por Roma, (os impostos que o publicano Mateus cobrava em Cafarnaum eram para o rei Herodes). Os postos de publicanos eram concedidos pelas autoridades romanas, arrendando-os a quem dava o melhor lance. Depois, os publicanos tinham de pagar a Roma pelo aluguel por outros gastos. Era Roma quem fixava as quantidades a cobrar em termos de impostos. Sobrava pouco lucro aos publicanos, se eles fossem honestos na cobrança. Por isso, eles aumentavam as taxas arbitrariamente, ficando com as diferenças. Suas contínuas fraudes e seu colaboracionismo com o poder romano, faziam dos publicanos pessoas desprezadas e odiadas pelo povo.

O sicômoro é uma árvore muito grande, procedente do Egito, da família da figueira, que cresce na costa da Palestina e toda a planície do Jordão. É chamado também de “figueira louca”. Seu tronco dá uma madeira dura e incorruptível, que no Egito era usada para os ataúdes das múmias. Suas raízes são muito resistentes, suas folhas grossas e em forma de coração, e seus frutos, abundantes, se parecem aos figos pequenos.

Zaqueu é um dos poucos ricos – com Nicodemos e José de Arimatéia – que no evangelho são convertidos por Jesus. A conversão de Zaqueu, que se desencadeia por sua curiosidade em ver o profeta e pela acolhida que encontra nele, não foi um puro sentimentalismo nem um vago desejo de ser bom. Sua conversão não fica nas palavras ou nos remorsos de consciência: mexe com seu bolso. A quem ele defraudou devolverá quatro vezes mais do que lhes tirou. E a metade do que lhe restar, entregará aos pobres. É uma conversão bem concreta. E até “exagerada”: Zaqueu vai aplicar a si mesmo – como “penitência” por suas trapaças – a lei romana, que ordenava restituir quatro vezes mais do que foi roubado, e não a lei judaica, que era muito menos severa. Prescindirá também da norma judaica que proibia dedicar mais de 1/5 da própria fortuna aos pobres: ele dará a metade. Jesus põe em marcha esta autêntica conversão de Zaqueu com um gesto que carrega um profundo matiz teológico. Geralmente se entende que a atitude religiosa é acolher com carinho o pecador, mas sempre depois do seu arrependimento. Pensamos inclusive que Deus age da mesma forma. A atitude de Jesus desmente este critério. Jesus acolhe Zaqueu antes dele fazer penitência. O fato de querer ir à sua casa – e nada menos do que comer com ele, sinal máximo de amizade – parece inconcebível a Zaqueu. É para ele um gesto tão assombroso que lhe evidencia quem é e o que fez contra os demais ao defraudá-los. O que as iradas reprovações dos vizinhos não haviam conseguido com Zaqueu, Jesus consegue arriscando-se neste gesto de abertura sem limites. Aquele homem, desprezado por todos – e desprezando-se a si mesmo – encontra de repente sua dignidade perdida e sua vida se transforma.

Os ricos não estão excluídos do Reino de Deus. O que acontece é que a conversão, para eles, passa necessariamente pela renúncia, a continuar tendo riquezas para si mesmo. Ao descobrir a dignidade perdida no gesto de acolhida de Jesus, Zaqueu descobre também por que perdeu essa dignidade. Compreende que sua riqueza foi acumulada à custa da opressão exercida contra os pobres do povo. E não só compreende, mas age em conseqüência: renuncia o dinheiro acumulado injustamente.

(Lc 19, 1-10)






88
À SAÍDA DE JERICÓ


No meio do deserto da Judéia, no vale do rio Jordão, como um tapete verde e redondo, está Jericó, a cidade das palmeiras e das rosas, a mais antiga das cidades de nosso país...

Bartimeu: Obrigado, conterrânea! Deus lhe pague com alegria este denário...!
Uma mulher: E diga isso bem alto! Pois alegria faz falta para todo mundo! Agora, volte para casa, Bartimeu, que com isso já dá para vocês comer hoje...
Bartimeu: Não, dona, prefiro ficar aqui. Minha casa está vazia e muito sozinha. Por aqui passa muita gente. Eu não vejo seus rostos, mas... mas sinto o cheiro de suas tristezas e alegrias... e isso é viver. Deixe-me, deixe-me, prefiro ficar aqui...

À saída de Jericó, à beira do largo e empoeirado caminho que leva a Jerusalém, há muitos anos sentava-se a pedir esmolas, o cego Bartimeu. Tinha a barba salpicada de pelos brancos, mas ainda não era velho. Suas mãos, que nunca ficavam tranqüilas, seguravam um gordurento bastão...

Mulher: Bem, conterrâneo, fique com Deus!
Bartimeu: E com seus doces anjos, senhora. Que Ele lhe pague!

Bartimeu acariciou cuidadosamente o denário e o guardou no bolso. Depois, apertou com força seus escuros olhos sem visão e começou a revolver seu baú de lembranças...

Rute: Uff! Aqui está o couro, Bartimeu... Pesa mais que as tripas de uma baleia...
Bartimeu: Mas, o que você entende de baleia, sua sem-vergonha, se nem o mar você já viu? Rá, rá...! Mas eu já vi uma: você, que está ficando mais gorda que a de Jonas! Rá, rá, rá! Já nem consigo carregar você nos braços!
Rute: Ui, pare de me fazer cócegas! Rá, rá! Vamos, pare de brincadeira e vai cortar o couro. Você tem muitas encomendas pendentes...
Bartimeu: Está bem, está bem... Ajude-me aqui, mulher. Traga a navalha...

Na larga avenida de Jericó, Bartimeu tinha sua pequena oficina de curtidor. Vivia com ele Rute, uma mulher alegre e decidida, a quem amava até em sonhos. Os meses e os anos passavam. E o trabalho, o amor e os amigos enchiam de felicidade os dias de Bartimeu...

Bartimeu: Rute, mulher, passe-me a agulha...
Rute: A agulha? Não está comigo...
Bartimeu: E nem comigo...
Rute: Vamos ver, Bartimeu, vamos ver... Você é tão descuidado... Onde estará, diabos...?... Mas, está bem em cima da mezinha, homem de Deus! Se fosse uma cobra teria picado você!
Bartimeu: Onde você disse que está?
Rute: Ali, bem na sua frente, tonto...

Bartimeu estendeu seu braço até à mezinha  e, tateando, encontrou a longa e grossa agulha com que costurava as peças de couro...

Bartimeu: Já... já vou pegar...
Rute: Não... você não a viu, Bartimeu...?
Bartimeu: Não, não a vi, mulher, não a vi...

A doença correu seu caminho sem deter-se por um momento sequer. E, em poucos meses, os olhos negros de Bartimeu se fecharam à luz para sempre. Não pôde mais usar a agulha nem cortar com a navalha. Não pôde continuar trabalhando em sua oficina. Tampouco pôde escapar da tristeza e da angustia que se abateu sobre sua casa, com duas visitantes inoportunas, sempre ao seu lado, de dia sentadas à mesa, de noite deitadas entre ele e sua mulher...

Bartimeu: Rute... ei... Rute... Onde você está? Rute, mulher, onde você se meteu? Ei, Rute, Rute!!
Uma vizinha: Posso entrar, meu filho?
Bartimeu: Quem é você...?
Vizinha: Sou Lídia, a comadre de Rute...
Bartimeu: Onde ela está?... Eu acordei e... e não a encontrei. Onde está ela?
Vizinha: Já está longe, meu filho.
Bartimeu: Como já está longe?
Vizinha: Compreenda, Bartimeu... Você, desse jeito... sem enxergar... sem poder trabalhar... A moça ainda é jovem... Tem direito de recomeçar sua vida.
Bartimeu: Mas, o que você está dizendo?!
Vizinha: O que ela me encarregou de dizer-lhe... Que foi para Betânia, para a casa dos pais...
Bartimeu: Com outro homem...? Com outro homem, não é mesmo?! Com alguém que não seja cego como eu!... Diga. Não foi isso? Diga!
Vizinha: Veja bem, meu rapaz, como vocês nem mesmo tiveram filhos...
Bartimeu: Mas nós quisemos ter!... Ou será que isso não importa?
Vizinha: Bartimeu, compreenda... Com você desse jeito... Isso não era vida para ela...

Pouco tempo depois, Bartimeu teve que fechar sua oficina de curtidor. A cegueira o havia deixado sem alegria de trabalhar e sem o amor de sua mulher. Pouco a pouco, foi ficando também sem a companhia de seus amigos, que nunca mais se aproximaram dele como antes, a não ser para demonstrar-lhe uma fria compaixão...

Bartimeu: Isso não era vida para ela... Não era vida... E para mim? As poucas economias que tinha já estão se acabando. O que vou fazer sem meus olhos?... Pedir esmola! Mas, eu tenho braços fortes para trabalhar e sou jovem e... Tonto! Os cegos já não servem para nada!... É preciso que se lhes dê a mão... Se se esquecem do bastão, tornam-se como crianças... Não servem para nada... Maldito seja o dia em que nasci! Foi para isso que saí do ventre de minha mãe? Deus! Por que me fizeste ver a luz para depois me cegar?

Uns dias depois, Bartimeu, com passo vacilante, guiando-se com um bastão, foi sentar-se à beira do caminho por onde passavam os moradores de Jericó e por onde entravam os mercadores de outras cidades. E começou a pedir esmola. Depois, quando escurecia, Bartimeu voltava para sua casa fria e solitária. E, sem vontade de comer, sem vontade de falar com ninguém, deitava-se na esteira apertando os olhos mortos com os punhos cerrados...

Bartimeu: De noite... sempre de noite! Sempre será de noite!... Como era mesmo o rosto de Rute... como era? Estou me esquecendo de seus olhos... de sua boca... Já não voltarei a vê-la nunca mais... Para que quero viver então? Para nada! Ninguém precisa de mim e eu... eu não preciso de ninguém... Só quero me esquecer desse pesadelo...

Bartimeu se levantou rastejando de sua esteira e começou a tatear por todos os cantos de sua oficina vazia...

Bartimeu: No sicômoro do quintal... sim... Uma corda... Será difícil, mas será só um instante... Mais difícil é viver assim, um dia depois do outro sem esperar nada... esperando só morrer... A morte não precisará vir me buscar... Eu é que irei procurar por ela... Sim, sim... será só um instante... e tudo estará acabado! Mas, maldição, onde está a corda, onde?... Todos dirão: “ficou louco”... Que digam o que quiserem... Não, não fiquei louco... Fiquei cego, o que é pior... Estava por aqui... a corda... a corda... Onde está a corda, Deus?!! Onde?!... Foi você que a escondeu!... Ou será que foi o diabo?... Malditos seja os dois!... Nem sequer posso me enforcar?

Bartimeu tateava, de quatro, por toda a oficina procurando a corda grossa com que antes amarrava os pacotes de couro... Revolvia tudo, procurava por todos os cantos, mas não a encontrava em nenhuma parte...

Bartimeu: Maldição! Onde estará, diacho...? Onde?! Eu quero morrer!... Eu quero morrer!... Eu quero... Eu quero viver... eu... quero viver... eu quero... viver.

Bartimeu: Por que não me matei naquele dia?... Não, não foi o diabo... Agora estou certo de que foi Deus quem escondeu a corda de mim... e me meteu nos ossos a vontade de viver... Não sei como você chegou até aqui, Bartimeu, raposa velha, depois de tantos anos andando por aí aos tropeções... Mas, aqui está você, mais firme que o duro sicômoro do quintal, com um bom nariz para cheirar as rosas mais bonitas do mundo e as orelhas atentas no meio deste caminho... Isso também é viver, eu acho... E também vale a pena, caramba...!

Menino: Tchau, Bartimeu, outro dia a gente conversa mais!
Bartimeu: Ei, espere, Pituxo... Por que está com tanta pressa?
Menino: É que o profeta da Galiléia já está indo embora de Jericó...!
Bartimeu: Quem? Jesus de Nazaré?
Menino: Sim, e está vindo para cá com muita gente! Vou avisar o Gaspar para que ele venha vê-lo!

Quando estávamos indo embora de Jericó, muitos homens e mulheres da cidade saíram para despedir-se de nós...

Uma mulher: Viva o profeta da Galiléia!
Um homem: E fora os romanos e os que abusam do povo!
Bartimeu: E fora vocês que não me deixam passar, caramba, eu ainda não vi o profeta e quero vê-lo!
Uma velha: E então, Jesus, quando você voltará por Jericó?
Homem: Vamos esperá-lo para a próxima Páscoa!
Bartimeu: Eu quero ver o profeta!
Homem: Pare de gritar, cego duma figa!
Bartimeu: Eu quero vê-lo!
Mulher: Cale essa boca, Bartimeu!
Bartimeu: Eu quero vê-lo, eu quero vê-lo!
Homem: Como é que quer vê-lo, se você é cego, diacho?
Bartimeu: Então, que ele me veja... Jesus, profeta! Jesus, profeta!!
Jesus: Quem está gritando, vovó?
Velha: É um cego agitador que sempre está metido em tudo...
Jesus: Deixem-no passar... ei, vocês, digam para ele vir...
Homem: Aprontando mais uma, heim Bartimeu... Venha, passe por aqui, que o profeta perguntou por você...

O cego Bartimeu, radiante de alegria, jogou para cima seu manto de mendigo, jogou o bastão e, de um pulo só, se pôs de pé e abriu caminho entre todos até chegar a Jesus...

Bartimeu: Jesus, profeta!!!
Jesus: Estou aqui. Como você se chama?
Bartimeu: Bartimeu. Sou cego...
Jesus: E por que estava gritando?... Quer alguma coisa?
Bartimeu: Sim. Você me deixa tocar seu rosto...?

Jesus se deteve e fechou os olhos por um momento... Bartimeu levantou suas mãos até ele e tateou a fronte larga, as bochechas, o nariz, o perfil dos lábios, a barba bem cheia...

Bartimeu: Obrigado, profeta. Já haviam me falado de você, alguns diziam que você era feio, outros que era bem moço, outros que assim, outros que assado. Agora eu já faço um idéia...
Jesus: Quanto tempo faz que você é cego?
Bartimeu: Ui, já choveu muito desde então. Já passa dos dez anos...
Jesus: Então, dez anos esperando...
Bartimeu: Bom, esperando e desesperando. Certa vez quis me enforcar. Mas Deus escondeu a corda...
Jesus: E agora?
Bartimeu: Agora já estou conformado. Eu acho que a vida é bonita até com os olhos fechados. Você não acha?... Bem, então...
Jesus: Espere, Bartimeu, não vá ainda... você... você me deixa tocar em seu rosto?
Bartimeu: Você em mim? Mas você não é cego...

Jesus se aproximou e passou a mão pelos olhos daquele homem que não deixava de sorrir...

Jesus: A esperança foi seu bastão por todos esses anos... Você soube ver o mais importante, Bartimeu... Viu com os olhos do coração.
Bartimeu: E... agora estou vendo você... Não... não poder ser...! Eu estou vendo seu rosto, profeta! Eu o conhecia só de ouvir falar, mas agora meus olhos estão vendo você!

Os moradores de Jericó se apertaram contra nós e começaram a gritar, cheios de entusiasmo. E diziam que Jesus era o Messias esperado por nosso povo há tantos anos... Bartimeu chorava de alegria e nos acompanhou por um trecho quando regressamos para a Galiléia... À saída de Jericó, sobre o pó do caminho, ficou jogado o sujo manto de mendigo e o velho bastão...


No meio do deserto da Judéia, Jericó aparece como um oásis verde e fértil. Era também chamada de “a cidade das palmeiras”. Eram conhecidas e famosas as rosas de Jericó (Eclesiastes 24, 14), embora não se tenha segurança de que estas rosas sejam as flores que hoje conhecemos como tais. Alguns acreditam que se trate das adelfas, flores típicas dos climas quentes. Em todo caso, Jerico é um autêntico jardim. A fertilidade desta terra se deve à chamada Fonte de Eliseu. A tradição dizia que foi Eliseu, o profeta discípulo do grande Elias, quem purificara e tornara fecundas estas águas, antigamente salobras (2Rs 2, 14-22).

O texto evangélico dá apenas alguns dados sobre quem foi Bartimeu – embora conserve seu nome, detalhe pouco freqüente nas histórias de milagres – e sobre a origem de sua cegueira etc. Neste episódio, Bartimeu aparece como um homem que esteve a ponto de suicidar-se. Sua vida fracassada – no ofício, no matrimônio, em suas amizades – tornou-se insuportável. Tocou fundo em seu desespero e, a partir desse descer ao mais fundo do poço – aprendeu o que podia ser a esperança. O milagre que Jesus fará sobre seus olhos mortos será um sinal de que, apesar de tudo, a vida sempre tem sentido. Um sentido às vezes obscuro a descobrir, difícil de entender – isso sabem muito bem os que sofreram muito – mas um sentido que só pode aparecer se dermos tempo à vida para que ela nos mostre o que nos tem reservado.

O suicídio é um fato raríssimo na Bíblia. Aparece um só vez em todo o Antigo Testamento (2Sm 17,23). Outros casos são os dos guerreiros que se matam antes de cair nas mãos do inimigo, como aconteceu com Saul, primeiro rei de Israel (1Sm 31, 1-6), mas essas mortes têm outro sentido bem diferente do suicídio “frio”. No Novo Testamento, o único caso de suicídio é o de Judas. Pode ser que isso se deva ao grande apreço à vida característico do povo de Israel. Para os israelitas, a vida vinha de Deus e só a Deus pertencia. Viver era o destino do ser humano e sempre era melhor que a morte. Alguns livros do AT, marcados por um certo pessimismo, chegaram a afirmar que era melhor a morte que uma vida de enfermidade (Eclesisastes 30, 14-17), mas em todo caso, Israel foi um povo vitalista.

No evangelho não há uma só palavra explícita que oriente a reflexão cristã a respeito do suicídio. Mas, a partir das atitudes de Jesus e de suas palavras, podemos dizer que, em termos cristãos, não deve haver condenação do suicida. (Às vezes se lhes negaram sepultura em cemitérios da Igreja como castigo póstumo). Chega-se ao suicídio pelo desespero, pelo medo, por um forte desajuste psíquico etc. Nenhuma das causas que podem estar na base de uma decisão tão dramática, pode ser motivo de rechaço ou de condenação, pois todo esse conjunto de debilidades encontrou sempre em Jesus acolhida e compreensão.

Neste episódio, Bartimeu tem algo do Jó bíblico, personagem que se rebelou contra Deus porque considerava que suas dores era imerecidas: enfermidade, ruína, abandono por parte de seus amigos (Jó 3, 1-4; 20-23; 6, 2-4). No final do livro de Jó, ele diz a Deus as mesmas palavras que aparecem na boca de Bartimeu: “Eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora estou te vendo com meus olhos...” (Jó 42, 5). Embora devamos fugir da dor, tentar afastá-la, reduzi-la e combatê-la, para sermos fiéis à vontade do Deus da vida, às vezes não podemos escapar dela. E temos de submeter-nos às nossas limitações. Neste caso a aceitação ativa da dor, pode nos tornar mais maduros, mais tolerantes, mais compreensivos. Em uma palavra, mais sábios diante da vida. E também mais sábios diante do mistério de Deus. A dor pode servir de porta para uma nova forma de ver a realidade de Deus. Como aconteceu com Jó e com Bartimeu.

(Mc 10, 46-52; Lc 18, 35-43)






















89
OS LEPROSOS DE JENIN


Um leproso: Senhor, Deus meu, veja-me de joelhos e com o rosto colado ao chão! Lembre-se deste pobre desgraçado a quem não cabem mais feridas na cabeça! Peço, suplico e espero. Peço, suplico e espero!
Uma leprosa: Mas, o que você está dizendo, língua comprida? Acha que vai conseguir enrolar Deus com esse palavrório? Senhor, tu sabes de sobra que eu estou pior que ele! Veja, tenho mais chagas no corpo do que cabelos na cabeça!
Outro leproso: Cale-se, sarnenta, que eu cheguei primeiro! Eu comecei a rezar antes de você!
Um leproso: Peço, suplico e espero! Peço, suplico e espero!
Uma leprosa: Senhor, piedade, Senhor, piedade, piedade!

Lá nas grutas de Jenin, perto dos montes de Gelboé, viviam muitos homens e mulheres que padeciam a pior das doenças: a lepra. Não era permitido aos leprosos entrar em nenhum povoado, nem bater em nenhuma porta, nem pôr o pé na sinagoga. Por isso, quando chegava o dia de sábado, alguns se reuniam na grande caverna para rezar, pedindo saúde. Gritavam e queimavam folhas de hortelã para que a oração entrasse em Deus pelo nariz e pelas orelhas...

Um leproso: Senhor, se tu me curares, prometo nunca mais cortar o cabelo nem provar uma só gota de vinho até o fim da minha vida!
Uma leprosa: Eu irei descalça todos os meses até o santuário de Silo!
Outro leproso: Consagrarei minha vida ao teu serviço! Se tu me curares, Senhor, irei para o monastério do Mar Morto para estudar dia e noite as santas escrituras!

Enquanto os demais leprosos rezavam, Demétrio, o samaritano, entrou na gruta. Também padecia da doença...

Demétrio: Se algum dia você se curar, grande safado, procure um irmão gêmeo para cumprir a promessa!... Ei, minha gente, parem a oração e escutem-me! Acho que lá no céu está todo mundo com as orelhas em farrapos com tanta lenga-lenga. Vamos, deixem Deus descansar um pouco e escutem isso... Sabem do que eu fiquei sabendo?
Um leproso: Se você não diz, como vamos saber?
Demétrio: E se você não cala essa boca, como vou dizer? Escutem: já ouviram falar desse tal Jesus, de Nazaré?
Leprosa: E quem é esse sujeito?
Demétrio: Um profeta! Um enviado de Deus! Dizem que os anjos sobem e descem sobre a cabeça dele!
Leproso: Não estou nem aí com profetas, principalmente se vêm da Galiléia!
Leprosa: Eu penso a mesma coisa que o Tolônio. Não mexo nenhum dedinho por eles!
Demétrio: O que temos de mexer são os pés. Fiquei sabendo que ele e seus amigos estão indo para Cafarnaum. E têm de passar por Jenin.
Leproso: Pois que passem por onde acharem melhor caminho. O que isso importa para nós, Demétrio?
Demétrio: Dizem que ele curou muitos doentes. Toca neles e... plim!... ficam curados.
Leproso: Pois, da minha parte... plim!... Daqui eu não me mexo.
Outro leproso: Muito menos eu! Olhe, Demétrio, eu sei como são essas coisas. Você sai da gruta, anda quatro milhas, o calor, o cansaço, bolhas nos pés e... afinal, para quê?
Demétrio: Como para quê? Para ver o profeta, para falar com ele! Quem sabe ele nos ajuda.
Leprosa: Quem sabe ele nos ajuda! Rá! Você é samaritano, por isso é tão idiota e ainda não entendeu que nosso único remédio é nos agüentar. Nós já estamos perdidos.
Demétrio: Pois se já estamos perdidos... não perdemos nada por tentar! Vamos lá, cambada de aves de mau agouro, deixem os lamentos de lado e vamos pegar a estrada para ver esse profeta!
Leproso: Nada disso, Demétrio, nada disso.
Demétrio: Nada disso, o que?
Leproso: Que o profeta não vai passar pelo caminho de Jenin.
Demétrio: Não me diga! E como você sabe disso?
Leproso: Está na cara. Quem nasce bode não ganha barba do céu. Estou certo de que se desviarão pelo caminho de Dotan. Vamos e voltamos e perdemos a viagem.
Leprosa: Eu penso a mesma coisa que o Tolônio. Irão por Dotan.
Demétrio: Pois o que eu acho é que com um exército como vocês, até Nabucodonosor cairia do cavalo. Está bem. Fiquem aqui queimando hortelã. Pois eu vou sair agora mesmo e vou montar guarda no caminho de Jenin. Ah! E depois, não digam que não avisei!...
Vários leprosos: Não vá ainda, Demétrio, espere... nós... espere...

Apesar dos pesares, e resmungando contra Demétrio, o samaritano, os outros leprosos jogaram-se em cima os trapos negros e sujos com que se cobriam, penduraram a campainha obrigatória para que nenhuma pessoa se aproximasse deles e, depois de andar quatro milhas, se postaram no caminho que vem de Jerusalém, à entrada de Jenin...

Leproso: Fizemos muito mal em dar ouvidos ao Demétrio! Vejam só o tempão que estamos aqui esperando e... para quê?
Leprosa: Para que se desviem para Dotan, para isso!
Outro leproso: Aposto nove contra um, que nem hoje nem nunca veremos as fuças desse profeta andarilho!
Demétrio: Pois vai logo pagando a aposta, companheiro, porque... juraria que são aqueles que vêm vindo pela curva do caminho!... Não estão vendo lá em baixo?... Sim, são eles, estou seguro disso!!
Leproso: “Seguro” era o nome do meu avô e ele já está morto...
Demétrio: Mas, não estão vendo? São eles! Lá vem o profeta da Galiléia!!
Leproso: Sim, Demétrio, está certo, são eles... e daí?
Demétrio: Como e daí? Agora vamos dizer ao profeta o que está acontecendo e ver se ele nos ajuda.
Leproso: E você acha que o profeta vai perder seu tempo com a gente? Qual é, Demétrio, não suba tão alto, que o tombo será pior! O profeta passará de longe por aqui, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda.
Leprosa: Eu digo a mesma coisa que Tolônio. Quem nasce para bode...
Demétrio: Sim, já sei, não ganha barba do céu. Mas a barba que me interessa é a daquele galileu... Ei, Jesus, ajude-nos, faça alguma coisa por nós! Ei, Jesus, venha cá um momento!

Demétrio, o samaritano, fazia sinais com os braços, gritando e pulando para que o víssemos. Atrás dele, olhando-nos com desconfiança, os outros leprosos esperavam...

Demétrio: Eles nos viram! E estão vindo para cá!... Ei, Jesus, profeta!... Mas, o que acontece com vocês? Vão ficar assim, como pintos molhados? Vamos, minha gente, aviem-se, façam alguma coisa!
Leprosa: E o que quer que façamos, Demétrio?... Vamos vem, diga-me, o que este profeta pode nos dar, heim? Como vai nos ajudar?... Não alimente ilusões e não terá desenganos.
Leproso: Eu acho a mesma coisa. Convença-se, Demétrio, quem nasceu bode...
Demétrio: Sim, sim, já sei! Mas você ganhou do céu barba, bigode e rabo! Vão pros infernos! Nem o santo Jó agüentaria vocês!

Jesus, Pedro e eu vínhamos caminhando na frente dos outros e, quando vimos aquele grupo de leprosos, nos detivemos como a um tiro de pedra...

Jesus: Ei, amigos, quem são vocês? De onde vêm?
Leprosa: Agora vai nos mandar fazer gargarejos...
Demétrio: Das grutas de Jenin! Somos leprosos!... Pode fazer alguma coisa por nós?
Jesus: Pois, veja só... Não temos nada... Nem comida, nem dinheiro...!
Leproso: Não lhe disse? Tempo perdido e bolhas nos pés.
Jesus: ... Mas, vão até os sacerdotes e apresentem-se diante deles!... Quem sabe não terão sorte!... Adeus!
Leproso: “Quem sabe, quem sabe”...  Esse profeta não sabe de nada e passa a bola para os sacerdotes!
Leprosa: “Vão até os sacerdotes e apresentem-se a eles!” Puah!
Outro leproso: Bem, um homem prevenido vale por dois. Eu trouxe algumas tâmaras para a viagem de volta. Então, até mais ver!
Demétrio: Mas, venham cá, bando de idiotas, se o profeta nos tivesse mandado ir descalços até o santuário de Silo ou subir ao monastério do Mar Morto, não teríamos feito?
Leproso: Bem, nesse caso...
Demétrio: Pois ele nos pediu algo mais fácil: ir até os sacerdotes de Jenin. Vamos lá ver o que acontece.
Leproso: Ver o que acontece! Já me cansei de ver o que acontece e não acontece nada! Peço, suplico e espero... e não acontece nada!
Demétrio: Se o profeta disse isso, por algum motivo será!
Leprosa: Claro que será por algum motivo! Para gozar da gente! Você não viu a cara dele?... Eu não vou a parte alguma.
Leproso: Muito menos eu!
Outro leproso: Nem eu.
Outro leproso: Mas, Demétrio, você acha que com esta ferida na perna posso me apresentar para que o sacerdote me examine?

Quando Tolônio, um dos leprosos, levantou os trapos que cobriam as pernas, todos os demais ficaram de boca aberta...

Leproso: Olhem... Olhem!!... Minha carne está rosada como um bumbum de nenê!
Leprosa: Não é possível!... Deixe-me ver...
Outro leproso: E você também, Martina!... E você, Godolias!!
Outro leproso: E eu!!... E o Demétrio também!...

Os leprosos de Jenin choravam e gritavam de alegria quando se deram conta de que as chagas e as manchas da pele haviam desaparecido sem deixar rastro...

Leproso: Pelas benditas barbas do meu bode, aqui aconteceu algo de muito grande!
Leprosa: Algo nunca visto! Um verdadeiro milagre!
Demétrio: Eu não lhes disse, cambada de fuxiqueiros? O profeta da Galiléia nos curou sem sequer tocar um dedo na gente! Venham, companheiros, vamos depressa, não se demorem, corram...!
Leproso: Aonde vamos, Demétrio? Aonde você quer nos levar agora?
Demétrio: Aonde estiver o profeta! Tanto faz se está em Jenin ou Cafarnaum, vamos procura-lo.
Leprosa: Mas, Demétrio, você ficou louco? Procura-lo para quê?
Demétrio: Como para quê? Para agradecer-lhe, diacho!
Leproso: Deixe disso, Demétrio. A gente não vai conseguir encontra-lo.
Leprosa: Está na cara que não. Não vê que ele é um profeta?
Demétrio: E o que isso tem a ver?
Leprosa: Que os profetas voam. Lembre-se de Elias, que se foi pelo ar montado num carro de fogo. Não vamos encontra-lo.
Outro leproso: Eu também acho. Esse já desapareceu...
Outro leproso: Vem, vocês que continuem discutindo... esse aqui que vocês estão vendo vai se mandar para a taberna do Bartolim, porque já faz três anos que não passa um gole sequer pela minha garganta!
Outro leproso: Eu digo o mesmo que o Tolônio. Hoje vou amanhecer dentro de um barril de vinho!
Leprosa: Pois eu vou cumprimentar minha família que vive em Betulia!
Outro leproso: Vocês que me encontrem na casa da Marta e da Firmina, uma da perna grossa, outra da perna fina! Rá, rá, raí!...

Mas Demétrio os deixou e saiu correndo pelos caminhos...

Demétrio: Ei, vocês, por acaso não viram por aqui um moreno barbudo, um tal Jesus, de Nazaré?!
Um homem: Não, amigo, não vimos não... Espere, mas você não é o leproso Demétrio que... espere...
Demétrio: Escute, senhora, não passou por aqui um grupo de galileus, e junto com eles não ia um que chamam de Jesus, o profeta...?
Uma velha: Não, meu filho, não vi ninguém... eu também estou andando atrás de um netinho meu que se perdeu...

À altura de Jarod, depois de muito correr e perguntar, Demétrio por fim nos encontrou...

Demétrio: Obrigado, Jesus, obrigado...!
Jesus: Escute, e os outros que estavam com você?
Demétrio: Bem, eles... eles só se lembram de Deus quando trovoa, sabe?

Demétrio, o samaritano, ficou um bom tempo conosco na pousada de Jarod. E todos juntos brindamos por ele; por seus nove companheiros que não voltaram; e por Deus, que faz chover sobre bons e maus e levanta o sol sobre os agradecidos e também sobre os ingratos.


A palavra original hebraica com que se denominava a doença da lepra é “sara’at”, que deriva da expressão “ser castigado por Deus”. A lepra era sempre considerada como um terrível castigo divino. A “impureza” religiosa que o doente contraía por isso, o fazia ser repudiado pelo resto da comunidade. E assim, os leprosos viviam em lugares afastados, eram totalmente proibidos de entrar nas cidades e quando iam pelos caminhos deviam avisar para que ninguém se aproximasse. Como a doença era considerada também incurável, a única esperança que restava a esses doentes era um milagre. Em todo caso, se a cura se realizasse, um sacerdote tinha de comprova-la e certificar com sua palavra que era verdadeira (Lv 14, 1-32).

Dotan e Jenin são duas pequenas cidades separadas por uns oito quilômetros, situadas no caminho que vai da Judéia para a Galiléia passando por terras samaritanas. Mas dos 10 leprosos que sofrem e rogam na gruta de Jenin, só Demétrio é samaritano. Há aqui um símbolo interessante. O mais desprezado de todos eles (por ser leproso e ainda por ser samaritano) é o único que manterá a confiança do grupo (por sua fé acontecerá o milagre para todos) e também o único que saberá agradecer o que fizeram por ele.

A atitude fatalista diante da vida paralisa o homem. Se realmente tudo “está escrito”, se o destino é algo contra o qual ninguém pode, nada mais resta que esperar o momento em que ele se cumpra, seja para o bem, seja para o mal. Demétrio lutará contra o pessimismo de seus companheiros e os porá em movimento. Isso os aproximará de Jesus, abrirá possibilidades em suas vidas. Uma falsa religião plantou no coração de muitos homens e mulheres uma convicção fatalista diante da vida. Mas essas idéias não são certas: somos livres. Depende de nós o rumo que tomar nosso viver. E se por acaso não somos livres, se a nossa vida é esmagada pela opressão e pelo sofrimento, a atitude fatalista (“sempre foi assim, e assim sempre será”) só fará perpetuar essa situação. Não é o destino que a perpetua, mas a nossa passividade.

Neste episódio, é mostrado como os leprosos vão desanimados nessa busca de Jesus, como desconfiam dele, como o criticam e como, no final, não sabem agradecer. E, apesar de tudo isso, Jesus opera um sinal de cura em favor deles. Este milagre é, pois, um sinal da gratuidade dos dons de Deus. Deus não nos dá a vida, a saúde, as oportunidades porque lhe agradecemos mais ou menos ou porque somos bons. Ele dá porque nos ama. Seu amor é desinteressado, não espera em troca nem incenso nem aplauso.

Lucas, o único evangelista que escreveu este pitoresco e “incrível” relato dos dez leprosos curados, pretendeu elaborar um esquema de catequese sobre como deve ser nossa atitude para com Deus e o fez contando uma parábola sobre o agradecimento. É importante uma atitude de agradecimento, não porque Deus “necessite” dele para nos estender sua mão, mas porque ser agradecidos nos ajuda a sermos retamente humilde e nos faz mais irmãos uns dos outros. Há quem “só se lembra de Deus quando trovoa”. E age de forma semelhante com os demais: sempre está pronto para pedir, nunca para agradecer. Esta postura indica, evidentemente, um certo egoísmo, enquanto que ser agradecidos nos tira de nós mesmos, nos traz conhecimento sobre nossas limitações e nos ensina uma alegria que os mesquinhos nunca conhecerão e que tem muito a ver com a solidariedade humana, com o compartilhar, com o saber-nos apoiados e sustentados pelos outros, responsáveis uns pelos outros, colaborando em uma tarefa comum.

(Lc 17, 11-19)
































90

O MILAGRE DE JONAS




Os rumores do que Jesus havia feito em Jerusalém e nas cidades da Judéia rolaram como pedras de montanha. As notícias corriam de boca em boca, cresciam, misturavam-se com lendas, eram discutidas nos mercados e nas caravanas. As pessoas diziam muitas coisas de Jesus. Que brotavam raios de sua cabeça, como em Moisés. Que Elias lhe havia emprestado o carro para viajar mais rápido de um lugar a outro. Que os milagres saíam de suas mãos como mariposas.

Velha: Vamos, comadre, depressa! Disseram-me que os doentes ficam curados só com a sombra do profeta quando passa! Vamos!

A fama de Jesus crescia feito pão fermentado. E cresciam também os grupos de pessoas que se punham a caminho à procura do novo profeta de Israel para pedir-lhe ajuda.

Homem: Abaixe a cabeça, companheira, com esse monte de enfeite que você tem não dá ver nada!
Mulher: Escute aqui, não comece de novo que eu estou esperando desde o meio-dia!

Naquele inverno, quando regressamos a Cafarnaum, os moradores foram nos esperar à entrada do povoado, perto da Porta do Consolo.

Velha: Ei, Jesus, como foram as coisas lá na capital?  O que vocês fizeram desta vez?
Jesus: O que sempre fazemos, anunciar o Reino de Deus.
Velha: Sim, sim, e o que mais vocês fez?
Jesus: Só isso, vovó, falar para as pessoas, abrir os olhos dos peixes pequenos para que não se deixem comer pelos peixes grandes.
Homem: O que a velha quer saber é se você abriu os olhos de algum cego!
Mulher: É isso mesmo, quantos milagres você fez nesta viagem, Jesus?

Quando aquela mulher falou dos milagres, a multidão que nos rodeava se apertou ainda mais. Muitos doentes vieram arrastando suas muletas ou deitados em macas de galhos trançados. Outros tapavam suas feridas com trapos amarrados nas pernas e nos braços.

Homem: Bah, de fato, o que importa mesmo não é o que você fez em Jerusalém, mas o que vamos fazer agora, não é mesmo? Olhe só todos esses infelizes. Estão esperando que você faça alguma coisa por eles.

Os doentes olhavam para Jesus com uma súplica nos olhos e estendiam suas mãos para poder tocar em sua túnica. Então Rebeca, a fiandeira, abriu caminho no meio de todos e conseguiu se pôr à frente dele. Tinha a perna direita muito magra e retorcida e se apoiava em um bastão para não cair.

Mulher: Cura-me! Faça com que eu volte a caminhar. Cura-me, profeta, cura-me!

Jesus olhou para a mulher e permaneceu calado.

Mulher: Cura-me! Você pode fazer isso! Sim, sim, já me sinto melhor! Sinto um calor por todo o corpo.

Em seguida, a mulher levantou as mãos para o céu, soltou o bastão que lhe servia de muleta e gritou para que todos ouvíssemos...

Mulher: Estou curada, estou curada!
Homem: Curada? Rá! Com este grito é bem capaz  que se quebraram suas duas pernas!
Ferreiro: Eu aqui, Jesus, cura-me! Eu estou doente há mais tempo que ela! Saiam da frente e deixem-me passar!

O ferreiro Túlio dava socos no ar para poder chegar até Jesus e pedir-lhe um milagre. Tinha nas costas uma corcunda como a de um camelo.

Ferreiro: Vamos, faça um milagre, endireite-me. Vamos, o que está esperando? Cura-me!

Jesus o olhou com pena, mas tampouco disse uma palavra sequer.

Ferreiro: O que acontece com você? Será que já não tem os poderes de antes? Por que não me cura? Estou perguntando, por que não cura?
Mulher: Você abriu os olhos de um tal Barnabé, lá pelas bandas de Betsaida! Eu também sou cega! Eu também quero ver! Ou será que aquele sujeito era melhor do que eu?
Homem: Você sabe fazer isso! Em Corozaim você curou Serápio, que não falava nem ouvia!
Velha: Jesus, olhe estas chagas e tenha pena de mim.

Os doentes começaram a impacientar-se com Jesus, que continuava calado, com os olhos baixos. A algazarra ia crescendo. Foi então que apareceu o rabino Eliab.

Eliab: Outra vez nos encontramos, nazareno. Só que agora não é na sinagoga, mas aqui, em plena luz do sol.
Jesus: Você também está doente, rabino?
Eliab: Não, o Altíssimo me concedeu boa saúde. E me concedeu também inteligência para descobrir os lobos que se cobrem com pele de cordeiro.
Jesus: Então repare nas minhas orelhas, para ver se são de lobo.
Eliab: Sim, foi isso mesmo que vim fazer, porque já estou cansado de ouvir histórias. Todo Israel fala de você. Uns quantos loucos o chamam de profeta. E outros ainda mais atrevidos dizem que você é o próprio Messias que nosso povo tem esperado por tantos séculos. Muito bem. Você é ou não é? Fale. Não fique calado. Quem cala, consente.
Jesus: A árvore se conhece pelo fruto. Olhe o que eu faço e saberá quem sou.
Eliab: Vamos esclarecer as coisas, nazareno. As escrituras dizem que quando Deus envia um profeta, coloca em suas mãos o poder de fazer milagres.
Homem: E Jesus tem esse poder, ora se tem!
Mulher: Jesus fez muitos milagres, rabino Eliab. Não se lembra do aleijado Floro? Colocaram-no pelo teto e ele saiu andando com as pernas mais retas que um remo.
Eliab: Ouvi falar sobre isso. Mas não vi. E se o olho não vê, o coração não crê.
Homem: E aquele fruteiro, rabino Eliab, que tinha a mão seca? Jesus a esticou bem diante de você na sinagoga.
Eliab: Água passada não move moinho. Deixem pra lá o fruteiro, o aleijado Floro e todos os que andam dizendo coisas passadas. Hoje estamos aqui. Eu quero ver um sinal hoje. Não é muito o que estou pedindo, nazareno. Olhe só para estes. Pode escolher. Cura quem você quiser. Mas, dê-nos uma prova clara, que não caiba dúvidas. Faça um milagre aqui, diante de todos nós. E todos creremos em você. Eu, em primeiro lugar.

Jesus continuava com os olhos baixos, cravados na terra. Logo depois, agachou-se e arrancou do chão umas quantas ervas. Colocou-as na palma da mão e soprou. A brisa do lago levou para o ar as pequenas folhas.

Jesus: A vida do homem é como a erva. Brota em um dia e com um sopro se acaba. Nossas vidas estão nas mãos de Deus. Só Deus tem poder para nos curar.
Mulher: Deus e você, que é um profeta!
Todos: Um milagre! Um milagre!
Homem: Ou será que para os outros há milagre e para nós não? Então, por que isso?
Velha: Depois de esperar tanto tempo, não vamos voltar com as mãos vazias, caramba!
Todos: Sim, um milagre! Faça um milagre!
Jesus: Escutem bem. Para vocês só haverá um milagre, um só!
Homem: Sim, sim, mesmo que seja só um! Vamos, faça-o!
Todos: Eu aqui, cura-me!
Mulher: Eu cheguei primeiro! Eu aqui, Jesus, eu aqui!

Os doentes rodearam Jesus. O rabino Eliab conseguiu afastar-se um pouco e ficou esperando, com um olhar cheio de desconfiança, o milagre que se ia produzir.

Jesus: Só um milagre, vizinhos. O milagre de Jonas. Somente este.
Homem: E o que acontece agora com Jonas?
Jesus: Acontece o mesmo que aconteceu, quando Deus o chamou e o enviou para profetizar na grande cidade de Nínive...

Voz de Deus: Jonas, filho de Amitai, levante-se e vai a Nínive. Os ninivitas são homens de mãos violentas. Pisam no fraco, abusam do órfão e atropelam as viúvas no tribunal. Vai e grite pelas ruas de Nínive que se as coisas não mudarem, eu vou fazê-las mudar. Estenderei minha mão e defenderei a causa dos pobres. E serei inflexível contra os que maltratam meu povo.
Jonas: Convertam-se! Convertam-se todos! Esta cidade está edificada sobre a injustiça! Se as coisas não mudarem dentro de quarenta dias, Nínive será destruída. Convertam-se!
Rei: Ordens do rei de Nínive: todos, do primeiro ao último, homens e mulher, velhos e crianças, todos teremos que mudar. Que cada um limpe suas mãos manchadas de sangue e violência. Que cada um se arrependa diante de Deus e pratique a justiça. Quem sabe se Deus também não se arrependerá do castigo que merecemos, quem sabe!

Homem: Esse Jonas foi um grande sujeito, sim senhor!
Mulher: Maior ainda foi a baleia que o engoliu!
Velha: E maior do que Jonas, é você, moreno!
Homem: Pois se é tão grande assim, que me cure! Ei, Jesus, deixe as histórias para lá e vamos ao que interessa: cure-me! O que lhe custa?
Mulher: Faça um milagre para que todos vejamos!
Jesus: Jonas não fez nenhum milagre na cidade de Nínive. Quem fez o milagre foram os ninivitas que mudaram e começaram a viver com retidão. E a cidade, que estava doente, curou-se.
Velha: Meu filho também está doente! Cure meu filho como curou a filha de Jairo!
Mulher: Cure-me, Jesus! Será que eu não tenho direito?
Jesus: Ninguém se cura por direito, mulher, mas por fé.
Mulher: Eu tenho fé, eu creio em Deus. O que está me faltando, caramba?
Jesus: É Deus que tem fé em nós e espera que nós façamos o milagre. O milagre de Jonas.
Eliab: Chega de palavras e empurrões! Você vai fazer um milagre, sim ou não? Pode ou não pode?
Jesus: Por que você mesmo não faz, rabino? Você sim pode fazê-lo. Veja, sabe como esta infeliz adoeceu? Dobrando as costas dia e noite sobre o tear. Foi assim que seus ossos se entortaram. E sabe o que entortou o pescoço desse homem? Carregando na cabeça sacos e mais sacos de farinha para ganhar um miserável denário. Faça você o milagre, fariseu! O milagre não é abrir os olhos de um cego, mas abrir o bolso e compartilhar seu pão com o faminto. O milagre não é limpar a carne de um leproso, mas limpar todo o país que apodrece por causa das falcatruas de uns quantos. Esta mulher coxeia de uma perna, mas nosso país coxeia das duas. Não peçamos a Deus mais milagres. Nós é que temos de fazer o milagre: o milagre da justiça!
Eliab: E lá vem a política de novo! É só isso que você sabe fazer, nazareno, esquentar a cabeça da chusma. Charlatão, é isso que você é, um charlatão e um agitador. Vai com esse palavrório para outro lugar.
Mulher: O rabino tem razão. Esse aí não é mais que um falador! Vamos embora, vamos embora!
Homem: Vai pros diabos, Jesus. Tanta história e tanta espera por nada!

Os doentes foram embora, cada qual por seu caminho. Uns iam com seus bastões e suas muletas. Outros, carregados em macas ou apoiando-se no braço do vizinho. Pouco depois, ficamos só nós do grupo. Já escurecia sobre Cafarnaum, e as cidades que adornavam as margens do lago, como pérolas de um colar, começaram a acender suas luzes esbranquiçadas. Jesus parecia muito triste e ficou com o olhar perdido nos reflexos da água.

Jesus: Que pena, Corozaim! Tantas palavras que dissemos lá tua praça e pelas tuas ruas... e tudo continua igual. Continuas sendo uma cidade adúltera, pior que Nínive, pior que Sodoma. Pobre de ti, Betsaida, que te deitas num leito quente com os grandes comerciantes enquanto teus filhos agonizam de fome e de frio pelos portais e continuas parindo usurários e traficantes de violência e não escutas o grito de morte dos inocentes. E tu, Cafarnaum, que queres subir ao céu para roubar milagres de Deus, mas não fazes nada para que as coisas mudem aqui na terra, tu mesma não queres fazer o único milagre que Deus reclama: a justiça.


A religiosidade popular mal orientada e alimentada por uma situação de miséria, transforma-se facilmente em “milagreira”. O religioso, a fé, acabam identificados com o maravilhoso, o surpreendente, o singular. Reduz-se Deus a um médico poderoso ou a um ilusionista de circo. Adultera-se a fé, simplificando suas atitudes em uma só: ser capaz de crer no milagre. E, o que é pior, ao cair nesta vertigem, perde-se de vista o mais importante: a realidade de cada dia, cheia de injustiças e “enfermidades” que exige uma mudança e que necessita de nosso esforço para que se transforme.

Os quatro evangelhos nos transmitiram muitas histórias de milagres realizados por Jesus, salpicando todos os seus relatos com fatos que procuram explicar quem é Jesus e como passou fazendo o bem, curando todos os oprimidos pelo diabo porque Deus estava com ele (At 10, 38). Todos os relatos de milagres não devem ser lidos com os mesmos critérios. Se aplicarmos a eles uma crítica rigorosa, observaremos que alguns milagres estão duplicados (comparar Marcos 10, 46-52 com Mateus 20, 29-34), outros ampliados, outros deliberadamente enfeitados. Tudo isso indica que, embora haja um núcleo histórico certo nas curas que Jesus operou, não se deve interpretar os evangelhos como um catálogo de maravilhas realizado por um superman poderoso. O ponto de partida é fazer a diferença  entre a palavra “milagre” e a palavras “signo” ou “sinal”.

O evangelho de João, que reduz a sete o número de milagres que Jesus teria feito, é o que mais claramente estabelece esta diferença. Ao referir-se aos fatos milagrosos, João se refere sempre à palavra “semeion”, equivalente a “sinal”. Um sinal não tem valor em si mesmo. Aponta em uma direção, indica um caminho. Não é a meta, é o meio para chegar a ela. Segundo o evangelho de João, os “milagres” de Jesus não foram fatos isolados e maravilhosos que ele teria operado movido pela compaixão que lhe inspirava casos individuais de sofrimento. Se assim fosse, não seriam sinais de nada, esgotar-se-iam em si mesmos. João os apresenta como sinais que devem conduzir à compreensão da missão de Jesus.

O que poderia significar hoje, que Jesus de Nazaré tenha curado um paralítico no século I da nossa era? Os evangelhos respondem a esta pergunta apresentando Jesus como o mensageiro do projeto de Deus: se Jesus pôs de pé um homem prostrado, foi um sinal de que sua mensagem é capaz de fazer andar os seres humanos, tirando-os da passividade. Assim, em cada um dos curados por Jesus, os evangelistas rascunharam arquétipos de homens e mulheres vítimas de diferentes problemáticas.

Fé e religião não são a mesma coisa. A atitude religiosa “religa” o ser humano com Deus e o faz dependente dele. Certa mentalidade religiosa espera de Deus o que pode conseguir com seu próprio esforço ou com a organização dos esforços de outros e teme de Deus castigos por obras más ou por descuido nos ritos religiosos. Outra mentalidade religiosa “compra” a benevolência de Deus acumulando méritos diante dele através de orações, sacrifícios, votos, promessas, penitências. Jesus de Nazaré enfrentou estas mentalidades, arraigadas em todas as culturas, com uma nova visão de Deus. Jesus propôs uma relação com Deus baseada na responsabilidade da própria vida e na solidariedade comunitária. Nas atitudes de liberdade, maturidade, compromisso histórico, equidade entre os seres humanos, superação de medos religiosos está a base humana de que se nutre a atitude de fé, oposta à atitude religiosa.

(Mt 11, 20-24 e 12, 38-42; Mc 8, 11-13; Lc 10, 13-15 e 11, 29-32)







































91
A HORA DE JERUSALÉM


Aquele inverno passou rápido como uma flecha. Nos galhos da amendoeira surgiram os primeiros brotos. O campo começava a cobrir-se de flores e o ar limpo da nova primavera perfumava a planície de Esdrelon... Naquele dia, enquanto comíamos na casa de Pedro...

Pedro: O que foi, Jesus?... Está sem apetite?
Rufina: O moreno está com umas olheiras, como se não tivesse pregado o olho a noite toda...
Jesus: E não preguei, Rufina... Mas, não é nada. Acontece que eu precisava ver com mais clareza... Na verdade, venho rezando há vários meses, pedindo a Deus que nos aponte o caminho e...
Pedro: E então...?
Jesus: Companheiros, parece-me que a hora chegou.
Tiago: A hora de que, Jesus?
Jesus: De ir a Jerusalém. Já é hora de que também na capital, no coração deste país, os pobres se unam para compartilhar o que possuem, e assim enfrentar o velho mundo que está se acabando. Sim, o que dissemos tantas vezes por esses rincões da Galiléia, vamos repetir sobre os tetos da cidade grande.
Pedro: Ei, Rufi, você não pôs muita pimenta nesta sopa?!... Jesus está soltando fumaça!
Judas: Muito bem, moreno, então, quando pegamos a estrada?
Jesus: O quanto antes, Judas. Deus tem pressa. Há muita miséria no país. Herodes abusa demasiadamente no norte e os romanos abusam demasiadamente no sul. E, enquanto isso, Caifás e os sacerdotes de Israel ficam falando de paciência. Companheiros: a paciência acabou! É hora de pôr fogo no rabo de todas essas raposas, como Sansão fez aquela vez, e que tudo se queime!
Judas: Isso mesmo! Não há que ter medo do fogo. A cinza é o melhor adubo que existe!
Rufina: Vocês é que vão virar adubo! Estão ficando loucos? Da última vez, quase os levaram presos e já querem voltar a Jerusalém? Isso é o mesmo que meter a cabeça dentro da boca do leão!
Jesus: Claro que sim, Rufina. É isso mesmo que vamos fazer. Sansão também meteu a cabeça, mas o Senhor lhe deu a força de que precisava para quebrar a queixada do leão. Deus também não nos faltará quando estivermos em Jerusalém, tenho certeza disso!
Tomé: Pois eu-eu tenho ma-mais certeza dos caninos do leão, ma-mas enfim, se temos de ir, va-vamos.
Pedro: E vamos logo! A Páscoa já está perto!
Judas: Temos que aproveitar o momento, companheiros. Durante a festa é quando há mais gente na cidade.
Pedro: E é quando todas as raposas se reúnem na toca. Pôncio Pilatos vem de Cesaréia, Herodes vem de Tiberíades. Todos se juntam em Jerusalém para celebrar a Páscoa.
Jesus: Pois nós também iremos. Mas não só para relembrar a liberdade de nossos avós, quando saíram do Egito, mas para começar uma nova libertação. Porque continuamos sendo escravos. Porque os faraós continuam aí, sentados nos palácios de Jerusalém. Temos que ir lá e jogar na cara deles todos os seus abusos, como fez Moisés!
Todos: É assim que se fala, moreno! Muito bem!
Jesus: Então, avisem todos! Os do grupo e todos os do bairro que quiserem vir conosco. Vamos subir para Jerusalém. E não vamos para jogar água, mas para botar fogo!

Em poucos dias, alvoroçamos todo o bairro dos pescadores, convidando os vizinhos para irem a Jerusalém. Vieram também muitos homens e mulheres do vale de Séforis e de outros povoados do interior. A cidade de Cafarnaum se transformou num vespeiro. Já não se falava em outra coisa que a viagem à capital no mês de Nisan...

Pedro: Juntem-se a nós, companheiros. Chegou a hora de subir a Jerusalém! Você, conterrâneo, o que acha? Vem ou não vem?
Um homem: É claro que vou! Não vou perder essa briga nem por todo o ouro do bezerro de Aarão!
Pedro: E a senhora, dona Ana, o que está esperando? Vamos, apresse-se!
Uma mulher: Apresse-se você, Pedro-pedrada, e deixe a conversa mole para outro momento. Mas, explique-me uma coisa: o que vocês vão fazer lá na capital? Que diabos vão aprontar por lá? Brigar, rezar, divertir-se?
Pedro: Ai, dona Ana, ainda não tive tempo de pensar nisso! Mas não se preocupe, que Jesus sabe o que faz! Vamos com ele e lá veremos o que vamos fazer! Pode crer, vizinha, esse moreno é o Messias que nossos avós esperaram tanto tempo!
Mulher: Mas, o que você está dizendo, seu abestado?
Pedro: O que todo mundo diz, que Jesus libertará Israel e quebrará o focinho de todos os sem-vergonhas que riem de nós. Com Jesus à frente, conquistaremos a capital e todas as cidades do país!
Mulher: Ah, é mesmo? Se esse moreno é o Messias, onde é que está a espada dele?
Pedro: Escondida, caramba! Se ele a mostrar antes da hora, os romanos o farão engoli-las com bainha e tudo. Viva o Messias!
Todos: Viva, viva!
Pedro: E então, dona Ana?... Sim ou não?
Uma mulher: Não e não. Não vou. Eu estou doente.
Pedro: Que doente que nada! Você tem joelhos fortes para caminhar até Jerusalém!
Mulher: Mas, você está louco, Pedro? Se eu for a pé até lá, vocês terão de me trazer de volta num saco de farinha. Não contem comigo. Estou doente.
Pedro: Doente nada! Acontece que você está com medo, não é? Dona Ana, pense bem, sobre os covardes não se escreveu nada na história.
Mulher: E sobre os valentes se escreveu muito, mas eles não puderam ler porque tinham formigas na boca.

Jesus: Vamos Simeão, anime-se e venha conosco. Precisamos de gente como você, caramba, com pêlo no peito!
Simeão: Não, até que por mim eu iria, Jesus, mas...
Jesus: Mas, o quê?
Simeão: Minha família. Você sabe como é lá em casa... Minha mãe se preocupa muito comigo...
Jesus: E você se preocupa muito com sua mãe, e já vai completar trinta anos e ainda não cortou o cordão do umbigo.
Simeão: Olhe, Jesus, vamos fazer uma coisa. Eu vou conversar com meus pais sobre esse assunto... para eles irem fazendo uma idéia do que se trata... Devagarzinho, entende?
Jesus: Olhe, Simeão. Você acabou de decidir. Vai acontecer com você o mesmo que a um vizinho meu de Nazaré que saía para semear e agarrava o arado. Mas quando ia abrindo o sulco, voltava a cabeça de um lado para o outro, para cumprimentar todos que passavam pelo caminho... E, claro, no final ficava com o pescoço torto e os sulcos mais tortos ainda.
Simeão: Mas, Jesus...
Jesus: Simeão, quando se põe a mão no arado, é preciso olhar para frente. E nada mais.

Jesus: Escutem, amigos: se um pedreiro vai levantar uma torre, primeiro não conta quantos tijolos tem para não ter que parar no meio da parede? Ou, se um rei declara guerra a outro rei, primeiro não conta os seus soldados? E se ele tem dez mil e fica sabendo que seu inimigo tem vinte mil, antes de começar a batalha manda um mensageiro para fazer as pazes, não é mesmo? Nós vamos a Jerusalém, sim, mas... com quantos soldados contamos?
Um morador: Aqui tem um! Só preciso do uniforme!
Jesus: O uniforme é um bastão e um par de sandálias, companheiro!
Morador: Então já estou pronto! Irei com vocês a Jerusalém!
Jesus: E depois?
Morador: Como, depois?
Jesus: É que Jerusalém é só o começo!
Morador: Irei com você para qualquer lugar, fique tranqüilo.
Jesus: Está disposto a deixar o ninho?
Morador: Que ninho?
Jesus: O seu. Aquele que todos fabricamos para dormir quentinhos.
Morador: Por isso, não. Eu pego minha esteira e durmo numa boa!
Jesus: E se não tivermos esteira?
Morador: A gente arranja alguma pedra para se encostar.
Jesus: E se tirarem a pedra?
Morador: Então eu durmo em pé, diacho! As mulas não fazem assim, e parece que se saem muito bem!
Jesus: Você é um dos nossos, sim senhor! Podemos contar com você!

Júlio: Escute, Jesus, eu também quero ir com vocês.
Jesus: Pois então, venha. Quem lhe disse que não?
Júlio: Ninguém, mas... estou com medo, essa é a verdade. Você bem sabe que mataram meu pai quando eu ainda era pequeno. Minha mãe ficou viúva, com cinco filhos e nenhum centavo. Meu pai foi um valente, sim, mas... o que ele conseguiu? Isso já faz muitos anos e, de lá pra cá, as coisas não mudaram nada...
Jesus: Seu pai perdeu a vida, mas não deve ser por isso que você deva perder a esperança. Se a perder, estará mais morto que seu pai.
Júlio: Sim, talvez seja isso. Mas, sinceramente, estou com medo. Eu sei como essas coisas são. Quem mexe com fogo, acaba se queimando.
Jesus: Mas produz luz. De fato, Júlio, a vida a gente ganha quando a perde. Meu pai José também perdeu a vida por ajudar uns infelizes que fugiam de uma matança injusta. Sua vida foi curta, mas valeu mais que a de outros que se protegem tanto que acabam cheirando à traça. Seja corajoso, homem!
Pedro: Com esse rapaz não se pode contar, Jesus. Deixe-o pra lá! Está com medo.
Jesus: E você não, Pedro?
Pedro: Eu? Medo eu? Rá! Fique sabendo que eu nunca encolhi o umbigo. Olhe, Jesus, nós já estamos metidos até o pescoço nesta história de Reino de Deus. Deixar por deixar, já deixamos tudo, até o medo! Acho engraçado esse pessoal que quer montar no barco na última hora. No início, quando tudo começou, nos olhavam como a um bando de malucos. E agora, todos querem vir a Jerusalém.
Jesus: Pois quanto mais vier melhor. Você não acha, Pedro?
Pedro: Sim, claro, mas... não pode furar a fila. Nós já estamos remando este barco há muito tempo, não é mesmo? Eu penso, moreno, que quando conquistarmos Jerusalém e cantarmos vitória... tem que sobrar algo de especial para nós...
Jesus: Algo de especial, Pedro?
Pedro: Jesus, veja se me entende... não é que a gente faz isso por interesse, mas...
Jesus: Ah, estou entendendo. Fique despreocupado, Pedro. Eu lhe prometo cem por um. Para cada problema que você tinha antes, agora terá cem problemas mais. E cem brigas mais e cem perseguições.
Pedro: Bem, moreno, eu acho que quem rói o osso, tem direito de comer da carne, não? Todo mundo gosta de sentar-se à cabeceira...
Jesus: Mas, Pedro, onde já se viu o empregado pegar a cadeira do patrão?
Pedro: Não, o que estou dizendo é que...
Jesus: Você não disse nada. Quando acabarmos de fazer o que Deus nos mandou, você e todos nós diremos uma coisa só: a tarefa está terminada, cumpri com meu dever. E nada mais.

Durante aquela semana de vai e vem por Cafarnaum para avisar a todos, Jesus não se cansava de falar com as pessoas...

Jesus: Eles vão dizer que estamos dividindo e agitando o povo. Pois isso é verdade. De agora em diante, até numa família haverá divisão: se houver cinco, estarão divididos, três contra dois, dois contra três, e o filho estará contra o pai e a filha contra a mãe e a sogra contra a nora. Porque ninguém pode mais cruzar os braços. O que não recolhe, esparrama. O que não luta pelos pobres, luta contra os pobres e faz o jogo dos de cima.
Todos: Muito bem, Jesus! Assim é que se fala, moreno!
Jesus: Amigos, Jerusalém nos espera! Deus estará conosco em Jerusalém e nos libertará da escravidão como libertou nossos avós do jugo do faraó! Nós também atravessaremos o Mar Vermelho e sairemos livres!

Nunca havíamos visto Jesus tão inflamado como naqueles dias. Seus olhos brilhavam como os do profeta João, quando gritava no deserto. Como João, falava com pressa, como se as palavras se apertassem em sua garganta, como se lhe faltasse tempo para dizê-las todas e fazê-las chegar até os ouvidos dos humildes de nosso povo.


O tema da “hora” de Jesus é de muita importância no quarto evangelho. Com esta palavra, João designa o momento culminante da vida de Jesus, que se inicia com sua última viagem a Jerusalém. A “hora” é para a teologia de João, o momento em que Deus vai intervir de forma definitiva, o momento da consumação da Missão do Messias (momento final, escatológico). É o momento da glorificação de Jesus e da irrupção do Reino de Deus na história. Tudo isso que soa grandiloqüente, poderia ser expresso assim: O compromisso assumido por Jesus no momento de ser batizado no Jordão vai chegar até às últimas conseqüências. Até à entrega da vida. Não devemos ver nisso nada de fatalismo. Como se Jesus tivesse preparado toda sua atuação para este momento e houvesse ido a caminho da morte, sabendo de antemão tudo o que ia acontecer. Não, Jesus desenvolveu uma atividade, teve projetos e planos, e neste episódio aparece um deles, que depois seria seu último plano: sacudir com a boa notícia do Reino de Deus os alicerces de Jerusalém, cidade satisfeita e injusta que era o centro do poder religioso e sócio-político daquele tempo.

Na pessoa de Jesus, em sua psicologia, em suas palavras, em suas ações descobre-se continuamente um elemento dominante: a pressa, a urgência. Do ponto de vista puramente histórico, Jesus se nos apresenta como um homem que acreditou na chegada iminente do Reino de Deus. Viveu convencido de que a intervenção definitiva de Deus em favor dos pobres se realizaria imediatamente, que os tempos finais estavam à porta. Por isso, para ele, cada minuto era precioso. Por causa desta urgência que o inspirava e impulsionava fala como fala: de guerra, espada e fogo. Tenta sacudir os que estão adormecidos e acreditam que há tempo de sobra. Muitas palavras e parábolas de Jesus precisam ser situadas neste ambiente de crise em que ele viveu historicamente e na crise futura e final que ele via como iminente e necessária para a chegada da justiça de Deus. Isso não nos deve fazer pensar em Jesus como um iluminado fanático, semelhante a esses pregadores de catástrofes, que ainda percorrem as ruas e povoados assustando as pessoas. Mas tampouco se pode esquecer esta visão que Jesus teve frente à sua época, se quisermos ser fiéis aos dados que o evangelho nos transmitiu.

No momento em que Jesus empreende sua última viagem a Jerusalém, já é conhecido como profeta, tanta na Galiléia como na capital. Jesus conta com o apoio das pessoas do povo e conta também com o ódio e perseguição dos dirigentes. Sua aposta para ir a Jerusalém parte dessas duas certezas: sabe o que está arriscando, sabe também a importância do gesto profético que pode realizar em Jerusalém, no próprio Templo. Conta com a morte, mas está convencido de que a vitória será de Deus. Sabe que o Reino só se conquista com risco e dor e está disposto a pagar esse preço confiando no poder de seu Pai. Como se pode ver, aqui não há fatalismo, mas lucidez a respeito das forças que estão em jogo, coragem para o risco, confiança cega – mas não iludida – no poder de Deus, mais forte que todos os poderosos.

Neste ambiente de urgência situam-se as “vocações” de três conterrâneos de Jesus. Ao primeiro, propõe a comparação do arado. Os primitivos arados da Palestina exigiam do camponês uma atenção máxima no trabalho, pois qualquer descuido poderia estragar tudo. É um sinal do que supõe a vocação para o Reino: compromisso contínuo e com todas as suas conseqüências. Uma atitude frívola não serve para uma tarefa que traz tantos riscos. Ao segundo, pede austeridade. Não “ter onde reclinar a cabeça”. A vocação exige renúncia: à própria comodidade e à própria tranqüilidade. Finalmente, a vocação exige estar disposto a dar a própria vida (Mt 16, 24-26), superar o medo de morrer. Nada torna o homem mais livre. Homens e mulheres de qualquer estado social são chamados para o trabalho do Reino. Cada um o fará a partir de sua situação familiar, social ou profissional. No entanto, não há maior perfeição no monastério do que na rua, nem mais cristianismo num padre do que num leigo. Todos os textos que no evangelho se referem a vocações são um chamado para todo o povo de Deus. Jesus pediu a todos o mesmo compromisso. Este compromisso – e Jesus o sabia bem – traria dores e sofrimentos. Não se deve sair procurando por eles, pois eles virão dos que se opõem ao projeto de Deus.

Quando se diz que Jesus é sinal de contradição, é preciso levar isso muito a sério. Sua pertença do mundo dos pobres e o fazer deles os destinatários da mensagem do amor de Deus, fizeram dele uma pedra de escândalo. Nela tinham de tropeçar necessariamente os poderosos e os sábios do seu tempo. Não podiam tolerar tudo o que Jesus fazia e dizia, colocando absurdamente o nome de Deus no meio, fazendo de Deus o último responsável. Jesus era plenamente consciente das animosidades que essas atitudes despertavam (Mt 10, 34-35).

  A vocação é algo mais que o simples desejo de ser bom (de ser “perfeito”, como às vezes se formulou). É orientar toda a vida de forma radical a uma direção que se torna difícil, conflitiva, nada tranqüilizadora. Jesus veio trazer a espada, não a paz (Mt 10, 34). O caminho supõe tensões, renúncias, decisões firmes.  Também estratégias inteligentes (Lc 14, 28-33). E não dar demasiada importância ao que se faz (Lc 17, 5-10).

Por vezes, interpretou-se que a “vocação” é só uma coisa de padres e freiras. Mas a maior parte dos textos que fazem referências aos chamados de Jesus – também os deste episódio sobre o “cem por um” (Mt 19, 27-29) – foram monopolizados pelos religiosos. Isto é errado. Homens e mulheres de qualquer estado social são chamados ao trabalho pelo Reino. Cada qual o fará a partir de sua situação familiar, social ou profissional, mas não há maior perfeição no monastério que na rua, nem mais cristianismo em quem é padre ou em quem é leigo. Todos os textos em que o evangelho se refere a vocações são um chamado para todo o povo de Deus. Jesus pediu a todos o mesmo compromisso. Este compromisso – e Jesus o sabia bem – trará dores e sofrimentos. Não que se deva sair à sua procura, mas que eles virão a partir daqueles que se opõem ao projeto de Deus e os sábios do seu tempo. Não podiam tolerar tudo o que Jesus fazia e dizia, colocando absurdamente o nome de Deus no meio, fazendo de Deus o último responsável. Jesus era plenamente consciente das animosidades que suas atitudes despertavam (Mt 10, 34-35).


(Mt 8, 18-22; Lc 9, 57-62)












92
PELO BURACO DE UMA AGULHA



Rubens: Mas, Névio, você está falando sério?
Névio: Claro que sim, amigos. Por que não acreditam?
Tito: Mas o que aconteceu? Brigou com sua noiva? Ou seu pai lhe negou a herança?
Névio: Nem uma coisa, nem outra.
Rubens: Então você está com febre.
Névio: Nada disso. Eu me sinto perfeitamente bem. E me sentirei melhor quando chegar na frente do profeta e lhe disser: profeta, conte comigo! Eu também quero juntar-me ao seu grupo e viajar a Jerusalém e comer a Páscoa na cidade de Davi”.
Tito: Você não vai se atrever!
Névio: Me atrever a quê?
Tito: A dizer isso ao profeta.
Névio: Então você não me conhece! Pois hoje mesmo eu vou e direi isso!
Rubens: Quanto você quer apostar, Névio?
Névio: O quanto vocês quiserem. Vinte denários?
Rubens: Quarenta é melhor.
Tito: Não, não, não, um barril de vinho. Assim, quando você voltar com o rabo entre as pernas, o beberemos juntos e você poderá afogar seus sonhos revolucionários com o delicioso suco da uva.
Rubens: Rá, rá... Vamos, agora não pode voltar atrás. Venha, jure.
Névio: “Juro, prometo e determino: esta aposta bem vale um barril de vinho.”
Tito: Era só o que nos faltava ver em Cafarnaum!  Névio, o filho de dom Fanuel também mordeu o queijo e caiu na ratoeira do profeta nazareno, Rá!
Rubens: O que dirá o “papaizinho” quando souber que você quer se juntar a essa chusma?
Névio: Por mim, que diga o que quiser, pouco me importo! Ele faz a vida dele, eu faço a minha.
Rubens: Quem te viu e quem te vê, heim Névio! O senhorzinho da cidade vai beijar os pés de um camponês, meio bruxo, meio agitador!
Névio: Digam o que quiserem, mas esse Jesus é um grande sujeito. Tem coragem, caramba! Temos mais que ouvi-lo.
Tito: Temos mais que cheira-lo. Fede à cebola e perfume de rameira!
Rubens: Diga com quem andas...
Tito: Quer dizer então que o nazareno lhe passou a sarna!
Névio: Rá, se a inveja fosse sarna, vocês já estariam se conçando...
Rubens: Inveja? Inveja, nós? Rá, rá, rá... Não, fique sossegado, eu estou muito tranqüilo em minha casa, com muitos criados e pouco trabalho!
Tito: E eu também!
Névio. Pois eu não. Estou decidido a mudar de vida. Quero fazer alguma coisa de grande! Nesta mesma tarde vou procurar o profeta e dizer-lhe que viajarei com ele à capital e depois a...
Rubens: Depois vai logo tomar um banho para tirar os piolhos que lhe deu de presente o profeta dos mortos de fome! Rá!
Tito: Mas, Névio, será que você não entende? O azeite não se mistura com a água. Esse sujeito não é dos nossos. E você não é dos deles. O que você vai procurar então?
Rubens: Eu não sei o que você vai procurar, Névio, mas sei muito bem o que vai encontrar: Um carraspana contra seu pai e contra os ricos e adeus, até à vista!
Névio: Isso é o que vocês pensam! Mas eu lhes digo que Jesus é um sujeito aberto. Tenho certeza de que ficará contente em me ver. Eu posso lhe ser útil. Tenho dinheiro, tenho boa preparação, tenho...
Tito: O que você tem é uma aposta para pagar, não se esqueça!
Rubens: Então, está combinado: um barril de vinho! De acordo, Névio?
Névio: De acordo, amigos.

Névio era o filho caçula de Fanuel, um dos ricos latifundiários de Cafarnaum. Era um rapaz alto e forte, a quem nunca faltou boa comida, boas roupas e a melhor escola. Ajudava seu pai na administração da fazenda e lhe sobrava tempo para gasta-lo com seus amigos... Naquela tarde, Névio saiu da luxuosa casa onde vivia e foi ao bairro dos pescadores, pela ruazinha que segue junto ao mar...

Simãozinho: Pule, danado, pule logo!
Renato: Pocotó, pocotó, pocotó... vamos, cavalo!
Simãozinho: Meu cavalinho pula mais que o seu, veja só! Rá, rá, rá!
Renato: Agora é minha vez!
Névio: Ei, garotos, é aqui que mora Jesus de Nazaré?
Simãozinho: Puff...! É, ele está ali dentro, consertando uma porta... Moreno, estão te procurando!
Jesus: Então já me acharam! Quem é?
Simãozinho: Um senhorzinho!

Quando Névio chegou à casa, Jesus estava sozinho. Minha mãe remendava as redes no cais e o velho Zebedeu, meu irmão Tiago e eu estávamos, como sempre, pescando no meio do lago...

Jesus: Ei, você não é um filhos de Fanuel, o fazendeiro?
Névio: Sou eu mesmo. De onde me conhece?
Jesus: Você sabe, em Cafarnaum a gente acaba conhecendo as orelhas de todo mundo... Bem, esta porta já está firme... Nem o anjo exterminado conseguirá derruba-la!... O que eu não sei é o seu nome...
Névio: Névio. Já me chamo assim faz dezoito anos!
Jesus: Muito bem, Névio... Dizem por aí que embora seu pai seja um bandido, você é boa gente...
Névio: Não sei não. Acho que a única boa pessoa que temos por ora na cidade é você mesmo, nazareno.
Jesus: Eu? Por que diz isso?
Névio: Porque é verdade. Você e seu grupo são os únicos que estão fazendo alguma coisa para que as coisas mudem em nosso país.
Jesus: Pois para você não conviria muito que elas mudassem, não é mesmo?
Névio: Não, não, Jesus, você é um grande sujeito. Eu sempre disse isso.
Jesus: E eu sempre disse que o único grande sujeito é Deus. Os demais cravam um prego aqui e outro acolá, assentamos um par de tijolos e vamos fazendo o que se pode...
Névio: É sobre isso que eu vim conversar. Eu também quero pôr meu tijolo e ajudar a levantar a parede.
Jesus: Você?
Névio: Sim, eu. Está achando estranho, não é mesmo? Claro, eu entendo, o filho de Fanuel! Mas não se deixe levar pelas aparências, nazareno. Você e eu podemos nos entender muito bem, você vai ver...
Jesus: Espero que sim... Venha, sente-se aqui... e vamos conversar...

Jesus guardou o martelo e os pregos e se sentou no chão. O filho do latifundiário fez o mesmo...

Névio: Por toda a cidade não se fala em outra coisa que da viagem a Jerusalém.
Jesus: De que viagem?
Névio: Qual poderia ser? A de vocês.
Jesus: Ah, sim, claro...
Névio: Eu pensei bem e decidi: pode contar comigo, Jesus.
Jesus: Não me diga que você também está com o comichão...
Névio: Não posso ir com vocês?
Jesus: Claro que pode, homem! Você é bem-vindo. Fico muito contente. Tenho certeza que todos os outros ficarão contentes também.
Névio: Eu achava que sim... Enfim, Jesus, vamos ao que interessa. O que exatamente vamos fazer em Jerusalém? Já tem algum plano? Conte para mim.
Jesus: Bem... o plano é tentar dar uma virada no bolo.
Névio: Que bolo?
Jesus: Em tudo isso que está aí... Vamos construir um novo céu e uma nova terra onde todos os homens possam se dar as mãos, possam sorrir e viver felizes... O que você acha do plano?
Névio: Eu gosto, sim. Soa bonito!
Jesus: Mas, é claro, para chegar até lá, há um pequeno problema... “para que os que têm menos tenham mais, é preciso que os que têm mais tenham menos”.
Névio: Como é?... Isso é um trava-língua?
Jesus: Não, é algo muito simples, escute: por que há gente que passa fome em Israel? Porque outros comem o dobro da ração. Por que há meninos andando pelas ruas descalços e maltrapilhos? Porque outros têm sete túnicas e catorze pares de sandálias no baú. Uns têm só um grãozinho de trigo no bolso, outros um celeiro cheio. Está entendendo, Névio?
Névio: Entendendo o que?
Jesus: Que a única maneira de nivelar um buraco é rebaixando uma montanha. O plano de Deus é nivelar, compreende? O que você acha?
Névio: Sim, está certo... Enfim, voltando à viagem, diga-me, quantos irão a Jerusalém?... Muitos? Poucos?... Quem você convidou?
Jesus: Bah, convidar, convidamos todos... Mas você sabe como é essa gente... Primeiro “sim, sim”, depois “me esqueci”.
Névio: É, eu imagino. Muita conversa e nada mais, não é isso, Jesus?
Jesus: Isso mesmo. O que precisamos é de gente que pegue bem firme no arado e empurre com força o Reino de Deus.
Névio: Pois eu estou aqui para cerrar fileiras, pode contar! Na verdade, não que eu queira me incensar, mas desde pequeno me ensinaram os mandamentos de Deus e desde pequeno eu os cumpro. Eu nunca roubei.
Jesus: Mas também nunca passou fome...
Névio: Nunca matei ninguém. Nem mesmo tive vontade de fazê-lo.
Jesus: Mas também nunca sentiu nas costas as chicotadas do capataz...
Névio: O que? Não acredita em mim?... Estou falando sério, Jesus, juro que nunca fiz mal a ninguém...
Jesus: Não precisa jurar. Eu acredito em você. Claro... os zangões também não fazem nada de mal na colméia...
Névio: Ah, já sei onde você quer chegar... Pois saia pela rua e pergunte quem em Cafarnaum deu mais esmolas do que eu.
Jesus: E quem mais poderia dá-las se todo mundo não tem sequer uma agulha no bolso?
Névio: Bem, sim, mas... Voltando à viagem... Você já pensou no que vamos precisar para a caminhada? Eu acho que é preciso levar algumas coisas.
Jesus: Bah, não se preocupe com isso, Névio...
Névio: Se está precisando comprar alguma coisa, pode falar...
Jesus: Comprar, não. Vender.
Névio: Vender? Vender o que?
Jesus: Vender tudo. Deixar tudo para ter as mãos livres.

Jesus se fixou nas mãos do filho de Fanuel. Não tinham calo nem ruga. Depois, levantou os olhos e o olhou com simpatia...

Jesus: Escute, Névio, Moisés também foi criado numa casa rica. A filha do faraó o alimentou bem, deu-lhe a melhor roupa e a melhor escola do Egito. Mas um dia, o senhorzinho Moisés foi visitar seus irmãos e viu um capataz egípcio chicoteando um pobre escravo hebreu. E Moisés sentiu tanta raiva que matou o capataz. Perdeu tudo, sua casa, suas comodidades. Ficou sem nada e perseguido pela polícia do faraó. Então se fez digno de seu povo. Então pôde se aproximar dos escravos, de igual para igual e chama-los de irmãos e ajuda-los a serem livres. Vamos, Névio, comece por aí e depois pode voltar para continuarmos falando da viagem...
Névio: Eu vou pensar, Jesus... sim, pode crer, eu vou pensar...

Névio olhou Jesus sem saber o que dizer. Em seguida, levantou-se do chão, sacudiu a túnica nova que se havia enchido de pó e saiu da casa.... Tinha o rosto muito triste.

Pedro: Ei, moreno, o que o filho do Fanuel veio procurar por aqui?
Jesus: Veio me ensinar uma brincadeira, Pedro.
Pedro: Uma brincadeira?
Jesus: Sim, você vai ver... Simãozinho, corre aqui... Venha cá um momento... venha!

Jesus se aproximou da porta e chamou o filho de Pedro, que continuava brincando na rua com um grupo de crianças...

Jesus: Ei, Simãozinho, do que vocês estavam brincando?
Simãozinho: De pulo do cavalinho. Pocotó, pocotó, pocotó...!
Jesus: Quer aprender outra brincadeira, uma que você ainda não sabe?
Simãozinho: Sim, sim. Como é?
Jesus: Preste atenção. É a brincadeira do camelo. Você é o camelo. Vamos lá, fique de quatro pés... assim... Você tem uma corcunda grande nas costas... E isso é uma agulha, está vendo?

Jesus juntou os dedos formando um pequeno círculo com eles...

Simãozinho: E agora, o que eu faço?
Jesus: Você está vendo esta agulhinha. O camelo tem que tentar passar pelo buraquinho da agulha. Se passar, ganha. Se não passar, perde.

Simãozinho ficou olhando a mão de Jesus. Depois se levantou do chão...

Simãozinho: Essa brincadeira é muito sem-graça, Jesus, tchau. Pocotó, pocotó...!
Jesus: Essa era a brincadeira que o filho do Fanuel queria brincar. Mas o camelo não consegue passar pelo buraco da agulha. Até os meninos sabem disso, Pedro.

Rubens: Pelo visto, Névio, hoje teremos que afogar as mágoas no suco da uva!
Tito: “Juro, prometo e determino...”
Rubens: Que sua aposta valeu bem um barril de vinho! Rá, rá...!
Tito: Vamos lá, Névio, alegre essa cara e vamos brindar pela sua cabeça que estava perdida e agora voltou a se colocar sobre os ombros! Rá, rá, rá...!

Os amigos de Névio entraram em sua casa, abriram um barril e começaram a beber e jogar conversa fora. E o filho do latifundiário, entre risadas e vinho, foi esquecendo a viagem a Jerusalém...


Este texto evangélico, usado freqüentemente para ilustrar o tema vocacional, tem palavras nada tranqüilizadoras para os ricos. Diríamos que é um relato no qual Jesus se mostra pretensamente “demagógico”. A primitiva tradição cristã foi fiel a esta dura crítica feita por Jesus às riquezas e nunca encontrou justificação possível diante dos que acumulam dinheiro. Os santos padres da Igreja também foram “demagógicos” ao falarem deste tema: “Acertadamente o evangelho chama riquezas “injustas”, pois toda riqueza não tem outra origem que a injustiça e ninguém pode se fazer dono dela a não ser que outro perca ou se arruíne. Por isso, parece-me acertada o ditado popular que diz: os ricos o são por sua própria injustiça ou por herança de bens adquiridos injustamente”, dizia São Jerônimo, quatrocentos anos depois de Jesus (Epístola 120, 1).

Névio é o que chamaríamos hoje um “revolucionário de boteco”. O que ele sente é o que, justamente o que às vezes se entendeu por “vocação”: uma indefinida inquietação para ser melhor, para ajudar os outros. Há também nele uma certa má consciência por um lado e, por outro, o desejo de cotejar-se com Jesus, um líder que arrasta pessoas, e assim ganhar importância diante de seus amigos.

É bom desmistificar o “jovem rico”. Muitas vezes foi apresentado como um bom rapaz, puro, honesto, cumpridor de todos os mandamentos, mas “não apto para a vida religiosa”, porque não foi corajoso o suficiente para seguir o “conselho” de Jesus: “vender tudo e dar aos pobres”. Este não é o posicionamento do evangelho. Jesus não está dando um “conselho” para os que buscam a perfeição. Jesus apresenta ao rico a única posição válida para entrar no Reino: a perspectiva dos pobres. Pôr-se no lugar deles, compartilhar sua vida, fazer sua a causa da libertação deles. Não se trata de um conselho isolado, mas de todo um projeto de vida. O jovem rico não praticou grandes males, mas deixou de fazer muitos bens. Seu pecado é de omissão. E quando Jesus lhe mostra onde está sua falha – na falta de sensibilidade diante do pobre – ele continuará cego, obstinado no seu individualismo, satisfeito com sua vida “decente”.

Esta incompreensão que o dinheiro produz nos ricos, tão freqüente, tão comprovável a cada dia, é que leva Jesus a fazer essa exageradíssima comparação do camelo e a agulha. Não se trata nesta frase da agulha de uma porta oriental – por causa de sua forma – como às vezes se pretendeu indicar, para assim açucarar a comparação de Jesus. (Dizia-se que o buraco de agulha das portas orientais era muito estreito, mas que se se abaixasse um pouco a corcunda do camelo, podia-se passar...) Não, trata-se de uma agulha de costura. E trata-se do camelo, o maior animal conhecido na Palestina. Um camelo nunca poderá passar por esse buraco. Nunca. Com essa exagerada comparação, Jesus quer simplesmente dizer: É impossível, a não ser que Deus faça um milagre. Estas comparações extremas são, por outro lado, típicas da expressão oriental e Jesus as empregou com freqüência para assegurar que não se desvirtuasse a radicalidade de sua mensagem.

A “decência” de Névio, seu bem viver agir, é posta em questão por Jesus. Porque, bem alimentado, bem educado, com o futuro garantido, tinha todas as facilidades para ser bom, para não se ver na necessidade de roubar, para não sentir empurrado para a violência. A “moral” de algumas pessoas não é mais que um luxo. Sua posição econômica lhes permite, além de viver muito bem, ser bons. E mais, ser considerados os tais pela sociedade. Enquanto que para muitas pessoas que vivem na miséria, as trapaças, a agressividade, e às vezes a prostituição ou outras formas de “pecado” não são vícios, mas a conseqüência lógica de sua situação desesperada ou sua única forma de sobrevivência.

(Mt 19, 16-24; Mc 10, 17-25; Lc 18, 18-25)










93
OS QUE MATAM O CORPO



Tiago: Chegou a hora, companheiros, a hora da vitória!
Simeão: Em três dias estaremos em Jerusalém e em três horas a capital será nossa!
Júlio: E então, que os traidores se preparem! Fora com eles!
Simeão: Os romanos, fora!
Júlio: Os herodianos, fora!
Tiago: Os saduceus, fora também!
Um morador: Ei, você, escute aqui. Quem vai ficar dentro?
Tiago: Nós, pedaço de idiota, nós sentados sobre doze tronos e com o cetro do poder entre os joelhos.
Morador: É mesmo, Tiago? Você acha que chegaremos a isso?
Tiago: Não acredito. Tenho certeza! E por isso vou com o nazareno e com todo o povo! Anime-se, homem! Vai ser algo grande, e fim de papo! Depois, você vai se arrancar os bigodes por não ter ido!

Ana: Pode crer, comadre! Jesus disse que vai pegar Jerusalém de surpresa. E que no Templo não vai ficar pedra sobre pedra!
Rufina: E depois, o que vai ser?
Ana: Como o que vai ser? Depois da batalha, é repartir o botim! Eu estou de olho nas cortinas do átrio. E nas mantas!
Rufina: Pois eu me conformaria com um desses candelabros que tem sete anjinhos de ouro!
Uma moradora: E o que vai sobrar para mim, heim? As sete velas? Ao diabo com essas duas!

A cada dia eram mais moradores e moradoras de Cafarnaum que se animavam a viajar conosco a Jerusalém para celebrar a Páscoa daquele ano. Acredito que tínhamos idéias bem diferentes do que aconteceria por lá, durante as festas. Cada um levava dentro uma esperança diferente. Mas todos sonhávamos com ver chegar o grande dia da libertação do nosso povo...

Júlio: Ouça bem, Cleto: o céu se abrirá de par em par! Então, Deus meterá seu dedo entre as nuvens e dirá: esse moreno é o Messias! Vão com ele e aonde ele disser! Está entendendo, Cleto? Ele na frente e nós atrás!
Cleto: E atrás de nós, os soldados, com suas lanças, não é? Não, não, deixe-me em paz que eu não vou a lugar algum!
Júlio: Como não? Mas, e quando Deus esticar o dedo...?
Cleto: Se o esticar, que o chupe, pouco me importa! Mas não vou com vocês nem amarrado.

A notícia da nossa viagem a Jerusalém logo saiu de Cafarnaum e foi ecoando através do vale, de povoado em povoado, de porta em porta, até chegar a Nazaré e bater na casa de Maria, a mãe de Jesus...

Susana: Maria, comadre Maria! Já está sabendo? Seus primos não disseram nada?
Maria: Sim, Susana, já estou sabendo. Jacó veio contar-me agora há pouco.
Susana: Se Jesus não está louco de vez, não parece muito bem! Mas, diga-me você, Maria, será que esse moreno, seu filho, não pode ficar um pouco sossegado? Afinal, com o que você o criou, com leite ou pimenta malagueta?
Maria: Estão dizendo que vão setecentos, oitocentos, mil homens com ele. Um exército inteiro!
Susana: Sim, claro, um exército de formigas para brigar com um gigante!
Maria: Bem, Susana, Davi também saiu para lutar contra Golias e ganhou!
Susana. Ah, é mesmo? Trocando de camisa agora? Só me faltava isso agora! Comadre Maria, nessa viagem tem dente de coelho, escute o que estou falando.
Maria: E qual é o dente de coelho, Susana?
Susana: Política, revoluções... O moreno está com a água até o pescoço.
Maria: Pois se ele está em perigo, não sou eu que vou ficar aqui tranqüila. Parto hoje mesmo para Cafarnaum.
Susana: Mas, o que você está dizendo, Maria? Não está lembrada? Da outra vez que você foi busca-lo ele a mandou passear. Jesus já não faz caso de você.
Maria: Agora não vou brigar, Susana, mas ficar ao seu lado. E ajuda-lo no que puder. E se for preciso, vou com ele a Jerusalém, e aonde mais for necessário!
Susana: Mas, Maria, espere, deixe-me explicar...
Maria: Você explica no caminho, Susana. Você vem comigo, não é?
Susana: Eu? Mas, Maria...!
Maria: Venha, Susana, depressa, temos de sair antes que caia a noite...
Susana: Ai, Deus santo, mas, que doença é essa?!

Jesus: Mas, mamãe... e você, Susana... o que estão fazendo aqui em Cafarnaum?
Susana: Vamos com você e com todos os cabeludos que o seguem para celebrar a Páscoa em Jerusalém.
Jesus: Mas, vocês estão ficando loucas?
Susana: O único louco por aqui é você, Jesus, mas essa é outra história.
Maria: Jesus, meu filho, isso está parecendo um caldeirão fervendo. As pessoas não falam de outra coisa que esta viagem à capital.
Jesus: Falam, falam... Na hora da verdade, quantos ficarão?
Susana: Bom, aqui você tem duas formiguinhas a mais no formigueiro.
Jesus: É o que estou vendo. Mas acho melhor que voltem a Nazaré. As coisas já estão bastante complicadas e vão se complicar ainda mais. Não sabemos como isso vai acabar.
Maria: Por isso mesmo, filho. Daqui a gente não sai. Se você for a Jerusalém, vamos com você. Se voltar para a Galiléia, voltaremos para a Galiléia juntos.
Jesus: Mas, mamãe, você não percebe que...
Maria: Não gaste sua saliva, Jesus. Você não me fez caso quando o mandei voltar a Nazaré, lembra-se? Pois agora eu faço ainda menos caso de você. Iremos a Jerusalém. Venha, Susana, vamos falar com Salomé, a mulher de Zebedeu, para que ela arranje um cantinho para nós na casa dela, vamos...

Faltavam ainda duas longas semanas para a festa da Páscoa, mas os moradores de Cafarnaum já estavam preparando suas mochilas. Todos estavam entusiasmados com a viagem. Naquele dia, quando vi Jesus falando com Pedro, me dei conta de que ele estava preparando alguma...

Pedro: Mas, Jesus, como vou dizer isso?
Jesus: Acredite em mim, Pedro. É melhor assim.
Pedro: Mas isso é como espantar o jumento antes de atravessar o rio...
Jesus: Pior ainda é espantar no meio da correnteza e acontecer com a gente o mesmo que aconteceu com os cavalos do faraó...
Pedro: Está bem, se você está dizendo, eu farei. Mas depois não se queixe. Eu bem que avisei!

Naquela noite, a lua parecia um grande pão redondo partido ao meio. As pessoas do bairro estavam reunidas conosco no cais, pedindo a Jesus que lhes falasse o que fariam ao chegar a Jerusalém...

Júlio: Muito bem, Jesus, por onde vamos começar, heim? Pela Torre Antônia, ou pelo palácio de Herodes?
Simeão: Eu acho que a primeira coisa é dar um belo chute na bunda do gordo Caifás!
Ana: Na capital vão ficar logo sabendo quem são os galileus se todos fizermos a mesma coisa!
Um morador: Eu sonhei esta noite com o momento em que entrávamos em Jerusalém com a bandeira do Messias nas mãos! Viva Jesus, hozana!

Quando estávamos mais inflamados, Jesus fez um sinal a Pedro...

Pedro: Pois o que eu sonhei foi outra coisa, companheiros...
Ana: E o que você sonhou, Pedro? Vamos lá, conte para nós, que um bom sonho vale mais que uma boa sopa.
Pedro: É melhor eu não dizer... afinal, é um sonho...
Vários: Não, não, conte! Desembucha, Pedro, vamos!
Pedro: Está bem. Vamos lá com o sonho. Vejam só... sonhei... sonhei que todos nós estávamos caminhando por um longo vale, caminhando... e, de repente, quando levantamos a cabeça... vimos um abutre fazendo círculos no céu, sobre nós. E cada vez que acabava uma volta, vinha outro abutre e ficava junto com ele, e voavam juntos, asa com asa... e depois, mais outro, e outro... e, no final eram muitíssimos abutres, um bando de urubus negros dando voltas sobre nossa cabeça, esperando...

Quando Pedro disse aquilo, todos engolimos em seco. As mulheres se olhavam com o canto dos olhos. Alguns mordiam as unhas sem se atreverem a perguntar nada.... Foi Julinho, um garoto meio bobo, quem rompeu o silêncio...

Um garoto: Escute, Pedro, esse sonho aí... o que quer dizer, heim? Dá para explicar...?
Pedro: Explique você, Jesus. Certamente você sabe melhor do que eu o que ele significa.
Jesus: Bem, Pedro, eu acho que aqui todos entenderam... Amigos, que ninguém venha enganado. O Reino de Deus tem um preço. O preço do sangue. E os grandes de Jerusalém vão fazer a gente pagar. Eles não perdoam o que andamos dizendo aqui pela Galiléia. Muito menos perdoarão o que vamos jogar na cara deles quando chegarmos à capital. Os lobos saem de noite para procurar o rebanho e se escondem e esperam o melhor momento para saltar sobre as ovelhas e despedaça-las. Assim eles farão conosco. E depois, nos darão de presente aos abutres.
Júlio: Ei, Jesus, não seja tão pessimista, caramba! Primeiro, o Pedro, agora, você...!
Jesus: É que não vamos a uma festa, mas a uma luta. E o inimigo é muito mais forte que nós. Hoje estamos aqui. Amanhã podemos estar na cadeia. Todos corremos perigo. E muitos de nós seremos perseguidos de povoado em povoado, arrastados diante de Herodes e Pilatos, e os chefes dos sacerdotes nos agredirão nas sinagogas e... muitos de nós perderão a vida.
Cleto: Não fale assim, Jesus. Nós seremos os vencedores. Não é você que vai à nossa frente?
Jesus: Por isso mesmo, eu serei o primeiro a cair. Os profetas sempre morrem em Jerusalém.

Todos nos olhamos com inquietação e sentimos o ar frio da noite como um punhal que nos transpassava a carne e os ossos. As palavras que Jesus continuou dizendo já não serviram para mais nada...

Jesus: Mas não se assustem, amigos. Não se deve temer aqueles que matam o corpo mas não podem matar nosso espírito. Deus está conosco. E Deus já contou até o último cabelo de nossa cabeça e não permitirá que nossa luta seja estéril. É bem possível que caiamos nesta luta. Mas então daremos mais fruto, como a semente quando cai na terra.

Eu estava sentado no chão, com a cabeça entre as mãos. Quando ergui os olhos, vi Ismael e seu companheiro Neftali que já iam longe pela rua do cais. Gente do bairro, o velho Simeão, dona Ana e os gêmeos também se foram, meio encabulados. Depois, de repente, um grupo mais numeroso de homens e mulheres, como se obedecessem a uma ordem silenciosa se levantaram e se perderam na noite...

                                                                                                                    
Pedro: Covardes! Tomara que o diabo apareça e lhe meta um tição bem aceso na boca de todos vocês, charlatães!
Tiago: O exército saiu correndo antes de pôr o uniforme!
Pedro: Bem que eu o avisei, Jesus, que os galileus têm sangue de galinha! Olhe só os que ficaram, nós doze, os mesmos de sempre!
Tiago: E sua mãe Maria e a comadre Susana!
Madalena: E eu também, diacho! Ou será que as madalenas não são gente?
Tiago: O que essa zinha faz aqui?
Madalena: O mesmo que você. Eu disse a Jesus que ia, e aqui estou. Vou com vocês a Jerusalém.
Pedro: Ninguém vai com ninguém, Maria. A viagem fracassou.
Jesus: Por que você diz isso, Pedro?
Pedro: Abra os olhos, Jesus... Todos se foram. Somos um punhadinho de nada...
Jesus: E daí, Pedro? Você não se lembra de Gedeão? Foi para a guerra com trinta mil homens e chegou com trezentos. Os outros se foram. Sentiram medo e dobraram os joelhos. Mas com aquele grupinho, o Senhor lhe deu a vitória contra seus inimigos. Sim, somos um rebanho pequeno. Mas Deus levantará o cajado e nos defenderá dos lobos. Não tenhamos medo: Deus estará conosco em Jerusalém.
Tiago: Você está falando sério, Jesus?
Jesus: Claro que sim, Tiago. Amanhã mesmo saímos para a capital.
Pedro: Mas ainda faltam duas semanas para a Páscoa...
Jesus: Temos que andar depressa. Aqui já não podemos mais ficar. Há muitos espiões e muita vigilância. Vamos, companheiros, ergam esse ânimo! Amanhã de manhã vamos pôr o pé na estrada! Deus vigiará conosco. Jerusalém nos espera!
Pedro: E os abutres também!

Naquela noite fomos todos dormir sobressaltados. Poucas horas depois, quando o sol ainda não havia saído, nos espreguiçamos, pegamos os bastões, as mochilas e começamos a marcha pelo caminho das caravanas. Cafarnaum ficou para trás. As barcas dos pescadores já adentravam o lago. Diante de nós, a três dias de caminho, Jerusalém nos esperava.


A idéia que Jesus tinha sobre a chegada iminente do Reino de Deus não era igual à de seus discípulos nem à dos moradores de Cafarnaum. Embora todos esperassem a chegada do Reino, alguns a reduziam a aspectos individuais, outros à oportunidade de uma justa revanche contra os romanos, outros se juntam sem saber muito bem para onde ir, enquanto outros compreendem com maior profundidade. O momento do crivo se dá, geralmente, quando se começa a enxergar os riscos, os perigos, o preço a pagar. Então, os prudentes, os pouco convencidos, os mais acomodados ou os covardes abandonam o barco. O compromisso com o evangelho é sumamente exigente. E à medida que um cristão amadurece nele, vai descobrindo as conseqüências desse compromisso para sua vida. Mas também irá descobrindo a força de Deus para assumi-las.

Maria viveu esse processo de maturação de sua fé. Seu “sim” a Deus foi coisa de cada dia, de cada nova oportunidade que se apresentava. Ela não poderia ser o modelo de nossa fé e de nossa esperança, se não tivesse duvidado, se não tivesse arriscado, mesmo quando não via com clareza. Neste momento do relato, sabendo o que Jesus arriscaria em sua viagem a Jerusalém, também quer participar com ele, compartilhar esse risco. Já não se opõe – como no início da atividade de Jesus – nem permanece à espera do que possa acontecer, mas quer colaborar. Sua fé amadureceu e aqui chega a um ponto decisivo do processo: a solidariedade diante do perigo.

Ao empreender esta viagem a Jerusalém, Jesus teve que contar com a possibilidade de uma morte violenta. Seus enfrentamentos com as autoridades religiosas, violando deliberadamente a Lei (especialmente, a do sábado, miolo central do sistema social e religioso daquele tempo), punham sua vida em perigo. E ele estava plenamente consciente disso. Na Galiléia, Herodes tinha jurisdição para mandar mata-lo e, de fato, pretendeu faze-lo (Lc 13, 31). Na Judéia, para onde Jesus irá, a sentença só poderia ser dada pelos romanos, mas sua decisão de realizar no templo um ato profético, o colocava em gravíssimo perigo diante das autoridades civis, tão ligadas aos sacerdotes.

No tempo de Jesus, o povo considerava os profetas como mártires, por terem sido perseguidos pelos reis do país e muitos deles assassinados por causa de suas denúncias. Isaias, Jeremias, Ezequiel, Amós, Miquéias, Zacarias, eram para o povo de Israel, mártires nacionais. Jesus tinha consciência de ser herdeiro da tradição profética iniciada com Elias e continuada até João Batista. Ele se sabia um profeta. Por isso, sem procurar diretamente a morte, não podia esperar para si mesmo um destino melhor do que aquele que tiveram os grandes homens de seu povo.

O evangelho nos diz que Jesus “predisse” sua paixão. Fala-se, inclusive de três dessas predições, mais insistentes à medida que se aproximavam os dias da sua morte. É preciso ter cautela com esses textos, para não tirar deles a conclusão de um Jesus adivinho de sua própria vida, que sabia de antemão tudo o que ia acontecer e que por isso mesmo, sofreu “menos” por conhecer o bonito desenlace da sua história... Se o interpretarmos assim, desumanizamos Jesus e transformamos sua morte e ressurreição em uma peça de teatro. Como todo homem, ele estava a par dos riscos, mas não conhecia as circunstâncias. E, como todo homem, se viu surpreendido por elas e procurou modifica-las. Tudo parece indicar, por exemplo, que Jesus contou com a morte por apedrejamento (Mt 23, 37), pelo que seria enterrado como delinqüente em uma vala comum (Mc 14, 8) e que também, logo depois de sua morte, seus discípulos também seriam violentamente perseguidos e mortos (Lc 22, 35-38). Também pensou que Deus não permitiria seu fracasso, que não o abandonaria. Tanto pensava assim, que não se explica sua angústia na cruz. No entanto, as coisas não aconteceram como ele pensava: Jesus morreu, ainda que não apedrejado e foi enterrado em um sepulcro digno e as autoridades deixaram seu grupo em paz. Tudo isso nos indica que Jesus, efetivamente, contava com a possibilidade de um desfecho violento, nada mais que isso. Sua consciência de estar em perigo não pode ser interpretada como um vaticínio infalível de tudo o que iria acontecer. O assassinato de Jesus aconteceu na história, submetido a circunstâncias históricas concretas – e portanto variáveis. Foram aquelas as circunstâncias, mas poderiam ser outras. A paixão e morte de Jesus são fatos acontecidos na história. Não são o cumprimento fatal do desígnio de um Deus alheio à história nem de “profecias” predeterminadas. São acontecimentos fruto da liberdade humana. Jesus foi livre para arriscar-se em sua atividade durante meses e com seu gesto no Templo. E foram livres os que o mataram. Na paixão, ninguém será marionete de Deus, mas todos  estarão no jogo das liberdades dos homens, tanto a dos assassinos, quanto a do que foi assassinado por causa da justiça.
(Mt 10, 16-33; Mc 13, 9-13; Lc 12, 4-12; 21; 12-19)
















94
À DIREITA E À ESQUERDA



Quando saímos de Cafarnaum, a caminho de Jerusalém, o sol já estava quente. Íamos os doze do grupo com Maria, a mãe de Jesus, sua vizinha Susana, minha mãe Salomé e Maria, de Magdala. Jesus abria a marcha. Caminhava depressa... A primavera com suas cores, vestia os campos da Galiléia. Quando já era escuro, chegamos a Jenin e decidimos passar a noite num dos campos que rodeiam a pequena cidade, na fronteira entre a Samaria e a Galiléia...

Salomé: Com esses ossos de frango que eu trouxe, faço uma sopa de chupar os dedos... O que você acha?
Susana: Boa idéia, Salomé... A noite vai ser fria. Se esquentarmos as tripas desses sem-vergonhas, eles dormirão melhor... Ei, você, menina, vai buscar um punhado de tomilho... É isso que dá sabor à sopa...

A madalena foi buscar o tomilho enquanto Susana, Salomé e Maria, junto ao fogo, preparavam o jantar daquela primeira noite de viagem...

Salomé: Qual é a dessa madalena?... tem um gingado e uns olhares...
Susana: É o que você está vendo, Salomé. Jesus diz que ela mudou muito, mas minha avó também dizia que gênio ruim e feia figura vão até à sepultura...
Madalena: Aqui está o tomilho...
Salomé: Traga aqui, vamos... Mas, que erva é esta, menina?... Isto não é tomilho...
Madalena: É sim, dona Salomé... Cheire as folhas... É tomilho...
Salomé: Bem, jogue-as aí no caldeirão... O que não mata, engorda.
Maria: Vamos jogar um pedaço de queijo também, o que acham?
Salomé: Não, Maria, a sopa e essas azeitonas já é o suficiente...
Madalena: Pois o Pedro disse que está com uma fome danada...!
Salomé: Ele sempre está. Não se satisfaz com nada. Parece um saco sem fundo.
Madalena: É, ele está bem forte. Não é para menos que Jesus o tem como braço direito...
Salomé: Braço direito de que?
Madalena: Bem, depois de Jesus, Pedro.
Salomé: Muito, bem, de onde você está tirando essa idéia, madalena, diga?
Madalena: De onde estou tirando? Todo mundo sabe disso! A senhora não sabia, dona Maria... ei, você que é mãe de Jesus... ele não lhe disse?
Maria: Não, eu não sabia de nada, mas...
Salomé: Você é uma fuxiqueira, madalena, uma língua comprida!
Madalena: Eu? Por que sou fuxiqueira? Dona Maria, não é verdade que Jesus confia mais no Pedro-pedrada?
Maria: Não sei, eu acho que... confia em todos, madalena. Não tenho reparado muito nisso, mas...
Madalena: Pois então repare e veja se eu sou uma fuxiqueira ou se essa Salomé é que é uma desconfiada, diacho! Eu ouvi dizer por aí e foram seus próprios filhos, sim, sim, Tiago e João, essas belas figuras, que se acontecer alguma desgraça a Jesus, que Deus o livre e guarde, tocará a Pedro agarrar o timão do barco...
Susana: Ai, menina, não fale agora de desgraças...!
Madalena: Está bem, então eu me calo, mas a verdade é que estamos metidos numa gorda confusão com esta viagem para Jerusalém. Sim, agora Jesus vai dar a cara por todos, mas se acontecer alguma coisa com ele, quem tocará o barco será Pedro...
Salomé: De novo a mesma história!...  Por que Pedro, vamos ver, diga por que?
Madalena: Veja, senhora, Jesus tem um bom olho e, entre todos esses bandidos soube escolher alguém que é um tantinho assim mais decente, caramba. Esse Pedro tem lá as suas, sim, mas também tem palavra... Não é como os... “outros”.
Salomé: De quem você falando como ... “outros”?
Madalena: De... ninguém.
Maria: Bem, parem de se cutucar. Vamos, menina, vai dizer aos homens que venham, a sopa já está fervendo...
Madalena: Ei, Jesus!! Ei, todo mundo, venham comer!... Venham logo!!
Salomé: Viu só, Maria, e você, Suzana, viu como essa fulana defende o Pedro?... Descarada. Só podia ser rameira... A sem-vergonhice lhe sai pelos poros!
Maria: Esqueça isso, Salomé. Acho que ela não falou por mal...
Salomé: Não a defenda, Maria... Ela não perde a oportunidade de dar umas piscadelas para os meus filhos... Bela safada! Não bastava já ter ido atrás de tantos outros?!...
Susana: Vai ver era para cobrar alguma dívida...
Maria: Cale-se, Susana, não complique mais as coisas...
Salomé: Eu não sei, Maria, mas com essa mulher no meio de tantos homens...

Felipe: Esta sopa merece um aplauso, sim senhor!
Natanael: Está tão gostosa que até esqueci a dor dos meus calos!
Pedro: Pois eu estou sentindo um saborzinho meio estranho...
João: Isso é coisa da sua cabeça, Pedro...
Tiago: O que falta agora é vinho!
Maria: Amanhã o compraremos em Siquém. Ali tem do bom.
Tiago: Puah! O vinho samaritano tem gosto de óleo de rícino...
Felipe: Lá vem o Tiago com suas manias. Deixemos os samaritanos de lado e vamos jogar dados, companheiros... Você joga, Jesus?
Jesus: Só quando acabar de chupar esse osso, Felipe. Comecem vocês...

Jesus ficou sentado perto das brasas, enquanto as mulheres recolhiam as sobras e guardavam os pedaços de pão para o dia seguinte. Nós doze, nos afastamos um pouco, até onde a lua, com sua meia roda de luz branca, nos iluminava o suficiente para que ninguém fizesse trapaça nos dados...

Jesus: E então, mamãe, muito cansada...?
Maria: Até que não, filho. Já fazia muito tempo que não caminhava tantas milhas de uma vez, mas vou agüentando...
Susana: Sabe de uma coisa, Jesus? Sua mãe já tem idade mas ainda conserva pernas de uma jovenzinha... Em compensação, esta aqui, já está caindo de sono... Ahuuummm...!

Felipe: Oito! Esta rodada já é minha! Iupiii! Estou com sorte, camaradas!
Tiago: Vai pros quintos, Felipe! Ei, Pedro, vamos lá, é sua vez...
Pedro: Não... vai outro... eu... eu vou ter que dar uma saidinha...
Tiago: Mas, o que acontece, homem?
Pedro: Puff!...Tantas horas sem comer nada... e záz!, de repente essa sopa que tinha um saborzinho meio estranho...
Felipe: Para mim estava muito boa... Esquentou-me as tripas...
Pedro: Para mim, embrulhou-me o estômago... Uff!... É como uma tempestade no lago de Tiberíades... Olhem, acho melhor resolver esse assunto por aí... porque se não... uff!...
João: Vai bem longe, pedrada, pelo amor à sua avó!
Felipe: E volte logo!

Pedro se afastou até um pequeno bosque de olivas e se perdeu entre as árvores...

Salomé: Olhe só essas três... Já estão roncando...
Jesus: Sim, Salomé... ainda lhe ficou uma palavra colada na boca...
Salomé: Escute, Jesus, agora que estamos sós, eu queria lhe dizer uma coisa.
Jesus: Pois, diga, Salomé...
Salomé: Venha, vamos mais para lá, para não despertar essas dorminhocas...

Minha mãe e Jesus foram até o pequeno bosque de oliveiras e se sentaram junto a uma árvore...

Salomé: Trata-se dessa madaleninha, Jesus... Ela é um diacho...!
Jesus: O que aconteceu? Andaram discutindo?
Salomé: Eu não gosto de falar, moreno, mas essa mulher e Pedro...! Não que eu queira pensar mal, ou o Pedro está paquerando a danada, ou ela está paquerando o Pedro... Aqui não tem trigo limpo.
Jesus: Mas, não me diga uma coisa dessa, dona Salomé...
Salomé: Ai, se a Rufina tivesse vindo!... Sim, sim, a coisa é com Pedro... Para Madalena, Pedro é o
máximo. É o mais forte, o mais valente de todos, o melhor... Está dando muito na cara, Jesus. Ela não sabe esconder... e como vai saber!... Tantos anos no ofício... Bem, não é que eu queira prejudica-la, mas essa mulher é perigosa...
Jesus: Você acha mesmo, dona Salomé?
Salomé: E o pior não é isso. Agora anda espalhando que você disse que o pedrada é seu braço direito. E que, depois de você, é o Pedro. Eu acho que isso não pode ser. Não posso acreditar. Você e todos conhecem o Pedro: muito barulho pra pouca coisa. Um maluco, isso é o que ele é... Ela diz que é valente! Mas, qualquer barulho o espanta!... Enfim, para que falar nisso?
Jesus: Não, não, continue falando...
Salomé: Olhe, Jesus, dizem que o diabo sabe mais por velho do que por diabo. E eu já tenho cabelos brancos, moreno. Quer um conselho?
Jesus: Vejamos, dona Salomé, que venha o conselho...
Salomé: Com um braço direito como Pedro... melhor é ficar maneta! Jesus, você precisa de um braço direito e um braço esquerdo. Dois bons braços dispostos, firmes, que o ajudem e o defendam...
Jesus: E em quem você está pensando?
Salomé: Nos meus filhos. E não por serem meus, mas porque merecem. Tiago e João são capazes de dar até a última gota de sangue por você, se for preciso. Pense bem, Jesus ponha de lado esse babão do Pedro e apóie-se nos meus filhos. Um à sua direita, outro à sua esquerda.
Pedro: Ah, seu pudesse agarrar você, velha traidora. Aos diabos com essa Salomé! Aqui!!! Todos aqui!!!

Os gritos escandalosos de Pedro estremeceram o olival e puseram todos de pé, nós jogadores de dados e as três mulheres que já estavam dormindo. Todos saímos correndo até onde Pedro, esgüelando-se, nos chamava...

Jesus: Mas, Pedro, de onde você saiu? Onde estava metido?
Pedro: Estava ali, atrás daquela árvore. E ouvi tudo!
Salomé: E pode-se saber o que você estava fazendo ali, condenado?
Pedro: Algo mais digno do que você estava fazendo, se quer saber. Todos aqui! Corram e arranquem a língua desta bruxa!
Tiago: Mas, o que está acontecendo, caramba? A troco de quê essa gritaria, Pedro?
Pedro: O que está acontecendo? É que esta senhora sua mãe é uma fofoqueira e uma conspiradora! Sabe o que ela disse? Que a madalena e eu temos um caso.
Madalena: Como? Quem me meteu nessa confusão? Demônios, mas, quem disse isso? Vamos ver, o que eu fiz para você me jogar nessa arapuca, Salomé?
Tiago: Cale essa boca, Maria e não estique mais a corda!
Pedro: Quem esticou a corda foi a senhora sua mãe, está ouvindo? E foi, você, cabelo-de-fogo, e você, João, seu mosca morta, vocês dois, dupla de sem-vergonhas!

Tivemos muito trabalho para esfriar a raiva de Pedro que nos explicou o que tinha ouvido entre aquelas árvores. Enquanto ele falava, minha mãe, Salomé, não levantou os olhos do chão...

Felipe: Então é assim? A troco de quê Salomé disse isso tudo?
Pedro: Sim, senhor. Esta velha merece ser enforcada.
Tiago: Espere, Pedro, se você está com tanta coceira, alguma coisa deve haver..
Pedro: O que você está insinuando agora?
Tiago: Você é que está insinuando coisas muito estranhas. Veja só, quem diabos disse que você seria o braço direito de alguém?
Pedro: Jesus disse, quando viajamos para o norte. Não se lembra?
João: O moreno não disse isso! Isso era o que você queria que ele dissesse. Mas não disse!
Pedro: Vocês estão vendo? São iguaizinhos à mãe! Conspiradores os dois! Vocês mandaram que ela falasse mal de mim!
Tiago: Se você tornar a mencionar minha mãe, Pedro, eu lhe arranco as barbas!
Pedro: Por que você não vem, Tiago, que esta noite eu não me deito sem estrangulá-lo.
Madalena: Bem, bem, tudo começou por minha culpa, não é? Pois estou caindo fora! Agora mesmo vou dar meia volta e... direto para Cafarnaum!
Jesus: Não, Maria, você não vai a parte alguma.
Pedro: Aqui, a única pessoa que tem que se mandar é essa velha resmungona. E seus dois filhos!
Jesus: Aqui, ninguém vai embora, Pedro. Nem Salomé, nem Maria, nem vocês dois, nem ninguém. Acho que já chega, caramba! É a primeira noite que estamos juntos e já estamos nos bicando como galos. Estamos indo para Jerusalém e as coisas vão ficar difíceis. Temos que estar unidos. Se chegar o momento de beber o gole amargo, todos teremos de beber do mesmo copo. Todos. Temos que acabar com essa história de braços direitos e braços esquerdos entre nós. Aqui ninguém é mais que ninguém. Todos estamos dentro do mesmo barco e todos temos de remar para seguir adiante. Ou vamos de vento em popa juntos, ou nos afundamos todos!
João: E iremos de vento em popa, moreno! Está certo, companheiros! Jesus tem razão. E, agora, vamos para outro canto que o perfume daqui não dá para agüentar!

Naquela noite todos custaram a dormir. Pedro resmungou até bem tarde. E minha mãe, Salomé, deu voltas e voltas antes de adormecer. Estávamos muito cansados. Na manhã seguinte tínhamos que madrugar para continuar nossa viagem a Jerusalém.


O evangelho fala constantemente que várias mulheres tomavam parte do grupo de Jesus e o seguiam quando ia de povoado em povoado anunciando o Reino de Deus (Mc 15, 40-41; Lc 8, 1-3). Há uma enorme novidade no fato de Jesus permitir que mulheres o acompanhassem junto com seus discípulos. Salomé, Susana, Maria Madalena – e outras mais que seguramente fariam parte do grupo – tornam-se assim um sinal do caráter revolucionário do evangelho numa sociedade totalmente machista. As palavras e as atitudes de Jesus com relação às mulheres chocaram-se profundamente com os costumes de sua época. A Igreja cristã, para ser fiel a Jesus, deve ser um espaço de verdadeira igualdade entre homens e mulheres, onde ninguém se sinta discriminado por seu sexo na hora de realizar as tarefas de serviço à comunidade.

No grupo de Jesus, como em qualquer grupo humano, nem tudo seria um mar de rosas. Haveria ambições, disputas, suspeitas, desconfianças, mentiras. Nem sempre dramáticas. Bastaria que fossem conflitos cotidianos, para que a convivência sofresse altos e baixos. Assim acontece em toda relação humana coletiva. Concretamente, a presença da Madalena deve ter provocado muitos choques, por tudo o que representava sua profissão para o resto do grupo. Jesus não camuflou esses conflitos. Ao reunir gente tão diferente, os propiciou. Essas crises no interior da comunidade podem às vezes ser muito saudáveis, pois fazem aflorar as contradições e permitem o grupo avançar no conhecimento, tanto de suas possibilidades como de suas limitações.

Jesus não pretende que esses conflitos desapareçam. No que ele se mostra exigente é que ninguém queira se colocar por cima de ninguém. Na comunidade não deve haver nenhum privilégio, nenhuma opressão de uns sobre os outros, nenhuma diferença baseada em maior inteligência, mais habilidade ou outra razão qualquer. Frente ao modelo “senhor-escravo” que os poderes do mundo tratam de manter – tanto nos tempos de Jesus como em nossos dias – o evangelho se apresenta como uma alternativa. Trata-se de criar uma comunidade onde este esquema de dependência seja substituído pela raiz. Comunidades em que todos os seus integrantes vivam como iguais, onde a única autoridade seja a de Deus, onde só se rivalize para realizar o melhor para os demais. As comunidades cristãs devem ser a consciência crítica de nossas sociedades, baseadas no poder, nos privilégios e nas desigualdades.

Neste episódio, mais do que colocar o problema surgido pela inveja de Salomé como um complô “para tomar o poder”, ou como uma transcendental intriga política, pretende-se enfocar a cena do ponto de vista muito mais cotidiano. O típico preconceito moral, a pequena ambição materna de ver seus filhos progredirem, a inveja que não se pode dissimular, são a causa do conflito. A cena de humor protagonizada por Pedro foi inspirada por um texto do AT, no qual Davi vive uma situação semelhante quando é perseguido por Saul (1 Sm 24, 1-8). A Bíblia está cheia de cenas picarescas que caracterizam a vida diária e não são, certamente, nem insípidas, nem incolores, nem inodoras...

(Mt 20, 20-28; Mc 10, 35-45)































95

SETENTA VEZES SETE




Antes do amanhecer, quando os primeiros galos samaritanos romperam a cantar, nos levantamos e continuamos nossa viagem ao sul, para Jerusalém. A manhã era fresca. Pelo oriente, as nuvens tingidas de rosa anunciavam um dia de sol radiante...

Madalena: Ahuuuummmm...! E então, Pedro?... Dormiu bem?
Pedro: Nem bem, nem mal. Não dormi. E o que isso lhe interessa, Madalena?... Pare de se meter na minha vida, está bem?
Madalena: Que sujeito mais mal humorado!... É isso que dá a gente se interessar pelas pessoas...
Pedro: Olhe, não adiante dissimular... Aqueles dois, o “Tiaguinho e o Joãozinho” mandaram você me perguntar essa besteira... só para fazer as pazes, não é?
Madalena: O que é isso, Pedro, pare de coçar essa sarna....
Pedro: Eu coço se tiver vontade, está ouvindo? E diga a esses dois malditos filhos de Zebedeu, que por algum motivo me chamam de “pedra”. E que não adianta eles quererem me amaciar com mel e azeite.

Durante toda aquela manhã de caminho, Pedro não disse uma palavra sequer. O que havia acontecido na noite anterior em Jenin com minha mãe. Salomé, o havia deixado com o diabo no corpo. Os outros também não falavam muito... Ao meio-dia chegamos a Siquém para comer...

Felipe: E aí, dona Salomé, essas tâmaras vêm ou não vêm...? daqui a pouco vão criar bigatos de tanto ficarem escondidas...
Madalena: O que vai criar bigatos é a língua do Pedro... Já repararam que este narigudo está muito calado...?
Natanael: Pare de provocar, Maria, senão vai correr sangue por aqui!...
Madalena: Bah! Esse sangue não vai longe... Eu já conheço essas bobagens!
Tiago: Pois, escutem, esse pescado estava uma delícia, não é mesmo? Seu tempero estava muito bom, mamãe...  Quer mais um pouco, Pedro?... Pedro...
Pedro: Engula você, Tiago. E que o diabo permita que uma espinha atravesse sua garganta!
Tiago: Mas, Pedro, você precisa abrir um pouco essa sua cabeça dura, para que possa entender...
Pedro: E o que é que eu tenho para entender, ruivão dos diabos, diga lá? O que é que eu tenho que entender?
Tiago: Mas, Pedro, eu já lhe expliquei...
Madalena: Não vamos começar de novo, a encrenca de ontem à noite já passou... Não vamos passar a viagem inteira batendo na mesma tecla...
Pedro: Feche o bico, madalena, que se você não fosse o que é, esse assunto não teria fedido tanto...
Madalena: Ah, é mesmo? Então sou eu a culpada das firulas de vocês? Caia fora, conterrâneo, que eu não estou nem aí!
André: Mas, Simão, você está levando a sério as fofocas da dona Salomé? Você a conhece muito bem! Palavras bobas, orelhas surdas!
João: Espere um pouco, André. Ninguém chama minha mãe de idiota, está entendendo, nem você, nem ninguém, está ouvindo?
Mateus: Olhem só quem está dando uma de valente agora.... Depois sai correndo com o rabo entre as pernas, não é João? Você sabe muito bem o que estou dizendo. Rá!
João: Não me faça falar, Mateus, se não quiser ouvir o que não lhe convém, lambe-botas de Herodes!
Tomé: Compa-panheirios, não se ati-tirem pedras... aqui to-todo mundo te-tem te-telhado de vi-vidro!
Pedro: Engula sua língua travada, Tomé, e não se meta nisso!
Judas: Quem vai se meter nisso, sou eu, diacho! Já estou farto de tanta inveja e de tanta conversa besta!
João: Ah, é? Quer dizer então que o bestalhado sou eu, Judas?
Judas: É isso mesmo que você é, João! E daquela vez da viagem ao norte foi a mesma coisa. E que o Natanael era um covarde, e que o Felipe era mais xucro que um camelo...
Felipe: Você disse isso de mim, João?... Você é que não tem dez gramas de tutano, tá certo? Repita isso na minha frente, vamos lá!
Natanael: Cale a boca, Felipe, deixe o Judas despejar tudo. Vamos, Judas, desembuche. Isso não vai ficar assim. Quero tudo preto no branco!
Tiago: Pare com isso, Natanael, não seja estúpido. Não está percebendo que Judas está acusando meu irmão para ficar do lado de Pedro? Não entendeu a manobra?
Judas: Mas, o que você está dizendo agora, seu safado? Por que preciso ficar do lado de Pedro? O que você acha que é, que são todos iguais a você, que puxa o saco de quem está por cima?
Tiago: Se eu puxo o saco, você lambe, condenado iscariote!
Jesus: Parem com isso todos vocês, será que não se podo comer um punhado de tâmaras em paz?! Aqui não faz falta soldados de Herodes nem os de Roma... Estamos nos matando uns aos outros...
Tiago: Cale e a boca você também, Jesus, e não defenda Judas!
Pedro: Cale a boca você, Tiago, e pare de defender-se a si mesmo, que aqui o único culpado de tudo é você, fanfarrão, boca-grande!
Tiago: Se alguém aqui tem culpa é você, Pedro, só você, ninguém mais que você!
Pedro: Agora é que eu vou ter culpa mesmo, cabelo-de-fogo, porque eu vou esganar você!

Pedro, saltando por cima de Mateus e de Tomé, se lançou sobre meu irmão Tiago e o agarrou pelo pescoço... Toda a raiva que tinha guardado em silêncio desde a noite anterior, subiu-lhe pelas mãos. Tiago o recebeu a tapas...

Madalena: Eles vão se matar! Eles vão se matar!
João: Por Deus, separem os dois!

Uns se atiraram sobre Pedro e outros sobre Tiago, mas como os ânimos estavam demasiado quentes, logo todos os vimos envolvidos na briga e, quem mais, quem menos, pescou alguma bofetada naquele rio revolto. A tempestade durou um bom tempo e, no fim, fomos esfriando a cabeça... Não era a primeira vez que brigávamos e, porque nos conhecíamos bem, sabíamos que também não seria a última... O resultado foi que continuamos a viagem e, à altura de Silo, já estava tudo esquecido e voltamos a rir e jogar conversa fora... Somente Pedro continuava resmungando... Sem levantar os olhos do chão, conversava com Jesus, afastado dos demais...

Pedro: Não, não e não. Eu não olho mais para a cara do Tiago. Ele morreu. Por mim, que o enterrem.
Jesus: Mas, Pedro, por favor, escute o que lhe digo: se nos mordermos entre nós e nos dividirmos, o que resta esperar dos que estão lá em cima?
Pedro: É que não é a primeira vez, Jesus. Você não se lembra do mês passado lá no cais? É sempre a mesma história. Esse cabelo-de-fogo é um safado. Já estou com ele por aqui, ó!!!
Jesus: O que aconteceu, aconteceu, Pedro!
Pedro: Aconteceu, aconteceu e continuará acontecendo. Até quando terei de agüentar isso, heim? Uma vez, tudo bem. Mas outra vez e outra e outra mais e...
Jesus: ... E outra mais e outra e sete vezes e até setenta vezes sete. Sempre.
Pedro: Ah, é? Muito engraçado você! E será que se pode saber por quê motivo tenho de suportar as safadezas desse bandido?
Jesus: Porque... porque um grãozinho de areia não é nada perto de uma montanha.

Jesus: O reino em que reinava o rei Sadai era extenso como o Grande Mar. Cinco jornadas eram necessárias para percorre-lo de um confim ao outro. Para administrá-lo, o rei havia espalhado por todas as províncias funcionários que se encarregavam de distribuir os dinheiros do reino... Mas alguns funcionários, como Nereu, eram uns grandes bandidos...

           Nereu: Vesgo, vesgo... pegue aqui...
           Vesgo: Mas, Nereu, é muito dinheiro... E se nos descobrem?
Nereu: Corra, tira-o logo do país!... Que ninguém o veja!... Voltarei amanhã!

Jesus: Nereu voltou no dia seguinte e no outro e no outro. Sempre saía de seu escritório com um gordo saco de moedas debaixo da túnica e as entregava ao seu comparsa, o vesgo...

Nereu: Acabaram-se os tempos de sopa de cebola e farrapos! Logo serás milionário, Nereu, terás mais dinheiro que o próprio rei!
Um soldado: Você está preso, Nereu!
Nereu: O que... o que está acontecendo?
Soldado: Ladrão, contrabandista, maldito. Com um só pontapé eu o porei diante do rei e, quando souber o que você roubou, lhe cortará a cabeça, safado! Vamos, andando!
Rei: Cem milhões de denários! Você se dá conta disso, Nereu? É uma dívida maior que o monte Ararat! Nem em toda sua vida, trabalhando dia e noite, conseguirá me pagar. Chamem o verdugo e cortem o pescoço desse sem-vergonha!
Nereu: Não, não! Tenha compaixão de mim, rei Sadai! Tenha compaixão e perdoe-me!... Perdão, perdão!!
Rei: Está bem, você não morrerá. Mas amanhã, logo cedo, será vendido como escravo. E sua mulher e seus filhos também. É o mínimo que você merece por ser ladrão!
Nereu: Não, não! Tenha piedade de mim, rei Sadai! Eu... eu não sabia o que estava fazendo.
Rei: Não sabia o que estava fazendo...?
Nereu: Bem, eu sabia, mas... perdoe-me de qualquer modo!

Jesus: E como o rei Sadai era bom e seu coração era maior que o imenso reino que governava e ainda maior que a dívida de seu funcionário, o perdoou.

Rei: Está bem, Nereu. Eu o perdôo. Volte ao seu posto. A conta está apagada. Já não vou me lembrar mais dela.

Vesgo: Mas que sorte você teve, heim, Nereu! Nasceu virado pra lua, condenado!
Nereu: É, Vesgo, virado pra lua, mas sem dinheiro. Agora não tenho sequer um centavo para comprar uma tâmara.
Vesgo: Homem, dê-se por contente... Podia ter perdido o pescoço... O dinheiro é o de menos...
Nereu: Como assim? Acha que é o de menos, não é? Pois, olhe, vesgo, pode ir pagando o que você me deve, que se lembro bem lhe emprestei cem denários...
Vesgo: Bah, isso foi há muito tempo! Antes de eu entortar os olhos!
Nereu: Pois eles vão ficar mais tortos ainda se não pagar o que me deve!
Vesgo: Está bem, Nereu. Eu lhe pagarei quando receber o salário...
Nereu: Nada disso. Quero meu dinheiro agora mesmo, está ouvindo? Agora mesmo!
Vesgo: Mas, espere, homem, agora mesmo não... Ahhggg...!

Jesus: Nereu se lançou sobre seu companheiro e o agarrou pelo pescoço e o apertava com força...

Vesgo: Ahhgg...! Não tenho dinheiro... espere, por favor, esperer...
Nereu: Não vou esperar nem mais um minuto. Ou paga agora ou vai para a cadeia!!
Vesgo: Tenha compaixão de mim... tenha compaixão...!

Jesus: Mas Nereu não teve compaixão daquele pobre coitado e o mandou prender...

Um soldado: Foi isso que aconteceu, meu rei... Primeiro arrastou o vesgo por toda a cidade e depois o trancou na cadeia...
Rei: Vão buscar esse Nereu e tragam-no outra vez aqui! Agora ele vai saber quem eu sou! Ele me devia cem milhões e eu o perdoei! Não podia ele ter perdoado ao que lhe devia apenas cem denários?

Pedro: E como acabou a história, Jesus?
Jesus: Simplesmente o rei ficou furioso e meteu Nereu na cadeia.
Pedro: Bem feito! Se fosse eu, agarrava esse homem e o esquartejava!
Jesus: Como?... Esse homem é você mesmo, Pedro. Você fez a mesma coisa que Nereu.
Pedro: Eu...? Ah, claro, já sei onde você quer chegar...
Jesus: Por onde chegou o rei Sadai. Você e Tiago e todos nós temos uma montanha de dívidas com Deus. E não perdoamos os grãozinhos de areia que os outros nos devem.

Pedro resfolegou e apertou o passo... E ainda continuou um tempo meio aborrecido. Mas depois, antes que o sol se pusesse, aproximou-se de meu irmão Tiago, começou a conversar com ele e acabaram fazendo as pazes. O fato é que com Jesus aprendemos a fazer vista grossa com as ofensas dos outros para que Deus se esquecesse também das nossas.


Na relação humana de cada dia, uma pequena discussão pode degenerar facilmente numa briga generalizada, na qual vêm à tona acusações pendentes de há muito tempo e toda uma série de mal-entendidos. Isso é perfeitamente lógico. Faz parte da convivência. Não se pode fazer dos discípulos de Jesus pessoas alheias a essas altercações. Por causa da situação social de onde vinham, pelo caráter com que são traçados muitos deles, pela situação em que se encontravam desde que estavam com Jesus – de risco e incerteza – e pelo próprio testemunho evangélico (Mt 20, 24; Lc 22, 24), é praticamente certo de que se envolveriam em discussões semelhantes às que se apresentam neste episódio.

O número sete era um número especialmente importante no mundo israelita. A origem estava na observação das quatro fases da lua, que duram cada uma delas sete dias. Daí os israelitas passaram a associar o número sete a um período completo, cheio. O sete passou a ser sinônimo de plenitude, de algo acabado, inteiro. O sete significa para Israel a totalidade e, com um matiz teológico, a totalidade querida por Deus. Assim, a ordem do tempo estava baseada no sete (o sábado, dia sagrado, chegava a cada sete dias), o candelabro do Templo tinha sete braços etc. Por exemplo, o verbo hebraico “jurar” significa literalmente “setearse”, isto é, chamar por testemunha os sete poderes do céu e da terra. O sete é, pois, um número redondo. Perdoar “sete” vezes indica perdoar “de tudo”, completamente. Como um “apagar e página em branco”. Para realçar ainda mais esta idéia, Jesus diz a Pedro para perdoar “setenta vezes sete”. Setenta é uma combinação do 7 e do 10. Se o sete era a plenitude e a totalidade, o dez (a origem estava nos dez dedos da mão), também tinha um caráter de número redondo ainda que em um sentido menor. “Setenta vezes sete” quer dizer sempre, em toda ocasião, sem exceção etc.

A parábola do “servo sem coração” é tipicamente oriental pelo exagero das cifras das dívidas. Dez mil talentos é o equivalente a cem milhões de denários. Isto é, o salário de cem milhões de jornadas de trabalho. É uma soma gigantesca que escapa à realidade, que nem se pode imaginar. Com ela, se quer frisar fortemente o contraste com os escassos cem denários da pequena dívida entre dois companheiros. Nesta parábola, Jesus, além de falar de um caso acontecido na Palestina, está se referindo muito mais a um rei estrangeiro, ao estilo dos soberanos do Oriente. Isto se nota, por exemplo, na ordem que o rei dá de vender os filhos e a mulher do devedor, costume que não era israelita, ou no fato de mandar prende-lo como pagamento de suas dívidas, lei que não existia no direito judaico.

No tempo de Jesus, os escritos dos rabinos que falavam sobre o juízo final, referiam-se sempre às duas medidas que Deus usa para governar o mundo: uma, a medida da misericórdia; outra, a da justiça. Ao final, diziam os rabinos – “a misericórdia desaparece, a compaixão fica afastada e a benevolência se esfuma”. Só ficará a pura justiça. Jesus transformou totalmente esta idéia teológica de seu tempo. Ensinou que também a misericórdia, o perdão de Deus serão válidos na hora final do ajuste de contas, mas acrescentou um dado decisivo. Esse perdão de Deus chegará somente aos que tenham perdoado, para aqueles que, sabendo-se perdoados por Deus tenham tido misericórdia para como seus irmãos. Enquanto que, aquele que tenha menosprezado o perdão de Deus será  alcançado em cheio pela justiça. A medida, como indica a oração do Pai Nosso, é posta por nós mesmos: “Perdoa nossas ofensas assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendido”.

O perdão entre os homens é uma categoria básica do evangelho. Quando alguém perdoa, corre um risco. Jesus, ao perdoar, arriscava sua confiança em alguém, esperando que este gesto se transformasse num chamado que sacudisse a consciência e permitisse ao outro mudar de conduta. Assim o fez com Mateus, com a Madalena, com Zaqueu, com Nicodemos... Entabulou com eles uma nova relação, deixando de lado qualquer preconceito, perdoando o passado para alcançar um futuro diferente. Trata-se de uma atitude positiva, profundamente otimista diante do homem: o mal nunca tem a última palavra, o ser humano é capaz de transformação. Isto é o perdão cristão, um excesso de confiança – nunca ingênua – pelo qual nos entregamos ao outro e nos colocamos em suas mãos com a esperança da comunidade. É um gesto-limite para superar situações-limite de ruptura.

É difícil falar de perdão, de reconciliação, quando saímos do âmbito da comunidade dos irmãos e passamos para o nível de uma sociedade desigual e injusta. Quase sempre se usou a mensagem de reconciliação do evangelho como um fator de alienação. O amor cristão é combate, denúncia e crítica, mas é preciso superar o círculo vicioso das revanches e desforras amargas, e pela capacidade de perdão reconciliação do evangelho como um fator de alienação. O amor cristão é combate, denúncia e crítica, é preciso apontar com força para uma nova justiça em uma nova sociedade.

(Mt 18, 21-35)

















96
AS PROSTITUTAS IRÃO À FRENTE



Começava o mês de Nizan, o da primavera. A planície do Esdrelon amanheceu vestida de margaridas amarelas e lírios silvestres. Todo o campo cheirava à terra úmida esperando os novos brotos. Em poucos dias deixamos para trás a Galiléia. Íamos para a Judéia, a terra seca. No terceiro dia de caminho, vimos aparecer lá no fundo a silhueta de Jerusalém, a cidade santa, preparando-se para a próxima festa da Páscoa...

Maria: Jesus, meu filho, estou com medo...
Jesus: Medo de quê, mamãe?
Maria: De Jerusalém. Outras vezes, quando via de longe as muralhas da cidade, parecia-me que era a coroa de uma rainha. Não sei, agora me parecem como muitos dentes de pedra, como se fosse uma grande boca, ameaçando...
Jesus: Jerusalém é uma rainha, sim, mas uma rainha assassina. Quando um profeta levanta a cabeça para denunciá-la, essa grande boca se fecha e morde.
Maria: Ai, filho, por Deus, não fale assim, que você me assusta ainda mais...!

Já estava escurecendo quando, muito cansados e com os pés cheios de bolhas, cruzamos pela porta que chamam do Pescado e entramos em Jerusalém. Tínhamos que passar perto do muro dos asmoneus, onde todas as noites, enfileiradas e muito pintadas, exibiam-se as prostitutas de Jerusalém...

Salomé: Olhe só essas mulherzinhas cantando! Será que não sentem vergonha?
Felipe: Ora, dona Salomé, se não se anuncia a mercado, não se vende. Quando eu andava com meu carroção fazia a mesma coisa.
Salomé: Não seja indecente, Felipe.
Felipe: Além disso, pode reparar, essas mulheres são umas infelizes...
Salomé: Para reparar já tenho o suficiente com  a “nossa madaleninha”... Olhe só para ela, repare como fica olhando para lá...
Filomena: Maria, Maria!

Quando nos demos conta, Maria, de Magdala, já havia saído correndo para cumprimentar aquela sua amiga que lhe fazia sinais do muro...

Salomé: Eu não lhe disse, Felipe? A cabrita sobe o monte!

Filomena: Caramba, Mariazinha, que bons ventos a trazem para cá, menina?!
Madalena: Eu é que pergunto, Filomena, o que você faz aqui em Jerusalém? Está perdida nessa cidade de malucos?
Filomena: Eu já perdi a vergonha... Mas, afora isso, nada mais... Maria, garota, você ainda está jovem, no entanto eu, já na virada dos trinta... Antes os clientes corriam atrás de mim. Agora sou eu que corro atrás deles, entende?
Madalena: E você correu tanto que chegou a Jerusalém!
Filomena: Isso mesmo, companheira. Mas, pelo visto, você também está se mudando para a capital. O que foi? As coisas não deram certo em Cafarnaum?
Madalena: Não, Filomena, acontece que já deixei... o negócio.
Filomena: Como? Será que estou ouvindo bem? Você nos traiu...? Não acredito, Maria!
Madalena: Pode crer, Filó. Já faz alguns meses que não coloco sebo na lamparina.
Filomena: E o que você está fazendo agora, menina, conte-me?
Madalena: Eu me meti em outro negócio, Filó.
Filomena: No que? Contrabando de púrpura? Amuletos de crocodilo?
Madalena: Não, nada disso. Reino de Deus.
Filomena: Reino de Deus? Isso é de comer?
Madalena: Parece que Deus se cansou de tudo isso e abriu as torneiras das nuvens e disse: “quem não souber nadar, que aprenda, porque aí vai outro dilúvio pior que o primeiro!”.
Filomena: Mas, Maria, que conversa é essa?
Madalena: Psiu! Vai rolar uma grande confusão por aqui, Filomena. Os de cima para baixo, os de baixo para cima! Eu, de minha parte, já me enfronhei no Reino de Deus.
Filomena: Pela prepúcio de Sansão, você se meteu em política, Maria? Era só o que me faltava ouvir! Deus do céu!...Mas, pensando bem, afinal de contas, a política e o nosso negócio têm tudo a ver. Mas, diga uma coisa, a quem vocês estão apoiando, os zelotas, os saduceus, a quem?
Madalena: Sei lá, Filomena! Eu não entendo nada disso. Mas eu vou onde ele for.
Filomena: Mas, de quem você está falando?
Madalena: De Jesus.
Filomena: E quem é esse?
Madalena: O melhor sujeito que eu conheci em toda minha vida.
Filomena: Ah, agora estou entendendo! Esse sujeito se apaixonou por você e a trouxe para Jerusalém.
Madalena: Não, Filó, não é nada disso.
Filomena: Bom, então foi você que se apaixonou por ele, o que dá no mesmo.
Madalena: Estou dizendo que não. Isso é outra coisa. Jesus é um tipo especial. Parece um pouco maluco, é verdade, mas é um profeta! Não, um profeta não. Sabe o que eu acho, Filó? Que Jesus é o próprio Messias!
Filomena: Isso não me espanta. Por esse muro passam todas as noites um dúzia de Messias com espada e tudo.
Madalena: Esse moreno é diferente, Filó. Quando fala, quando olha você de frente...!
Filomena: Você é que está diferente, Maria.
Madalena: Se você também o conhecesse. Ei, Filó, venha cumprimenta-lo, ande, venha!
Filomena: Espere, Maria, por aqui onde vai uma, vão todas. Ei, garotas, escondam um pouco a mercadoria e venham ver as fuças de um profeta! Não percam isso, venham!

Pouco depois, estávamos rodeados de mulheres mal vestidas, com muita pintura no rosto e cheirando fortemente a jasmim...

Madalena: Bem, este moreno é Jesus, de quem lhe falei... E os outros todos são seus amigos... Esta é Filomena, uma colega lá de Magdala e... todas estas, suas amigas e...
Filomena: Já chega de apresentações, não? Venha cá, conterrâneo, desembucha, que história é essa de Reino de Deus que vocês andam falando? Maria esteve me contando alguma coisa.
Uma prostituta: Estou interessada mais no rei do que no reino, vamos ver se ele simpatiza comigo. Diga aí, galileu, quem vai sentar-se no trono quando cantarem vitória? Você?
Jesus: Não, o que é isso! No Reino de Deus não haverá tronos nem reis nem chefes que oprimam os de baixo. Ninguém por cima de ninguém. Todos irmãos.
Filomena: Estou gostando disso, caramba, vou ver se também consigo de me livrar de uns quantos que vêm babar em cima de mim! Diacho, esses também são opressores, rá, rá, rá!

Minha mãe, Salomé, não pôde se conter...

Salomé: Escute aqui, menina, não seja tão desavergonhada. Para se limpar dessa baba, não precisa esperar o Reino de Deus. Deixe hoje mesmo essa vida que você leva e arrependa-se.
Filomena: Ah, é mesmo? Que fácil você pinta as coisas, não? Eu não sabia que arrependimento servia para ferver uma sopa. Diga lá, conterrânea, quantos filhos vocês tem? E perdoe-me o atrevimento.
Salomé: Tenho dois, graças a Deus.
Filomena: Pois eu tenho oito, graças ao diabo. Ao diabo e ao meu marido, que deve ser primo-irmão de Satanás, porque me deixou prenha oito vezes e agora me largou e não me deu um centavo para criar meus oito filhos. O que quer que eu faça, senhora? Você se acha muito senhora porque não mostra o umbigo na rua, não é mesmo? Eva também não mostrou o umbigo porque não tinha e veja o que ela fez!
Madalena: Pare com isso, Filomena, não fique assim senão vai borrar a pintura toda...
Filomena: É que isso me dá raiva, Maria...! Ao diacho com essa senhora!
Uma prostituta: Pois eu tenho muita vontade que venha logo esse Reino de Deus, para ver se melhora minha situação, porque do jeito que as coisas vão, nem com umbigo, nem sem umbigo!
Outra prostituta: Sim, homem, balance a goiabeira de uma vez e derrubem todos os parasitas que estão trepados em seus galhos!
Felipe: Psiu! Não grite tanto, desbocada, por aqui deve haver muitos guardas!
Filomena: Bah, se é só por isso! Escutem, Galileus, e você, Jesus, que deve ser a cabeça mais quente: quando derem o golpe, venham se esconder aqui com a gente. É o lugar mais seguro, escute o que lhe digo. Ninguém virá procurar o Messias no bordel da Filomena!
Uma prostituta: Não contam que foi uma colega nossa que salvou a vida dos nossos antepassados quando puseram o pé nesta terra?... Pois então, já sabem, podem começar a dar porradas que aqui vocês terão um bom lugar para se esconder.
Jesus: E quando começar o Reino de Deus, vocês também terão um bom lugar, Filomena, um lugar seguro para você e suas companheiras. Eu lhe prometo.
Uma prostituta: Muito bem, muito bem, não falemos de coisas tristes porque Deus fez a noite para se descansar e se alegrar. Ei, você que tem essas sardas, você que sabe cantar, mande uma quadrinha de boas vindas a esses conterrâneos, que ainda estão empoeirados de terra galiléia porque ainda não lavaram nem as pernas!
Outra prostituta: Então, lá vai a minha quadra...
A vocês, galileus / dedico esta canção/
Se alguém for melhor repentista / que apareça o respondão.
Filomena: Vamos lá, vamos lá, agora é a vez de vocês.
Jesus: É isso aí, Felipe, agora é sua vez...
Felipe: Você é uma garota bonita / mas tem uma cabeça maluca /
É como um tambor de festa / quem chega, logo batuca.
Filomena: Ah, é assim? Um tambor, não é mesmo?... Responda essa, garota!
Prostituta: Dizem que o pimentão da Índia / arde mais que a pimenta /
Mais arde sua língua grande / que só de ouvir, ninguém agüenta.
Filomena: Vamos, lá, vamos lá, outra... vamos ver quem ganha!
Pedro: Bom, aí vai uma para jogar um pouco de azeite na ferida...
Se eu fosse um cantador / cantaria como um amante /
Por esse par de luzeiros / que você traz no semblante.
Salómé: Pedro, não seja tão assanhado, senão conto tudo para a Rufina... Então você vai ver, ela vai dirigir os luzeiros dela para outro lado...

Embora estivéssemos ainda muito cansados da viagem, a alegria daquelas mulheres nos contagiou e começamos a bater palmas e responder suas trovas. No meio daquela algazarra, não nos demos conta do que se passava atrás de nós...

Um fariseu: Olhe só quem está aí...! Jesus, o Galileu! Era só isso que me faltava ver, o nazareno se esfregando nas prostitutas!
Outro fariseu: Parece mentira... e é esse a quem chamam profeta de Deus. Indecente!
Jesus: Ei, vocês!... Não querem vir cantar e dançar com a gente?...

Os olhos de Jesus haviam se cruzado com os daqueles fariseus, cumpridores da Lei...

Jesus: Já que estamos cantando trovas, vou dedicar esta a vocês... Escutem...
Um pai tinha dois filhos / e os dois convidou /
Pra trabalhar em sua fazenda / logo que nascesse o sol.
O primeiro filho disse não / O segundo disse sim/
Mas não deu um só passo / e não se mexeu dali.
Felipe: Que trova mais sem rima, Jesus! Alem de tudo, entendi nada...
Jesus: Mas aqueles ali, pelo jeito, entenderam, porque já foram embora. Eles são os que dizem sim e depois não fazem nada. Hipócritas! Todas essas mulheres valem mais que eles e entrarão primeiro no Reino de Deus...
Felipe: Esqueça isso agora, Jesus...
Madalena: Sim, deixe que vão embora... Vamos lá, Filomena, mande outra trova para alegrar o ambiente!
Filomena: Então, lá vai... Escute bem, fariseu / que se crê tão importante /
Neste Reino de Deus / as putas vão adiante.
Todos: É isso aí, muito bem!... Outra, outra!

Nós ficamos ainda um bom tempo cantando junto ao muro dos asmoneus. Jesus estava muito alegre, como Davi quando dançou na presença do Senhor com as criadas de Jerusalém no dia em que levou para a cidade santa a Arca da Aliança.


Em Jerusalém, cidade com grande tráfego de comerciantes, lugar de passagem de caravanas, peregrinos e “turistas”, abundavam as prostitutas. Por ocasião das festas, as possibilidades de trabalho destas mulheres aumentavam consideravelmente. A maioria delas era – como ainda acontece em nossos países – de classe muito baixa. Eram mulheres abandonadas por seus maridos, às vezes com filhos a quem tinham de alimentar com seu trabalho, ou moças – como a Madalena – ingressas nesse ofício desde muito jovens, por necessidades econômicas, já sem possibilidade de romper com esse mundo, ao qual terminavam por acostumar-se.

Jesus teve predileção pelas prostitutas, e isso deve ser interpretado como um sinal de profundidade teológica. Não foi uma predileção paternalista, do mestre perfeito que se aproxima por compaixão da mulher decaída. Foi uma profunda simpatia, que o fazia ver nessas mulheres – um dos extratos mais pobres da sociedade do seu tempo e por isso mais necessitados de libertação e esperança – as preferidas de Deus. Por serem mulheres e por serem prostitutas, elas seriam talvez o que de mais marginalizado havia em Israel. Jesus, sensível à sua situação, chegou a dizer algo autenticamente escandaloso. Elas, as rameiras, seriam as primeiras a entrarem no Reino de Deus, junto com os trapaceiros e mal-vistos cobradores de impostos. Isso foi uma subversão de toda a moral de seu tempo e por isso produziu uma reação escandalizada não só por parte das classes dirigentes, mas também por gente como Salomé ou alguns de seus discípulos.

É pura novela fazer de Maria Madalena uma mulher apaixonada por Jesus. Não se deve recorrer a esse truque barato para explicar a conversão daquela pobre mulher. Jesus, ao relacionar-se com ela de igual para igual, ao admiti-la no grupo de seus amigos, ao confiar nela, devolveu-lhe a dignidade perdida. Isto a colocou em pé e a fez mudar, fez com ela intuísse qual era a justiça que Jesus anunciava quando falava do Reino de Deus. A justiça que a ela, pobre entre os pobres, nunca ninguém lhe havia feito, também iria chegar para as mulheres de sua classe, que não tinham na sociedade senão um posto de total dependência dos caprichos dos homens. Por causa da esperança posta por Jesus nas prostitutas, por sua atitude para com elas, Madalena entendeu quem era Deus e como era seu Reino. Tudo isto basta para explicar logicamente o entusiasmo de Maria por Jesus e seu carinho para com ele, sem ter que recorrer a nenhum romantismo.

Filomena, a amiga de Maria, ao convidar Jesus para se esconder em seu bordel, esta evocando Rajab, a prostituta de Jericó que salvou os dois exploradores israelitas que prepararam o caminho do povo para a terra prometida (Js 2, 1-24). A Carta aos Hebeus louvará a fé desta rameira (Hb 11, 31) e Mateus a incluirá, por seu gesto de solidariedade, na genealogia do próprio Jesus, mais do que por fidelidade histórica, como um sinal da proximidade que Deus tem com essas mulheres a quem todos rechaçam. A trova que Jesus canta contém o tema da parábola “dos dois filhos”. É uma idéia que Jesus repete ao longo do evangelho, para mostrar que os que só usam palavras para se justificar e estão seguros de si mesmos, satisfeitos por se acharem bons – como os doutores que o escutavam e todos os dirigentes de Israel – ficarão de fora. E os outros, os pobres, os apontados como imorais, entrarão na festa de Deus.

A cena de Jesus, cantando com as prostitutas de Jerusalém, está inspirada no gesto do rei Davi quando à entrada de Jerusalém, acompanhando a Arca da Aliança, dançou com as criadas e as mulheres do povo (2 Sm 6, 1-23). Naquela ocasião, a atitude de liberdade do rei causou escândalo e lhe disseram que se comportava como “um qualquer”. Críticas semelhantes foram feitas contra Jesus. Era escandaloso que um profeta se misturasse com aquela ralé e, sobretudo, que se mostrasse tão à vontade entre elas. Tanto no gesto de Davi, como no de Jesus, há um sinal que nos revela quem é Deus: alguém que se faz “um entre tantos” junto a seus filhos mais desprezados.

(Mt 21, 28-32)