quarta-feira, 22 de junho de 2011

Novela um Tal Jesus, capítulo 73 a 84

73
A MORTE DO VELHO AVARENTO



Uma vizinha: Puxa, como está sofrendo o Manasses, santo Deus!
Outra vizinha: Pobre homem, tão bom, mas tão bonzinho mesmo!
Vizinha: Assim é a vida, mulher, caminhar direto para a morte... ai, que desgraça!

Fazia dez dias que o velho Manasses, um dos camponeses mais ricos de Cafarnaum, agonizava sobre o seu poído cobertor de lã. E fazia já dois dias que os vizinhos lotavam sua casa esperando ver a morte entrar para buscá-lo...

Manasses: Ai, ai, ai, maldição...!
Vizinha: Onde dói, pobre homem?
Manasses: Tudo!...  Me dói tudo!... ai, ai...!
Vizinha: Quer alguma coisa, Manasses? Um pouquinho de água?... Um caldinho?
Manasses: Não quero nada, caramba!...  O que eu quero é... levantar-me... desta maldita cama... e espantar todos vocês da minha casa...
Vizinha: Está demorando muito para este velho morrer!
Outra vizinha: Erva ruim é difícil de arrancar, não se esqueça...
Vizinha: Ai, pobre Manasses, tão bom, sempre tão bonzinho!... A morte não tem hora... Chega a qualquer momento... E já dá para sentir seu cheiro...
Manasses: Aaai!... Maldição... mal... di... ção...
Uma vizinha: Será que já morreu...?
Vizinha: Espere um pouco... Vamos ver...  Sim, parece que sim...
Um vizinho: Eu acho que esse sujeito já está do outro lado! Ficou mais branco que leite!
Vizinha: Sim, sim, já morreu!
Outra vizinha: Que descanse na paz de Deus!
Outra vizinha: E que os anjos venham para levá-lo ao seio de Abraão!
Vizinha: E vamos lá ao que interessa!
Uma vizinha: Eu vou levar as galinhas!
Outra vizinha: Mas, deixa disso, mulher! Eu já tinha falado que as galinhas eram minhas!
Um vizinho: Parem de brigar, que há bastante para todo mundo! O curral está cheio!
Outro vizinho: Veja, Cleto, olhe este baú... o que será que tem dentro?!
Vizinho: Alto lá, senhora, este saco de farinha já tem dono...
Vizinha: Ai, que gente! Depois de ficar esperando desde ontem à noite aqui, agora querem me deixar de mãos vazias... Vai pro diabo! Este saco é meu!
Vizinho: O saco é meu! E a farinha também!
Vizinha: Mas, onde será que esse velho escondeu o dinheiro, heim? Isso é o mais importante...

Os vizinhos do velho Manassés haviam se esparramado por toda a casa e, enquanto as carpideiras entoavam seus cantos de luto, eles enchiam as mãos com tudo o que encontravam pelos cantos. Os meninos saltavam a cerca do quintal, cada um com três ou quatro galinhas, e suas mães rebuscavam até o fundo dos baús...

Manasses: Aahhh!... Eu... eu não estou morto... Não estou morto e nem penso em morrer!

Todos ficaram paralisados com as mãos cheias de coisas. Manasses, sentado a duras penas sobre o colchão, olhava-os com olhos desafiadores...

Um vizinho: Mas, quem foi que disse que ele havia morrido, demônios?
Uma vizinha: O velho Manasses é duro na queda... Paciência!
Manasses: Não... não quero morrer... Sumam daqui, abutres!... Vão pro inferno! A única coisa que vocês querem é encher o bucho com o que é meu... e tudo isso é meu....! E fica tudo aqui! Aqui, na minha casa... ai, ai...
Vizinha: Vamos lá, Manasses, fique tranqüilo... assim... assim...
Vizinha: Não se fatigue tanto... Descanse... descanse...

Manasses voltou a deitar-se, com os olhos fechados e a respiração ofegante... As coisas voltaram aos seus lugares, as carpideiras arrumaram os cabelos e pararam de se lamentar... Foi então, quando as galinhas ainda corriam soltas pelo quintal e toda a casa estava revolta, que entraram pela porta os dois filhos de Manasses. Viviam na Peréia, longe de Cafarnaum, e até lá lhes levaram a notícia de que seu pai estava morrendo...

Joel: Mas, que diabos de confusão é essa?
Vizinha: Olhem só quem chegou, Joel e Jasão!
Jasão: O que está acontecendo aqui? O que vocês estão fazendo?
Vizinha: Estamos ajudando seu pai a morrer bem...
Vizinha: Ele tem tido uma agonia muito longa, pobrezinho...
Joel: E vocês também tiveram as mãos muito longas para metê-las por todo canto!
Manasses: Eles queriam me deixar de cueiros... Abutres condenados!... Vão embora da minha casa, estou dizendo!... Ai, ai, ai!
Joel: É isso mesmo: fora, todos pra fora daqui!
Jasão: Papai, pobre papai...
Joel: Todos pra fora, caramba! As carpideiras também!... E com as mãos vazias, heim?... Daqui vocês não levam nem uma agulha!

Pouco a pouco, de cabeça baixa, todos os vizinhos foram saindo da casa de Manasses... As longas horas de espera haviam sido inúteis: os filhos do rico camponês haviam chegado a tempo e eles eram os dois herdeiros de sua fortuna...

Manasses: Já foram...?
Jasão: Sim, papai, já foram...
Manasses: Queriam me deixar de cueiros...
Joel: Mas não conseguiram... Ai, papai, que gente mais interesseira! Só pensam em se aproveitar do que você economizou, com tanto sacrifício!
Jasão: Só ficamos sabendo ontem que você estava morrendo... Por isso não viemos antes...
Manasses: Eu... eu não estou morrendo, diacho!... Estou doente... Só isso... só isso... Ai, ai, estou me sentindo tão mal... ai...
Joel: Descanse, papai... vamos lá... acomode-se... assim... assim...
Manasses: Ai, ai, ai...
Jasão: Onde será que está o dinheiro, heim?
Joel: Eu sei lá...
Joel: Você sabe, sim, Jasão! Você sabe onde está guardado, não negue!
Manasses: Ai, ai, ai...
Joel: Não grite, Jasão, ele pode ouvir!
Jasão: Pode ouvir, pode ouvir!... Pois que ouça! O que importa? A metade deste dinheiro é minha. E você sabe disso tão bem quanto eu!
Joel: Você sabe muitíssimo bem que tudo o que o velho tem pertence a mim, e somente a mim. Sou o filho mais velho e pela lei é tudo meu. Lei é lei.
Jasão: A lei diz que o filho mais novo tem direito a uma parte da herança.
Joel: Quando a herança não é muito grande, não. Então o dinheiro não se reparte. Não se mexe...
Jasão: E o que sabe você sobre o quanto o papai economizou? Diz que não se mexe que é para você ficar com tudo. Condenado avarento! Já tem uma fortuna e ainda quer mais!
Manasses: Ai, ai, ai...
Joel: Sim, papai, estamos aqui ao seu lado, fique tranqüilo... pobre papai, quanto sofrimento!... Olhe só quem fala de avarento... Seu negócio de lã não vai tão mal, não é mesmo?... Então para que você quer o dinheiro, heim?... Para dar esmola aos mendigos?... Rá! A mim você não engana, Jasão. Você é mais ambicioso que o rei dos assírios!
Manasses: Ai, Ai... essas pontadas!
Jasão: O que foi, papai?
Joel: Quer alguma coisa?
Manasses: O que eu quero... é... não... morrer...
Jasão: Não fale de morte agora, papai... Você é forte como um cedro do Líbano... vai sarar... Amanhã ou depois você se levantará da cama, pode acreditar... E continuará trabalhando na fazenda...
Manasses: Este ano... a colheita foi muito boa... sabiam?... O trigo já nem está cabendo... nos celeiros... Rá! Rá!... vou derrubar os celeiros velhos... e vou construir... uns maiores perto da casa... e o dinheiro entrará aos montes, sim... aos montes!... ai, ai, ai... como isso dói...!
Joel: Veja só, para que ele quer o dinheiro, para escondê-lo em um pote na terra... Bah, velho sovina...
Jasão: E você, para que o quer? Para gastar tudo numa noite só, não é?
Joel: Como você é interesseiro, Jasão... Papai ofegando como um cão ferido e você só pensando na grana...
Jasão: E você, está pensando em que, condenado? Desde que chegou aqui seus olhos estão brilhando como duas moedas...

João: Onde você vai, Jesus?
Jesus: À casa do velho Manasses, João. Sabia que ele está morrendo?
João: Sim, mas o compadre Cleto me disse que não é pra já. Este velho está agarrado à vida com unhas e dentes. Nem na marra quer ir embora deste mundo...

Quando Jesus e eu chegamos à casa de Manasses, tudo estava na penumbra. Em um canto do quarto, os dois filhos do velho cochichavam...

Jesus: Pode-se entrar?
Joel: Quem são vocês?
Jesus: Conhecidos de Manasses...
João: Disseram-nos que estava muito mal e viemos vê-lo...
Jasão: Vê-lo e ver o que podem levar, não é?
João: Por que você está dizendo isso?
Jasão: Porque todos os que vêm a esta casa, trazem as garras afiadas. Aproveitar-se do nosso pobre papai!
Jesus: Vocês são os seus filhos, que moram lá na Peréia?
Joel: Sim, chegamos há algumas horas...
Jasão: Então vocês são amigos do nosso pai...
Jesus: Bem, amigos, não. Manasses nunca teve amigos, essa é a verdade. Vivia sozinho, comia sozinho, dormia sozinho... e, ao final, até falava sozinho...
Jasão: Poderia falar sozinho, mas não disse a ninguém onde demônios escondeu o dinheiro. Vai morrer e nós teremos de derrubar a casa e cavar a fazenda toda para encontrá-lo!
Joel: “Teremos... teremos...” Você não terá que fazer nada, porque esta herança é minha, será que você não entende, Jasão?
Jasão: Vai pro inferno, Joel, não comece outra vez! Eu já lhe disse mil vezes que metade deste dinheiro me pertence. Vocês aí, digam se eu tenho ou não tenho razão: nosso pai economizou...
Diga você, forasteiro, diga a ele que a lei obriga a repartir a herança comigo!
Joel: Não meta ninguém nisso! É um assunto entre você e eu!
Jesus: Olhe, amigo, quem sou eu para querer me meter nesta briga? Não sou juiz nem advogado...
Jasão: O dinheiro do papai é meu, Joel!
Joel: O dinheiro do papai é meu, Jasão!
Manasses: O dinheiro do papai... é do papai! É meu, meu, e nem vocês nem ninguém o tirarão de mim!... Canalhas, meus filhos também são uns canalhas que querem roubar o que é meu e deixar-me de cueiros...!
Jesus: Vamos lá, meu velho, não fique assim!... acalme-se... acalme-se... vamos...
Manasses: E você, quem é?
Jesus: Sou Jesus, aquele que mora ali na casa de Zebedeu. E este aqui é João... Viemos ver como está se sentindo...
Manasses: Vieram ver o que podiam rapinar da minha casa...  Mas voltarão com as mãos vazias... Eu não penso em morrer... Vou construir celeiros novos para o trigo deste ano... para muitos anos... ai, ai...
Joel: Peça para ele dizer onde escondeu o dinheiro...
Jasão: Esse dinheiro é tão meu quanto seu, Joel!
Manasses: Ai ... ai ... ai ...!

Jesus se aproximou de Manasses e fechou-lhe os olhos com suavidade...

Jesus: Ele morreu! Como isso é triste, não é, João? O velho Manasses não pensou durante toda sua vida senão em amontoar e guardar dinheiro. Não teve tempo para ninguém. Não chorou por ninguém nem com ninguém soube alegrar-se... E para que lhe serviu tanta coisa? Para nada. Para engordar as traças... De cueiros veio a este mundo, e de cueiros se vai. De que serve a alguém ter tantas coisas se perde assim sua vida?... Vamos embora, João.
Jasão: Onde diabos ele terá escondido o dinheiro, heim, Joel?
Joel: O dinheiro do velho é meu, Jasão, não me amole mais!
Jasão: Vai pro fundo do inferno, Joel, estou dizendo que...

E enquanto chegavam os vizinhos e as carpideiras, os filhos do velho Manassés começaram a remexer a casa toda esperando encontrar em algum canto as economias do pai morto. Pareciam dois abutres procurando carniça...


A dominação romana trouxe para Israel, entre outras coisas, uma transformação radical na posse da terra. Até então existiam duas formas: O latifúndio – que estava em expansão – e a propriedade comunal, por lotes e trabalhada em cooperativas ou familiarmente. Mas a cobrança de impostos, ordenada pelos romanos, contribuiu para o progressivo empobrecimento e endividamento dos camponeses, o que obrigou a muitos à venda forçada de suas terras e acelerou ainda mais o processo de concentração em grandes latifúndios. Estes terminaram por impor-se. Eram também muito mais rentáveis. A figura do grande proprietário, do latifundiário que acumula  riquezas sem cessar, que tem amplos celeiros e vive de sua renda, “sem trabalhar”, era muito comum no tempo de Jesus, especialmente na região galiléia. No vale superior do Jordão, às margens do lago e, em grande parte, nas montanhas da Galiléia, as terras cultiváveis já eram latifúndios. Algumas parábolas, como esta do “do rico  idiota”, estão contadas de um modo tão vivo, que tudo leva a crer que Jesus não está inventando uma história, mas referindo-se a um fato real conhecido por seus ouvintes. No episódio, Jesus aparece entre os que vieram ver morrer o latifundiário Manasses e suas palavras sobre a avareza, o sentido da vida (Mt 16,26) e as verdadeiras riquezas (Mt 6, 19-21) teriam nascido de uma experiência concreta. Jesus não é um personagem alheio à história de seu tempo, que desceu do céu, com um pacote de mensagens espirituais e máximas de piedade para as ir distribuindo aos que se reuniam para ouvi-lo. Suas palavras, suas reflexões, sua boa notícia, refletem o que ele pensava de tudo o que via. Eram palavras nascidas de sua observação dos acontecimentos, de sua vivência deles. O mesmo que acontece conosco, que vamos formando uma idéia do mundo e da vida, do que vale e do que não vale, à medida que compartilhamos com os demais experiências e situações. Jesus denunciou com firmeza os ricos e manifestou uma grande distância do dinheiro. As riquezas endurecem o coração humano e afastam os irmãos. Jesus vê nelas um sério perigo. O perigo de que o dinheiro, como supremo valor da vida, substitua Deus (Mt 6,24). A atitude de avareza, de ambição, de cobiça, leva o homem a tornar-se inimigo de Deus por mais que continue dizendo que tem fé. É que os valores do Reino de Deus – a entrega solidária da vida, a união entre os irmãos, a lealdade, o respeito pelo outro, o desejo de compartilhar o que se tem, a força para esperar e construir um mundo justo – opõe-se diametralmente ao ter e ao acumular, pelos quais se movem os que idolatram o deus dinheiro.

(Lucas 12,13-21)

Nota: É possível que os leitores se lembrem, ao ler este episódio, de uma cena semelhante do filme “Zorba, o Grego” de Michel Cacoyanis, baseada na novela do genial Niko Kazantzaki. Não é casualidade nem um plágio. Quer ser uma homenagem modestíssima dos autores a quem ele tanto inspirou enquanto escreviam os muitos capítulos deste relato. A Niko, grego universal, cristão apaixonado, companheiro durante meses desde suas inolvidáveis páginas sobre Jesus de Nazaré, nossa gratidão, seguros de que ele lê a história do Moreno com sorriso cúmplice. Fgaristó, Niko!


























































74
O JUIZ E AS VIÚVAS



Pedro: Olhe, Jesus, veja se não me amola mais!... Já gastamos doze pares de sandálias anunciando que as coisas vão mudar e que a justiça e que a libertação, e o que conseguimos até agora, heim, diga-me?
Jesus: É preciso ter constância, companheiros.
Pedro: Constância... É preciso ter olhos, moreno! Isso não vai pra frente! Isso é como querer mover uma montanha!
Jesus: E ela acabará movendo-se, Pedro. No dia em que de fato tivermos fé em Deus e em nós mesmos, nesse dia empurraremos as montanhas e as lançaremos no mar. Isso eu aprendi de minha mãe...

Jesus: Quando eu era garoto, lá em Nazaré, minha mãe, que era viúva, trabalhava na fazenda do latifundiário Ananias...

Susana: Mas, que bandido este Ananias! Oxalá esta pedra de moinho caia em cima daquela barrigona!
Rebeca: Três semanas colhendo azeitonas e agora não nos quer pagar! Ah, não, mas isso não vai ficar assim! Pelas trombetas de Jericó, mas vou espalhar essa sem-vergonhice para todo mundo e esse velho sovina vai ter que nos pagar até o último centavo, se não...!
Micaela: Se não o que, Rebeca?... Que é isso, mulher, deixe de bravatas! O que nós podemos fazer se ele não nos pagar? Nada! Se tivéssemos maridos, eles nos defenderiam... Mas, o que podemos fazer nós, viúvas? Dobrar a espinha e deixar que nos ponham a canga como aos bois.

Jesus: Minha mãe Maria e a vizinha Susana e outras viúvas de Nazaré, depois de colher os olivais da fazenda de Ananias, não haviam recebido nenhum pagamento. E estavam furiosas. Assim acontecia muitas vezes: os patrões se aproveitavam das mulheres sozinhas, as contratavam para a colheita de azeitonas, ou de figos, ou de tomates... E então lhes pagava muito pouco ou nada pelo trabalho...

Maria: Temos de fazer alguma coisa, vizinhas! Não vamos ficar aqui espantando moscas, e nossos filhos com fome!
Micaela: E o que podemos fazer, comadre Maria? Agüentar! Este é o destino de nós, pobres, agüentar!
Maria: Que destino coisa nenhuma, Micaela! Eu não creio em destino algum. Sabe o que dizia meu falecido José, que descanse em paz? Que o único destino que existe está aqui, nos nossos braços.
Susana: Sim, Maria, mas os braços das mulheres são frágeis, não se esqueça!
Maria: Mas, como você pode dizer isso, Susana? E não foi o braço de Judite que cortou o pescoço daquele grandalhão que eu nem me lembro como se chamava? E quem se pôs à frente do povo quando os cananeus atacaram e os homens de Israel afrouxaram as ceroulas, heim? Foi Débora, uma mulher, como você e como eu, mas que tinha sangue nas veias e não água com açúcar. E a rainha Ester, não foi uma lutadora também?
Rebeca: Maria tem razão. O que acontece é que a gente, como mulher, acaba se metendo na toca como os ratos.
Maria: Pois vamos sair da toca e pendurar o guizo no rabo do gato.
Suzana: Sim, senhor, temos de fazer alguma coisa por nós e por nossos filhos!
Maria: Então vamos, vamos para Caná e abrir um processo contra esse velho explorador. Para que servem os juízes? Para fazer justiça, não é? Pois vamos agora mesmo até o juiz para que ele apresente nosso caso ao tribunal.

Jesus: E minha mãe e as outras viúvas saíram de Nazaré pelo caminho do norte, rumo a Caná, onde vivia o juiz Jacinto, um velho careca e balofo...

Rebeca: Dom Jacinto, Dom Jacinto!... Dom Jacinto!
Jacinto: O que acontece, diacho! Quem são vocês?
Susana: Somos umas pobres viúvas de Nazaré! Temos algo a lhe dizer!... Abre a porta!
Jacinto: Umas pobres viúvas... umas pobres viúvas... O que vocês querem? Derrubar minha porta a pontapés?
Maria: É que nos tomaram o salário de três semanas de trabalho de sol a sol!
Jacinto: E o que eu tenho a ver com isso?
Rebeca: Você é o juiz, não? E os juízes não estão aí para fazer justiça?
Jacinto: Nós juízes estamos aqui para meter na cadeia agitadoras como vocês. Não me amolem que agora estou ocupado.
Maria: Dom Jacinto, espere, não se vá! Escute, aquele velho sanguessuga que se chama Ananias, a quem você conhece melhor do que nós, nos contratou para colher azeitonas. Passou uma semana e ele não tinha o dinheiro. Passou outra e... esperem que eu vou pagar. Passou a terceira e... continuem esperando... Você acha que isso está certo?
Jacinto: E o que vocês querem fazer?
Susana: Denunciá-lo e abrir um processo para que seja feita justiça.
Jacinto: Bom, bom, vamos estudar o caso por partes. Comecemos por onde se deve começar: se eu defender vocês no tribunal... quanto custaria meus honorários?
Micaela: Como disse, Dom Jacinto?... Fale mais claro, porque nós do campo...
Jacinto: Digo que se me meter nessa briga, quanto dinheiro vocês vão me pagar, caramba?
Maria: Bem, senhor juiz, o senhor sabe que somos viúvas... e pobres. Além disso, como vamos pagar-lhe se Ananias não nos pagar antes?
Jacinto: Entendo... Sendo assim... voltem outro dia... Hoje estou muito ocupado... É, é isso, voltem na próxima semana para ver se posso fazer alguma coisa por vocês.

Jesus: E minha mãe e suas amigas percorreram de novo as sete milhas que separam Nazaré de Caná e regressaram ao povoado... E quando passou uma semana...

Susana: Faze-nos justiça, senhor juiz!... Dom Jacinto, por favor!
Rebeca: Com o que Ananias nos pagar, pagaremos alguma coisa para o senhor defender nossa causa!
Jacinto: Alguma coisa... alguma coisa... Quanto?... Vamos ver, quanto vão me pagar?
Micaela: Veja... entre todas podemos juntar dez denários... ou talvez quinze...
Jacinto: Porcaria, quinze denários! Que o diabo se morda o dedão do pé se vocês não estão doidas de pedra! Quinze denários! Vocês vêm me pedir que enfrente Ananias, o homem mais poderoso desses campos, que com uma só palavra sua pode mandar que me enforquem... e em troca disso, quinze asquerosos denários! Puah!
Susana: Mas, senhor juiz, somos pobres, compreenda...
Jacinto: Sim, sim, é lógico que compreendo... e vocês também compreendam que eu tenho agora muito trabalho e não posso atende-las... É... É isso, voltem na próxima semana para ver se com um pouco mais de tempo, Re, re...

Jesus: Sete milhas de retorno a Nazaré. E quando a semana se passou, outras sete até Caná...

Susana: Mas, Dom Jacinto, até quando vamos ficar indo e vindo?...
Rebeca: Nossos filhos estão mais magros que as lombrigas!
Micaela: Veja nossos peitos secos, Dom Jacinto! Estamos desesperadas! Não agüentamos mais, nossos filhos estão morrendo de fome, ficando doentes...!
Jacinto: E a troco de que vocês vêm agora com esta história? Eu não pari esses moleques. Virem-se como puderem! E não me amolem mais!
Maria: Está bem, não faça isso por nós, se não quiser.
Jacinto: E por quem seria então?
Maria: Faça-o por respeito a Deus, senhor juiz!
Jacinto: Rá, rá, rá...! Por Deus? E o que me importa Deus? Deus está lá em cima, no céu e eu estou aqui em baixo, na terra. Vocês não dizem que Deus faz justiça aos pobres? Pois comprem uma escada bem comprida e subam até lá em cima e peçam ajuda a ele! Mas a mim, não me encham mais!
Susana: Puff... Esse Jacinto é mais azedo que limão verde...
Maria: Não, Susana, acontece que o raposa do Ananias terá passando melado nas mãos dele, entende?
Micaela: E então, Maria? Acho que estamos perdidas!
Maria: O que é isso agora? Agora é que essa briga começa!
Rebeca: Mas, Maria, ficou louca? Que briga podemos começar se não temos sequer um pedaço de pau?
Maria: Aqui não faz falta nem pau nem espada, Rebeca.
Rebeca: E o que é então, Maria?
Maria: O que falta aqui é paciência.
Susana: Paciência para quê?
Maria: Para acabar com a dele. Não se lembram de Moisés no Egito? O faraó tinha de tudo, até carros de guerra! E Moisés não tinha nada. Bom, a única coisa que tinha era uma cabeça dura... E Moisés juntou os israelitas e acabaram com a paciência do faraó: tingiram de vermelho a água, encheram as casas de sapos e rãs, apagaram as luzes da cidade...
Susana: Mas, Maria, nós somos muito pouquinhas. Moisés pôde fazer isso porque era homem e tinha muita gente atrás dele...
Micaela: Nós somos como um mosquito e ele como um elefante...
Maria: Isso mesmo, Micaela. E essa foi uma das dez pragas do Egito, a dos mosquitos. Porque eu lhe garanto que um bando de mosquitos dispostos a atazanar, é capaz de tirar o sono de todos os elefantes que o rei Salomão tinha em seu palácio. Venham comigo, vamos voltar à casa do juiz Jacinto!

Jesus: E aquelas camponesas cabeçudas, com Maria, minha mãe à frente, voltaram diante da porta daquele juiz balofo...

Jacinto: Outra vez por aqui? Maldição! Já lhe disse para irem embora e me deixarem em paz!... Estão surdas?... O que estão esperando?
Maria: Esperamos que os juízes de Israel façam justiça aos pobres!
Jacinto: Pois esperem sentadas, que de pé cansa!
Maria: É isso mesmo que vamos fazer. Vizinhas, todas sentadas!

Jesus: Quando minha mãe disse aquilo, todas as viúvas se sentaram em frente à porta do juiz...

Jacinto: Vão pro diabo, todas vocês! Está bem, fiquem aí até que lhes saia um calo no traseiro! Malditas camponesas, têm a cabeça mais dura que uma bigorna de ferreiro!

Jesus: E o juiz bateu a porta. Depois de algum tempo...

Jacinto: Ainda estão sentadas aí? Pelos sete chifres de Lúcifer, será que vocês perderam o juízo?
Susana: Não, você é que está perdendo a paciência, senhor juiz!
Maria: Daqui a gente não se mexe até que a justiça seja feita!

Jesus: Mas o juiz voltou a fechar a porta...

Rebeca: Esta casa vai acabar desabando sobre sua cabeça, com tanta bateção de porta!
Susana: Puff... O que você acha, Maria? Conseguiremos alguma coisa?
Maria: Nossos avós agüentaram quatrocentos anos no Egito. E, no final, conseguiram a liberdade. Daqui a gente não sai.
Um homem: Ei, quem são vocês? Estão pedindo esmola na porta do juiz?
Rebeca: Pedimos justiça, não esmola!
Susana: Trabalhamos três semanas colhendo azeitonas na fazenda do Ananias e agora não quer nos pagar.
Homem: Velho ladrão!... E esse juiz não faz nada?
Maria: É isso que estamos esperando. Mas vocês já sabem o que acontece, amigos. Ananias ensaboa a mão do juiz, o juiz molha a mão do capitão, e por aí vai...
Homem: Isso é verdade. Os de cima protegem as costas uns dos outros. E nós, atirando cada um para um lado... Ei, companheiros, venham aqui, venham todos!

Jesus: Aquele homem começou a chamar seus amigos que matavam o tempo na praça e na taberna... E dali a pouco, muitos vizinhos de Cana se uniram às viúvas de Nazaré...

Jacinto: Que o diabo me corte em quatro fatias! O que vocês querem? Eu não sou o governador da Galiléia e muito menos distribuo docinhos, então sumam todos daqui e deixem-me em paz, vagabundos!

Jesus: Mas foram se juntando muitos, muitíssimos homens e mulheres diante da porta do juiz Jacinto. Era como uma praga de mosquitos...

Jacinto: Já chega! Vão pro inferno, com as viúvas e com todos! Venham, vamos resolver esse caso de uma vez!
Susana: O que? Suas entranhas já se comoveram, senhor juiz?
Jacinto: O que me comoveram foram as orelhas com essa gritaria. Mas, fiquem sabendo, não faço isso por Deus, nem por vocês nem por seus “filhinhos famintos”, mas para que vocês desapareçam e que eu não tenha nunca mais de ver suas fuças.

Jesus: E o juiz Jacinto levou o caso perante o tribunal e o latifundiário Ananias teve de pagar o salário das viúvas de Nazaré. Haviam ganho a briga, sim senhor! E assim se ganham todas as batalhas, batendo, batendo até ir para frente! E com Deus temos que fazer o mesmo. Rezar dia e noite, sem desanimar. Se lhe pedirmos assim, ele não nos dará as costas, fará justiça!

Rufa: Que Deus lhe abençoe a língua, Jesus e que viva a mãe que o pariu!
Pedro: Bem falado, vó Rufa!
Jesus: Sim, que viva ela e que vivam todos os que lutam até o final, sem cansar-se, custe o que custar!


As mulheres camponesas de Israel tinham mais liberdade que as da cidade em muitas coisas. A necessidade de tocar a família adiante as levava a trabalhar igual aos homens nas fainas agrícolas. As mulheres participavam da colheita, da sega, na vindima junto com os homens, ou trabalhavam por sua conta, contratadas pelos latifundiários locais.

Viúva na Bíblia não deve nunca ser tomada como sinônimo de idosa. Como as meninas se casavam ao doze, treze anos, muitas mulheres ficavam viúvas ainda jovens. Se supormos que quando Jesus iniciou sua atividade na Galiléia, José já estaria morto, Maria teria ficado viúva aos trinta, quarenta anos. Sua condição social a fazia dependente de seu filho, que tinha a obrigação de mantê-la. Mas, seguramente, ela também ganharia a vida com o trabalho de suas mãos. A parábola “do mau juiz”, ou “da viúva insistente”, é contada por Jesus a seus amigos neste episódio como um fato real vivido por sua mãe e algumas vizinhas, também viúvas como ela.

A administração da justiça em Israel começa nas próprias origens da história do povo com os anciãos designados por Moisés, mas não se tem dados precisos sobre como era exatamente os juízos, qual a forma de apresentar os pleitos etc., nos tempos de Jesus. A institucionalização da justiça variava muito conforme as regiões. Maria e suas companheiras vão em busca de um juiz que reside em Cana, pois Nazaré era uma localidade pequena para ter o seu próprio. Esses juízes decidiam em casos de menor importância, em pequenos conflitos regionais. Acontecia que, às vezes, os ricos os “compravam” com presentes e não havia autêntica justiça em suas decisões.

Os profetas de Israel clamaram sempre para que nos tribunais se fizesse justiça aos pobres e identificam o direito de Deus com o direito do pobre. Entre os pobres, destacaram sempre o estrangeiro, o órfão e a viúva, como desamparados por excelência, frente aos quais a exigência de justiça era ainda, se cabe, maior. Os profetas denunciaram a corrupção dos tribunais, as benesses recebidas pelos juízes e os atropelos cometidos contra os infelizes (Amós, 57-13).

Na história de Israel houve mulheres que participaram muito ativamente nas lutas do povo e que chegaram a ter um grande prestígio. Débora, juiza de Israel, vencedora de batalhas (Jz 4 e 5); Éster, heroína popularíssima e Judite, vencedora do tirano Holofernes por astúcia e coragem, eram importantes figuras femininas da história de Israel. Maria, a mãe de Jesus, também viveu inserida na história desse povo, embora construísse o Reino a partir de seu trabalho, sua fidelidade diária e sua coragem diante das adversidades.

Maria, mulher do povo, camponesa, trabalhadora, deve servir de inspiração às mulheres. Há muitos pontos de contato entre ela e as mulheres de nossos países. Porque Maria viveu numa sociedade machista. Porque trabalhou com suas mãos e sofreu tudo o que sofrem os pobres: escassez, insegurança, marginalização. Porque teve um filho que, ao comprometer-se com a justiça, a fez viver com a alma por um fio. Porque sem entender o todo daquela missão, colaborou com ele em tudo o que podia. Não basta que se venere Maria, que inclusive se “adore” – como de fato acontece. No canto do Magnificat, canto de fé em Deus, alento para a luta e esperança dos pobres, estão vivos todos os elementos necessários para uma autêntica veneração a Maria.

Jesus aprendeu de José e de Maria, como qualquer filho aprende de seus pais, as atitudes fundamentais diante da vida. De Maria teria aprendido sua tenacidade, sua constância, essa típica teimosia camponesa que “move montanhas”. Embora a parábola “do juiz injusto” tenha sido considerada ordinariamente como uma exortação à constância na oração, neste episódio Jesus estende seu significado: também na oração devemos ser constantes, pacientes, insistentes. Como Maria, oração e ação vão juntas, alimentam-se de um mesmo espírito, devem ser orientadas pelas mesmas atitudes. E assim, Jesus propõe Maria como exemplo de constância na oração.

Não haverá libertação feminina até que homens e mulheres não participem ombro a ombro na construção de um mundo diferente do atual, sem discriminações de qualquer tipo. A libertação feminina que só contempla os aspectos sexuais (aborto, divórcio, união livre etc.) é um produto importado por nossos países de sociedades desenvolvidas e com reivindicações que não têm muito a ver com nossas realidades.

Neste relato, a estratégia das viúvas para abrandar o juiz injusto é a tenacidade em forma de ação não-violenta. Insistem, viajam uma e outra vez, pressionam com palavras, gritam, sentam-se no chão... Vencem assim as resistências do juiz. A união as faz fortes e lhes dá a vitória.

(Lucas 18,1-8)



75

A FESTA DAS TENDAS




Quando chega o outono e o trigo enche os celeiros e a vinhas carregam de uvas, todo Israel viaja ao sul para celebrar a festa das tendas. São sete dias nos quais Jerusalém se veste de verde, adornada com as folhas de muitas árvores. Centenas de cabanas feitas de troncos e folhas de palmeira rodeiam as muralhas da cidade santa, em lembrança das tendas em que nossos pais viveram durante a longa marcha pelo deserto. O vinho da nova colheita é bebido em abundância e a alegria corre loucamente pelas estreitas ruas da cidade do rei Davi...

Um homem: Eu aposto cinco asses que ele vem para a festa!
Outro homem: Pois eu não entro nesta aposta! Este sujeito está muito manjado... Sabe que se vier aqui os romanos podem lhe dar um susto... Ele agita demais!
Homem: Tenho a maior vontade de vê-lo de perto. E de ouvi-lo! É um profeta! Camaradas, a Israel não falta nem vinho nem profetas! Um brinde por nosso povo, o maior povo da terra!
Outro homem: Muito cuidado com o que você está dizendo, orelhudo! De Jesus, da Galiléia, dizem coisas maiores... Profeta era João. E por isso lhe cortaram a cabeça. Este é mais. Dizem que é o próprio Messias...
Homem: E então?... acha que lhe cortarão a cabeça?
Outro homem: Ele é que irá cortar o pescoço dos romanos, diacho! Se é o Messias, virá com uma espada deste tamanho e, zaz! Abaixo todas as águias imperiais! Ah, carambola, esse dia sim é que será a grande festa de Jerusalém! Um brinde pelo Messias da Galiléia!

No primeiro dia da festa, quando o luzeiro da tarde brilhava no céu, acendiam-se grandes tochas no Templo de Jerusalém. Toda a noite as ruas estavam infestadas de peregrinos que cantavam e riam. Jerusalém velava jubilosa durante uma longa semana de festa, agradecendo a Deus os frutos da nova colheita.
Enquanto isso, em Nazaré...

Maria: Então, filho, você não pensa em ir a Jerusalém?
Jesus: Não sei, mamãe, ainda não sei...
Maria: Seus primos queriam viajar com você, sabia?
Jesus: Sim, eu sabia. Acontece que eu não queria viajar com eles...

Quando terminou a colheita daquele ano, Jesus foi a Nazaré para ver sua mãe. Alguns do nosso grupo foram com ele. Os campos de trigo, já ceifados, descansavam depois de um longo trabalho. E as uvas já haviam sido pisadas no lagar.

Jesus: E você, mamãe, não quer ir à festa?
Maria: Não, filho. Já há bastante festa por aqui com a comadre Susana doente e a mulher do Neftali também. Alguém tem que cuidar das crianças delas, não?
Simão: Você trabalha demais, prima Maria. Vai ver que é por isso que se conserva tão jovem. E então, Jesus? Já pensou? Vem conosco a Jerusalém?...

Os primos de Jesus, Simão e Jacó, entraram no casebre de Maria. Já levavam nas mãos os bastões para o caminho...

Jesus: Não, eu não vou. Fico na Galiléia.
Simão: Como? Não andam dizendo por aí que você faz coisas maravilhosas, e que tem cheiro de profeta...? Então? Não me diga que os profetas de agora se escondem debaixo da terra como as toupeiras... Já que você faz coisas tão grandes, venha fazê-las na capital e que todos o vejam de cara... Jacó e eu gritaremos pelas ruas: “Ei, aqui está o profeta! E é nosso primo!” Nós juntamos as pessoas, você lhes fala e prometo que quando terminar nós aplaudiremos, eu lhe prometo, primo...
Jesus: Muito obrigado, primo Simão. Guarde seus aplausos e ponha-se a caminho de pressa, anda, que a festa começou ontem à noite e você vai chegar tarde. Eu não vou.
Simão: Bah, você é maluco e cabeçudo, Jesus. Vai a Cafarnaum com esses amiguinhos que você achou. Vamos, Jacó, andando!
Jesus: Mamãe, amanhã, ao amanhecer eu vou.
Maria: Aonde, filho? A Cafarnaum?
Jesus: Não, a Jerusalém. Para a festa. Vou com Tiago, Pedro e João e alguns mais do grupo...
Maria: Eu sabia que você iria... Estava dizendo a Jacó e Simão não com a boca, mas eu o olhava e a mim você não engana... Jesus, filho, tenha cuidado! Jerusalém não é a Galiléia. Ali os romanos têm sete olhos e ficam sabendo de tudo...
Jesus: Você está com medo, mamãe?
Maria: Sim, filho, como não vou ter? Mas já não é mais como no começo. Parecia então que poderia pega-lo no colo como se fosse criança. “Jesus, isso não se faz, obedeça sua mãe”... Não, já sei que não posso pôr pedras no seu caminho para impedi-lo. Aquilo que você me disse lá em Cafarnaum ficou dando voltas e voltas na minha cabeça, está lembrado?
Jesus: Claro que me lembro. E a verdade é que naquele dia eu estava meio zangado com você.
Maria: Não, filho, era eu que estava zangada com Deus como nosso avô Jacó quando deu uma de galo-de-briga e se pôs a lutar uma noite com aquele anjo e foi ele que acabou coxeando... Assim aconteceu comigo, sabe? Eu dizia a Deus: “Vai e procure outro. Por que tem que ficar olhando pro meu filho? É o único que tenho. Por que quer tirá-lo de mim? José morreu. Eu estou ficando velha. Pelo menos que eu possa vê-lo casado com uma boa moça e com um trabalhinho seguro e, quem sabe, até ajudo a criar meu primeiro neto...”.  Não pedia mais que isso. E não era muito, não é mesmo? Pois veja só, Deus se saiu com as dele. Pegou você pela mão e disse: “É você que eu ando procurando”. Está bem, filho. Ele ganhou. Ele é mais forte.
Jesus: Você é valente, mamãe!
Maria: Não, filho, na verdade, estou morrendo de medo! E continuo sem entender bem o que Deus está preparando para você. Mas não se preocupe que não vou atravessar seu caminho. Ao contrário, gostaria muito de segui-lo ... gostaria de ajudá-lo... mas não sei como...
Jesus: Mas, mamãe, se foi você quem me deu o primeiro empurrão! Você que andava sempre com aquela matraca: “Deus quer derrubar os grandes e elevar os humildes”. Você me ensinou isso. E isso é o que temos feito  durante todos esses meses em Cafarnaum e nas cidades do lago...
Maria: E em Jerusalém?
Jesus: Também em Jerusalém é preciso anunciar a boa notícia. E faremos isso, sim, já é tempo de fazê-lo.
Maria: Bom, deixe isso pra lá e tome um pouco mais de leite, que magro do jeito que você está não vai chegar caminhando nem até Samaria... Beba, filho, ele está bem gostoso...

Quando chegamos a Jerusalém, a festa já ia pela metade. Ao nos aproximarmos do templo, vimos sair a procissão. Homens, mulheres e crianças com folhas de palmeira e de salgueiro cantavam pelas ruas. No átrio dos sacerdotes se repetia a mesma cerimônia: os ministros de Deus rodeavam uma e outra vez o altar entoando os salmos das tendas...

Sacerdote: Senhor, dá-nos a salvação! Senhor, dá-nos a vitória!
Todos: Bendito o que vem em nome do Senhor!

Os átrios do templo estavam cheios de bêbados e crianças que corriam atrás das ovelhas. Jerusalém recendia a frutos maduros e despedia com risos o ano que terminava...

Um homem: Conterrânea, olhe só quem está ali! É o profeta da Galiléia!
Uma mulher: Você já bebeu tanto, seu sem-vergonha, que agora está vendo profetas pelas esquinas!
Outro homem: Pois eu lhe digo que não, mulher, olhe bem aquele lá com o manto cheio de remendos... aquele mesmo, é... Ei, camaradas! Corram... O profeta chegou! O profeta chegou!

Aos gritos daquele homem as pessoas começaram a espremer-se onde nós estávamos, perto da porta de Corinto... Um grupo de homens empurrou Jesus para que subisse em um ponto mais alto...

Um homem: Ei, você, galileu, o que está fazendo por aqui?
Jesus: Celebrando a boa colheita deste ano, amigo!
Outro homem: Fale mais alto que daqui não dá para ouvir nada! Maldito seboso, não fique na minha frente!

A porta de Corinto parecia um galinheiro revolto. Todos queriam ver de perto as barbas do profeta recém chegado...

Jesus: Viemos celebrar a colheita deste ano e contar-lhe o que anda acontecendo no norte do país! Os campos deram trigo e a vinhas deram suas uvas, sim. Mas Deus nos anuncia uma colheita maior, uma festa e um banquete que celebrarão todos os povos da terra. Amigos de Jerusalém: viemos trazer-lhes uma boa notícia. O Reino de Deus chegou!
Um homem: Bem-vindo este Reino de Deus!
Uma mulher: E onde diabos está para que o vejamos?
Jesus: Não olhe para cima nem para o lado, conterrânea. Está aqui, onde os pobres se reúnem com esperança!
Outro homem: Vivam os da Galiléia, de Jerusalém, e de todo o país!
Outra mulher: Escute, rapaz, você que fala tão bonito, explique-nos uma coisa: o que se deve fazer para entrar nesse Reino? ... porque eu aqui não quero ficar de fora!
Jesus: A porta para entrar é estreita. Para poder passar por ela é preciso ter os bolsos vazios. Por esta porta passarão somente os que sabem repartir o que têm com os demais. E os que fecham sua mão para os pobres ficarão de fora. Os que pensam que são os primeiros, serão os últimos. E os que estão na fila, os últimos, esses serão os primeiros!
Um homem: Muito bem falado, Galileu!

Custou-nos muito trabalho sair do templo. As pessoas se apertavam contra nós. Todos queriam ver Jesus. Os soldados romanos vigiavam de perto para que aquele alvoroço não terminasse em uma revolta maior. Alguns galileus nos convidaram para passar a noite em suas tendas de palmeiras e caniços. E até a uma delas nós fomos ao cair da tarde, enquanto os vizinhos da capital continuavam discutindo...

Um vizinho: Você não ouviu que língua mais esperta? Esse homem é o Messias, ouça o que estou dizendo!
Outro vizinho: Mas onde já se viu um Messias com sandálias estropiadas? Você está louco!
Outro vizinho: Além disso, o Messias não pode ser galileu. Tem que ser da família do rei Davi.
Vizinho: E este aí? De que família será? Isso sim é que ninguém sabe.
Vizinho: Tem que ser filho de Davi! Ou é da família de Davi, ou não é o Messias!
Um mestre: Mas, amigo, como vai ser filho de Davi se há um salmo em que Davi o chama de pai, em vez de filho?
Vizinho: Mas, o que está dizendo você? Que salmo que nada! Esse sujeito fala claro e tem Deus na garganta...!
Fariseu: E tem mais: como pode o Messias ser filho de Davi se o próprio Davi o chama de pai, porque, como diz outro salmo, ninguém pode ser filho de seu próprio filho, não acha?
Vizinho: Escute, amigo, de você eu não entendi nem uma... e deste galileu, todas... daí, é melhor você ir cantar seus salmos em outra esquina!
Vizinho: Esse Galileu nasceu num povoado que não vale nada, que se chama Nazaré! Por acaso o Messias vai sair de um lugar desses, heim? Não sejam patetas! Quando vier o Messias, ninguém saberá de onde veio. Virá de repente. Zaz! Os céus se abrirão e nós o veremos... Esse sujeito é um engana-bobos... Deixemos que o Messias durma tranqüilo esta noite e nós, para a taberna do Aziel! O melhor vinho de Jerusalém está escondido nos barris desse safado!

Naquela noite, uma mesma pergunta percorreu o bairro dos alfaiates e o bairro dos carregadores de água, a rua das prostitutas e o grande mercado... Todos perguntavam pelo profeta da Galiléia... E ninguém sabia encontrar uma boa resposta... Quando a lua nova do mês do outono, no ponto mais alto do céu, iluminava debilmente as muralhas rodeadas de cabanas da cidade santa, Jerusalém, cansada de tanta festa, foi adormecendo devagar...

No começo do outono, no mês de setembro, o povo de Israel celebrava a festa dos “sukkot” (das tendas, das cabanas). Com ela termina a colheita dos frutos e a vindima. Das três peregrinações anuais que os israelitas faziam a Jerusalém – por ocasião da Páscoa, Pentecostes e Tendas – esta última era a mais alegre e popular. Era também a que concentrava mais gente na capital. Durante os sete dias que durava a festa, o povo vivia em choças e cabanas que se construía nos terraços ou nos pátios das casas, na esplanada do templo, nas praças públicas ou nos arredores de Jerusalém. Essas choças eram feitas como recordação das tendas nas quais o povo hebreu havia vivido durante quarenta anos em sua peregrinação pelo deserto até a terra prometida.

No tempo de Jesus e por influência de textos proféticos (Zc 14,16 e 19), o povo associava a festa das Tendas com o triunfo definitivo do Reino de Deus e do seu Messias. Por isso se explica neste relato que os primos de Jesus, interessados em que seu parente fosse cada dia mais famoso, pelo que isso poderia favorecer seus interesses, insistiram que estivesse em Jerusalém para estas festas. A esta altura, Jesus já era um profeta de grande popularidade, tanto em suas terras galiléias, quanto no sul, na Judéia, e principalmente na capital. A estas alturas também, Jesus estava plenamente consciente do conflito que criavam suas palavras, suas atitudes e as pessoas de que se rodeava: pobres, à margem da lei, “malditos” de má fama, os “últimos” daquela sociedade.

No relato, esta é a segunda vez que Jesus sobe a Jerusalém. Ele o faz clandestinamente, porque depois das notícias de que Herodes o procurava para matá-lo, não lhe parecia prudente fazer muito barulho. Neste caso, recusa  a espetacularidade  que lhe propõem seus primos, mas não renuncia à difusão mais massiva que pode ter sua mensagem profética entre os peregrinos concentrados na capital.

Se a estas alturas Jesus já contava com uma morte violenta, Maria também intuía que esse poderia ser o final de seu filho. E por isso tinha medo. Maria foi uma mulher valente e uma mulher de fé, mas a fé não suprime o medo nem as debilidades. E Maria sofreu por causa do compromisso de seu filho, sem ver claramente aonde o levaria, temendo sempre as conseqüências a que se expunha. No entanto, seguia em frente, guiada por esta fé que ia crescendo e amadurecendo dentro dela.

Também é certo que os caminhos que levavam a Jerusalém não eram nada seguros. No tempo de Jesus reinava em todo o país o banditismo. Para proteger o comércio pelas rotas das caravanas, os romanos haviam tomado especial cuidado em limpar os assaltantes dos caminhos. Os camponeses aumentavam as histórias de salteadores que corriam de boca em boca e, embora não levassem muita coisa em suas viagens, temiam especialmente esses perigos. E consideravam um favor especial de Deus chegar sãos e salvos a Jerusalém.

Depois deste primeiro discurso público na capital, a que se recorre neste episódio e que se resume na constante mensagem do evangelho: compartilhar, esforçar-se para entrar pela porta estreita do dar em vez de acumular (Mt 7,13-14), Jesus estará na boca do povo reunido para as festas em Jerusalém. As pessoas discutem nas ruas se ele é ou não o Messias ou – mais ainda – se de fato pode sê-lo um homem de extração tão baixa, sem doutorados nem estudos, sem poderes espetaculares... Naquele tempo, a espera de um Messias libertador era constante tema nas conversas populares. Para algumas escolas de rabinos o Messias reconhecido por sua pertença à família de Davi (seria “seu filho”). Outros não davam importância a este aspecto e se fixavam mais, não de onde viria o Messias, mas no que faria. Nesta sua segunda viagem à capital, Jesus já é muito popular e os pobres do país canalizam cada vez mais até ele suas esperanças de justiça.

(João 7,1-13 e 40-43)
76
A PRIMEIRA PEDRA



Marido: Saia daí, descarada! Você não vai escapar!
Um vizinho: Derrubem a porta e vamos tirá-los pra fora!
Uma vizinha: Adúltera! Adúltera!

Um bando de homens e mulheres esbravejava rodeando a casa de Cirilo, no bairro dos carregadores de água de Jerusalém. As pedras chocavam-se contra a porta e as maldições eram ouvidas em todo o Ofel...

Outro vizinho: Agora você vai ver o que é bom pra tosse, sua raposa safada!
Outra vizinha: Sabemos que vocês dois estão aí, sem-vergonhas!

Por uma brecha do pátio, como um rato que sai dos escombros, um homem meio desnudo pulou e se pôs a correr rua abaixo...

Marido: Deixem que vá, dele eu cuidarei outro dia! O que eu quero agora é ajustar as contas com a Joana!
Vizinho: Tirem-na daí, não percamos mais tempo!

A tranca de madeira que fechava a porta se partiu com os empurrões e um punhado de homens invadiu a casa... Lá dentro, num canto, junto a uma suja esteira, estava agachada uma mulher com um gesto de horror nos olhos!

Marido: Era você que eu queria agarrar, sua asquerosa! Cadela, filha de cadela, juro pela minha cabeça que hoje será o último dia de sua vida!
Um vizinho: Morte para ela, é adúltera! Tem de matá-la!
Uma vizinha: Deve morrer! Deve morrer!
Vizinho: Agarrem-na!

Dois homens se lançaram sobre a mulher, a agarraram pelos cabelos e a arrastaram para fora da casa... Então um velho lhe arrancou, com um forte puxão a manta com que tentava cobrir-se...

Marido: Sim, deixem-na assim, e que todos vejam suas vergonhas. Se ela não se importou de esfregar-se no Cirilo, também não se importará de ficar assim, no meio da rua!... Vizinhos, esta mulher me enganou com outro! Ajudem-me a apagar a infâmia que sujou meu nome!

Vizinha: Morte pra ela! Morte pra ela!
Vizinho: Para o lixão! O lixo para o lixão!

Os dois homens levantaram a mulher por um dos braços e a arrastaram esperneando pela estreita viela... Com os punhos erguidos, gritando e assobiando, encaminharam-se para o barranco da Geena, que fica ao sul da cidade, o vale maldito onde os moradores de Jerusalém queimavam o lixo e onde eram apedrejadas as mulheres que haviam sido descobertas em delito de adultério.

Vizinha: Vamos matá-la, vamos para a Geena!
Vizinho: Mas olhem só quem está aqui! O profeta da Galiléia!

Jesus e nós estávamos conversando perto do Templo, quando vimos aproximar-se, em meio a uma nuvem de poeira, aquele tumulto de gente enfurecida...

Vizinho: Ei, profeta, venha conosco cumprir a lei de Moisés! A mancha do adultério só se limpa com pedras!
Marido: E quanto mais mãos, mais pedradas! Venha, venha conosco! E que venham também esses seus amigos!
Vizinho: Pegamos essa cadela na mesma cama que o carregador de água, Cirilo!
Vizinha: Não tem desculpa: todos os somos testemunhas do seu pecado!

Os dois homens que arrastavam a mulher, abriram caminho e a deixaram cair no meio de todos, boca para baixo, com os joelhos sangrando e o corpo cheio de cuspe e escarros... Um deles, com um gesto de desprezo, colocou o pé direito sobre o rosto dela, apertando-o contra as pedras do chão...

Um vizinho: Quem é o profeta? Você? Pois lance sobre ela uma maldição para que o diabo a engula de uma só vez e se vá diretinha para os infernos!... Vamos... o que está esperando? Não dizem que você é um profeta? Pois fale, responde: por que não a amaldiçoa?
Vizinha: Que morra! Que morra! Morte para ela!

Jesus se aproximou do grupo de moradores que gritavam e ameaçavam com o punho...

Jesus: Onde está o marido desta mulher?
Marido: Estou aqui! Eu “era” o marido desta safada. Já a repudiei. O que você quer?
Jesus: Quero saber o que aconteceu. Ela o havia enganado outras vezes?
Marido: Claro que sim. Ela negava, mas dizem que se descobre um mentiroso mais rápido que a um aleijado...
Jesus: Diga-me, quantas vezes você acha que ela o enganou?
Marido: Quantas? E sei lá!... Três, quatro, cinco vezes... essa aí é pior que uma cadela no cio!

Então Jesus se agachou e escreveu com o dedo na terra três, quatro, cinco risquinhos...

Jesus: O que mais você tem contra ela?
Marido: O que eu tenho a mais contra ela? Essa é boa! Não basta essa sem-vergonhice em plena luz do dia? Está querendo juntar mais carvão em cima da cabeça dela? “É que vou visitar uma comadre, vou levar-lhe um remédio”... Pois é! Acontece que a comadre doente era o Cirilo e um açougueiro da outra esquina que quando o encontrar vou picá-lo com sua própria faca de cortar carne!
Uma vizinha: E quando ela deu de paquerar o meu marido, heim? Sim, sim, e bem debaixo do meu nariz, como se eu fosse uma idiota. Se vocês a vissem passando em frente à minha casa, se requebrando toda. Sorrizinhos pra cá, sorrizinhos pra lá... Grande safada!
Outra vizinha: Essa aí já dormiu com a vizinhança inteira.
Vizinha: E quando a pegaram esfregando-se com o filho do Joaquim, heim? Conte isso para o profeta, vamos!
Vizinha: E algum motivo haverá para que o rabino lhe vire a cara quando passa por perto. Quantas coisas ele deve saber!...
Vizinha: Ela tem a boca mais suja que um cameleiro, tudo o que diz são palavras asquerosas.
Vizinho: O que diz e o que faz!
Vizinha: E aquela vez que essa “garota” foi vista com os peitos de fora! Descarada!

Jesus, agachado, ia fazendo rabiscos com o dedo a cada uma das acusações que lançavam contra a mulher...

Um velho: Seu dedo vai se gastar antes que fique sabendo de todas as safadezas dessa rameira!
Vizinha: Todo mundo já sabia que um dia isso ia acontecer, vizinhos! Filho de gato caça rato. Onde está a mãe dela? Encostada no muro, com todas as outras rameiras!... Do pai eu não digo nada, porque não sei quem semeou esta erva daninha!...
Marido: Já chega de conversa fiada! O que você diz, profeta da Galiléia?
Jesus: Eu digo para me darem uma pedra...
Todos: Muito bem, nada de moleza com ela!

Um velho, de olhar malicioso se inclinou, pegou uma pedra do chão e a deu a Jesus...

Vizinha: Na cabeça, acerte na cabeça como bem merece uma adúltera!
Vizinho: Machuque-a! Machuque-a!

Jesus tinha em sua mão a pedra e sentia seu peso olhando para a mulher que continuava estendida com a boca no chão, no meio da rua...

Jesus: Sinto muito, conterrâneos, mas eu não vou atirar a pedra nela. Se algum de vocês se considera limpo de pecado, venha e atire...

Então, outro velho, de barriga estufada, se aproximou de Jesus...

Velho: Dê-me a pedra. Eu atirarei. É preciso cumprir a lei de Moisés. E a lei condena o adultério.
Jesus: Oxalá ela não lhe arrebente na testa, como aconteceu a Golias...
Velho: O que você quer dizer com isso?
Jesus: Escute, cá entre nós, na confiança, a quanto de juros você empresta o seu dinheiro: a dez, a vinte... talvez quarenta?... Isto também está condenado na lei de Moisés, não é mesmo, amigo?

Jesus cravou seu olhar como um punhal nos olhos daquele velho gordo que já levantava sua mão para lançar a pedra sobre o corpo desnudo da mulher...

Jesus: Está proibido estrangular os desgraçados que não podem pagar-lhe os empréstimos a tempo, não é, amigo?

A pedra escorregou da mão do velho que deu meia volta e escapou entre as pessoas...

Uma vizinha: O que aconteceu com esse aí? Também deu pra trás?

Jesus se voltou de novo aos vizinhos, que esperavam impacientes.

Jesus: Quem quer atirar a primeira pedra nesta mulher?
Vizinho: Eu, dê a pedra pra mim. Se existe uma coisa que me repugna nesta vida é a infidelidade... nojo de mulher!

Um homem alto e arrogante se aproximou da mulher...

Jesus: Escute, amigo, qual sua profissão?
Vizinho: Minha profissão? Comerciante. Tenho uma tenda de alimentos perto da Porta do Ângulo.
Jesus: Na melhor das hipóteses você tem duas balanças em seu comércio, uma para pesar o que compra e outra para pesar o que vende... Quantas você tem?... Uma ou duas?

O vendedor abriu a boca para responder a Jesus, mas não disse uma palavra. Em seguida retrocedeu e se misturou entre a turba...

Jesus: E você... pela cara deve ser advogado ou juiz... juiz dos que julgam no Grande Conselho... Diga-me uma coisa, amigo, quantos denários colocam debaixo de seu assento para que diga que o latifundiário tem razão e a viúva é culpada?... Você quer atirar a primeira pedra? ... E você, suas mãos são de médico... Vamos, pegue a pedra e atire você... Afinal, esta mulher mora no Ofel... você nunca vai a esses casebres de barro, não é mesmo?... Todos os seus clientes são do bairro alto porque eles sim lhe podem pagar, claro...
Vizinho: Chega de bobagem! Esta mulher é uma pecadora. Você mesmo anotou seus delitos com estes riscos na terra... E olhe quanto tem...
Jesus: E por que você se apega tanto a todos esses ciscos no olho dela e não vê o tronco que há em seu próprio olho?
Vizinho: Ciscos! Esta mulher cometeu o maior de todos os pecados, o adultério!
Jesus: Maior adultério é ver os sacerdotes do Templo banqueteando-se com os governantes que oprimem o povo e ninguém lhe atira pedras. Maior adultério é ver os servidores de Deus servindo a Mamon, o deus do dinheiro e ninguém levanta um dedo sequer contra eles. Hipócritas! Escondam-se nas cavernas das montanhas porque o Deus de Israel está para chegar e vai lhes lançar sua mão e os deixará de cueiros igual vocês fizeram com esta mulher. Porque com a medida com que medirem os demais, com esta mesma ele medirá vocês.

Jesus se agachou e não disse uma palavra mais. Com a mão estendida alisou a terra onde havia marcado as acusações contra aquela mulher surpreendida em adultério...

Pedro: Caramba, Jesus, você os deixou sem fôlego!
Jesus: É que parece, Pedro, que o único pecado que existe para eles é deitar-se com uma mulher. Passam a vida esquadrinhando estes pecados e aí sim, coam o último mosquito, até os maus pensamentos, um a um... E os grandes camelos, os grandes abusos contra os pobres, passam por eles e nem percebem...

Pedro inclinou-se sobre a mulher que continuava jogada na rua...

Pedro: Você se livrou de uma boa, heim, moça?... Como se chama?
Joana: Joana... mas eu... eu...
Jesus: Vamos, não chore... Tudo já passou... Cubra-se com este manto, ande... Acalme-se, mulher... Ninguém vai lhe fazer nada... Abre os olhos, veja... Onde estão os que a acusavam?... Nenhum a condenou. E Deus tampouco a condena e nem lhe atira nenhuma pedra... Preste atenção, já está tudo apagado... tudo.

Pedro e Jesus levantaram Joana do chão e a acompanharam de volta para sua casa, pela rua do aqueduto, a que dá no bairro dos carregadores de água, perto do Templo santo de Jerusalém.


A passagem da adúltera – que só aparece no evangelho de João – não está em todos os antigos manuscritos que se conservam do texto original deste evangelho. Alguns pensam que este texto, que tem por outro lado todas as garantias históricas, deve ter sido suprimido do evangelho de Lucas e destes manuscritos de João, precisamente porque a  indulgência de Jesus para com esta mulher pecadora pública poderia parecer excessiva, e portanto escandalosa, mesmo para as comunidades cristãs. Isto dá uma pista da importância prática que há nesta história.

Em Israel, o adultério era considerado um delito público. As antigas leis o castigavam com a morte (Levítico 20,1). A tradição e os costumes fizeram desta lei, como de tantas outras, uma interpretação machista. E assim, o adultério do homem casado só era considerado tal se tivesse relação com uma mulher casada, mas se ela era solteira , prostituta ou escrava, sua falta não era considerada como adultério. Para a mulher, bastava que tivesse relações com qualquer homem. Por outro lado, a mulher suspeita de adultério era submetida a uma prova pública de tomar águas amargas. Se lhe inchasse o ventre era certo seu adultério, se não sentia mal-estar, tudo ficava como uma falsa suspeita (Números 5,11-31). Esta prova era realizada diariamente por um sacerdote na porta de Nicanor do templo de Jerusalém. O homem não podia ser submetido a semelhante rito jurídico. Em todo caso, comprovado o adultério, os pecadores – ele ou ela – deviam ser apedrejados pela comunidade.

Por ser o adultério considerado um pecado público, a comunidade devia apagar a mancha também publicamente. O apedrejamento ou lapidação devia ser realizado pelos moradores do lugar em que o pecador havia sido descoberto em falta e, geralmente, o lugar do suplício ficava fora dos muros da cidade. As testemunhas do fato eram os que atiravam as primeiras pedras contra o culpado. Eram delitos castigados também com o apedrejamento a blasfêmia, a adivinhação e as diferentes formas de idolatria e a violação da lei do descanso do sábado.

O adultério é um pecado de infidelidade. E é também, em muitíssimos casos, uma expressão de fraqueza. Para salvar a adúltera da morte que para ela ordenava a lei, Jesus, neste episódio, contrapõe este pecado a outros: fraude, exploração, usura, corrupção judicial etc. Entre estes pecados e o da mulher, fica claro que os atos injustos com que se oprime os infelizes aproveitando-se de sua miséria, são muito mais graves aos olhos de Deus que os pecados sexuais.

Com os trapaceiros, as prostitutas, os bêbados – com essa ampla gama de fraquezas humanas relacionadas com o sexo, com a astuta sobrevivência dos pobres – Jesus foi sempre misericordioso, compreensivo, tolerante. Ao contrário, não o foi nunca com a hipocrisia e a injustiça dos poderosos. Nunca chamou de “raça de víboras” os que a religião oficial qualificava de pecadores e malditos, mas reservou esse insulto precisamente para os dirigentes da religião oficial. A comunidade cristã deve saber localizar, da mesma forma que Jesus, o autêntico pecado que separa de Deus e isola dos irmãos.

(João 8,2-11)










































77
COMO UM RIO DE ÁGUA VIVA



O último dia da festa das Tendas era o mais importante. A semana de alegria que celebrava o fim do ano e o término da nova colheita. Os peregrinos que abarrotavam Jerusalém se despediam agora da cidade santa, assistindo à solene cerimônia da água no tanque de Siloé, perto das muralhas do sul...

Abias: Tudo preparado para a procissão, sacerdote Ziraj?
Ziraj: Tudo preparado. Dentro de poucos minutos iremos ao Templo buscar o cântaro de prata. Você vem conosco, magistrado Nicodemos?
Nicodemos: Sim, pode estar certo que irei...
Abias: Ele também estará por ali... Todos esses dias andou borboleteando pelo templo com seus amiguinhos galileus...
Nicodemos: A quem você se refere?
Abias: A quem poderia ser? A esse tal Jesus de Nazaré. Todo mundo já está com ele pela ponta dos cabelos! Não faz outra coisa que armar confusão ou meter-se nas que outros armam.
Ziraj: Graças ao Altíssimo, essas confusões vão se acabar. Cachorro raivoso tem de ser tirado do meio para que não morda os demais... he, he, he... não é mesmo?
Nicodemos: O que você quer dizer com isso, Ziraj?
Ziraj: Quero dizer que já conversamos com o sumo sacerdote Caifás e que contamos com a autorização dele...
Nicodemos: Autorização para que?
Abias: Para agarrar esse agitador. Hoje termina a festa e termina também sua charlatanice. Ao calabouço por um bom tempo e irão baixar de uma vez essas malditas fumaças!...
Nicodemos: Mas como isso é possível? O que você está dizendo? Conforme nossa lei, não podemos condenar ninguém sem ouvi-lo antes...
Ziraj: Nicodemos, você não acha que já são suficientes todas as loucuras que tivemos de suportar desse indivíduo? Já encheu toda a Galiléia com sua baba e agora quer alvoroçar também a capital! Você não soube o que aconteceu outro dia com a mulher adúltera que iam matar a pedradas, como manda a lei de Moisés?
Nicodemos: Como não saberia! Toda Jerusalém só fala nisso...
Abias: Pois vamos tapar a boca de todos eles. Acabou-se! Vamos tirar esse agitador de circulação!
Nicodemos: Muito cuidado com o que fazemos, amigos. As pessoas dizem que Jesus é um profeta...
Ziraj: Sim, claro, o vinho da festa os fez ter visões... Um profeta! Da Galiléia não saem mais que safados e ladrões!
Nicodemos: Este homem é diferente, Ziraj. Eu fui uma vez falar com ele e lhes confesso que...
Ziraj: Que você também foi embromado? Mas, magistrado Nicodemos, por favor, abre os olhos! Por acaso algum dos nossos chefes ou dos fariseus acreditou? Veja só quem o segue: a chusma, essa gentalha que nem toma banho nem cumpre a Lei! Malditos!
Nicodemos: Ouçam-no falar primeiro. Só lhes peço que o ouçam falar.
Abias: Primeiro vamos pega-lo, depois vamos ver o que faremos com ele, he, he... Sacerdote Ziraj, diga aos guardas que venham. Temos de dar-lhes instruções para que façam um bom trabalho, he, he...

Um pouco mais tarde, as ruas próximas do tanque de Siloé rebentavam de gente. Com ramos de palmeiras nas mãos, esperávamos a procissão dos sacerdotes que chegariam à fonte com um cântaro de prata para enche-lo de água benta e depois derrama-lo sobre o altar do templo... As tochas, já acesas, iluminavam o entardecer de Jerusalém...

Ziraj: Demos graças ao Senhor porque ele é bom!
Todos: Porque seu amor não tem fim!
Ziraj: Que o diga a casa de Israel!
Todos: Seu amor não tem fim!
Ziraj: Que o digam os da casa de Aarão!
Todos: Seu amor não tem fim!
Ziraj: Que o digam os amigos do Senhor!
Todos: Seu amor não tem fim!

A solene procissão chegou à piscina de Siloé. E um sacerdote com uma dalmática bordada com uma estrela de seis pontas, desceu os úmidos degraus até o manancial que dava de beber a todos os moradores da cidade do rei Davi. Em seguida abaixou-se para encher de água o cântaro de prata...

Ziraj: Filhos meus, esta é a água bendita, a água que purifica e mata a sede e dá a vida! Louvem o nome de Deus e levantem os ramos em sua honra!

Então, aconteceu algo inesperado. Jesus subiu sobre uma mureta da piscina e gritou com voz muito forte para que todos o ouvissem...

Jesus: Amigos, escutem-me! Esta água está contaminada, não bebam dela! A água viva é outra! A água viva é o Espírito de Deus!
Um homem: Por mil capetas, quem é este bêbado que está gritando tanto?
Outro homem: Desçam-no daí, está distraindo as pessoas e atrapalhando a procissão!
Jesus: Amigos, o Espírito de Deus paira sobre as águas e faz coisas novas como no princípio da criação! Os que têm sede de justiça, que venham e juntem-se a nós! E em seu coração brotará um rio de água viva, como aquela torrente que viu o profeta Ezequiel, que inundou a terra e a limpou de todos os seus crimes!
Um homem: Mas, que desordem é essa? Até quando vamos agüentar este descalabro? Tapem a boca desse palhaço!
Outro homem: Veja, mas não é esse que dizem que é profeta e andam procurando para matá-lo?... E como fica aí gritando e ninguém faz nada?
Uma mulher: É bem capaz que os chefes do Sinédrio se converteram e engoliram também a história de que este agitador é o Messias!
Um homem: Quanta estupidez! O Messias vem do céu, em uma nuvem de incenso! E este aí veio da Galiléia, fedendo à cebola!!!

Tiago e eu estávamos nos dois lados de Jesus. Uma avalanche de gente nos rodeava. Os sacerdotes da procissão, encolerizados pelo que estava acontecendo, deixaram o cântaro de água e os ramos de palmeira e foram procurar os guardas. Mas Jesus continuou falando...

Jesus: Amigos, olhem lá pra cima! Olhem essas tochas que iluminam as muralhas da cidade!... Assim brilhará a nova Jerusalém. Eu lhes trago uma boa notícia que é luz para o mundo! E a notícia é que Deus, nosso Pai, presenteia seu Reino a nós, os de baixo. Deus é luz, e seu Espírito é uma tocha, e o Espírito vem botar fogo na terra, sim, fogo pelos quatro cantos, para queimar em seu cadinho toda a escória e para dar a luz a um mundo sem ricos nem pobres, sem senhores nem escravos, um novo céu e uma nova terra onde reinará a justiça!

Uma mulher: Vamos embora daqui, Leonora, que isso vai acabar mal!
Outra mulher: Que nojeira virou isso, sempre têm que misturar as coisas de Deus com a política!
Mulher: Vamos, corra, que daqui a pouco começam as pauladas e pedradas...
Um homem: Charlatão, isso é o que você é, um charlatão! Só podia mesmo ser galileu!
Outro homem: Palavras bonitas, mentiras grandes!
Homem: Cale-se e morda a língua, pedaço de animal! Você não vê que esse homem é um enviado de Deus?
Homem: Enviado de Deus? Mas, o que você está dizendo? Olhe só os cabelos dele!... É um louco e quer enlouquecer a todos nós. Ei, não tem ninguém para dar um empurrão e joga-lo desse muro?
Homem: Este homem está endemoniado! Vocês não o estão ouvindo? Você tem o demônio da rebeldia, nazareno!
Jesus: Não, amigo, eu não tenho nenhum demônio. Eu só estou dizendo a verdade! Acontece que a verdade machuca. E por isso alguns tapam os ouvidos!
Homem: Não escutem esse maluco! Tem duas línguas, como a serpente! É um enviado de Satanás!
Homem: E aqueles que estão vindo por aí, são enviados de quem?
Mulher: Esses sim é que são uns bons demônios!... Vamos embora, comadre que isto já está ficando feio!

Pela calçada de pedra que desce do monte Sião até a piscina de Siloé, vinham abrindo caminho quatro soldados da guarda do Templo enviados pelos sacerdotes, para prender Jesus...

Um soldado: Já chega, galileu! Já criou confusão bastante... Vocês, dissolvam-se!... Vamos, vamos, já falei para dispersarem-se todos...! E você desce desse muro se não quiser que a gente o desça na marra...!
Jesus: O que vocês querem de mim?
Outro soldado: Está preso. Acompanhe-nos!
Jesus: Preso? E de que sou acusado?
Soldado: São ordens do sumo sacerdote.
Jesus: Mas de que me acusam?
Soldado: Não sei e nem me importa. Temos ordem de prisão contra você assinada pelo sumo sacerdote.
Jesus: E quem é o sumo sacerdote?
Soldado: Você é tão ignorante que nem sequer sabe isso? Só podia ser um camponês!...
Jesus: Faz muito pouco tempo, soldado, e você também era um camponês como eu... Você e seus companheiros... Ou já não se lembra?... Sim, eu sei quem é o sumo sacerdote do Templo... É Caifás, um “grande homem”... E vocês estão ao seu serviço, não é assim?
Soldado: Chega de conversa mole, galileu! Eu já lhe disse que está preso!
Jesus: Pois então vamos para a cadeia!... Que coisa mais curiosa essa...! Uns presos levando outros presos...
Soldado: Mas, que tontice é essa que você está dizendo agora?
Jesus: Nada, disse que mais presos que eu, estão vocês. Vocês, guardas do Templo, que caíram no embuste dos chefes e dos sacerdotes e já não podem safar-se deles. Vocês que saíram do mesmo lado que nós e mamaram o mesmo leite e lavraram a mesma terra. Mostre-me suas mãos, soldado... não temos você e eu os mesmos calos?... Vocês eram dos nossos... e ainda continuam sendo. Mas os grandes os mandam lutar contra nós. Puseram em suas mãos espadas e lanças para matar e os encheram de ódio... Eles não mostram a cara. Usam vocês, os têm aprisionado num uniforme e umas quantas moedas que antes roubaram de nós. Essa é a verdade. Se vocês entendessem essa verdade, seriam livres.

O murmúrio das pessoas foi se apagando. Diante de Jesus, os quatro soldados da guarda do templo o olhavam fixamente. Já não empunhavam suas lanças com raiva... Tinham-nas inclinadas para o chão... Depois, olharam-se entre si, deram meia volta e se foram...

Ziraj: Vinte chicotadas para cada um desses quatro imbecis! E cadeia de um mês! E uma multa de cinqüenta denários! Vão pro diabo, vocês!
Abias: E ai, sacerdote Ziraj... O que aconteceu?
Ziraj: Estes soldados estúpidos... Deixaram-no escapar...
Abias: Por que não o trouxeram?... Digo, por que não prenderam esse sujeito?
Ziraj: Responda, imbecil! Ou receberá vinte chicotadas mais!
Soldado: Não pudemos... Nunca havíamos ouvido um homem falar... como ele.
Ziraj: Está vendo, sacerdote Abdias! Esse sujeito é mais perigoso do que parece! Enganou até esses aqui! Maldição para esse embusteiro!... E vocês quatro, fora! Ao calabouço! E quero ouvir os açoites daqui...! Para que aprendam a cumprir as ordens que recebem!

Enquanto isso, no manancial de Siloé, a água continuava correndo. E as tochas, naquele último dia da festa das Tendas, continuavam iluminando as muralhas e as torres compactas da cidade do rei Davi.


O último dia da festa das Tendas era o que tinha maior riqueza de celebrações. Eram tradicionais as procissões com ramalhetes feitos de palmeira, salgueiro, limão e outras árvores, em que se cantavam salmos, especialmente o 118. A liturgia também incorporava à festa o símbolo da água e os sacerdotes organizavam uma procissão em que se trazia em um cântaro de prata a água da fonte de Siloé – situada fora das muralhas – para derramá-la no altar dos sacrifícios .Durante este rito pedia-se a Deus chuva abundante para a nova colheita.

A Palestina é uma terra pobre em águas. Tem somente um rio importante, o Jordão. A chuva é um fator decisivo para a economia nacional. A época das chuvas dura de outubro até abril. Chove apenas no verão. A chuva precoce (metade de outubro a metade de novembro) prepara a semeadura do terreno, endurecida pelo calor do verão. A chuva fria (dezembro-janeiro) é mais abundante e arrasta terras férteis para os vales. Entre uma chuva e outra, começa a época da semeadura, que dura até fevereiro. Para uma boa colheita é imprescindível que venha também a chuva tardia (março e abril). Que essas chuvas fossem suficientes era o que pedia especialmente o povo a Deus nesta festa. Para que houvesse fecundidade e para que se cumprissem definitivamente as profecias que anunciavam aquele dia do Messias em que transbordariam as águas dos mananciais de Jerusalém até juntar-se com as águas do mar. A Festa das Tendas tinha pois, um marcado caráter messiânico e punha anualmente num vermelho vivo as esperanças de libertação do povo.

As antigas tradições de Israel comparavam o Espírito de Deus com a água que fecunda a terra estéril e tira dela frutos de justiça, de paz, de fidelidade a Deus (Is 32,15-18 e 44, 3-5). Era o Espírito quem devia converter Israel em um povo de profetas e transformar os corações de pedra em corações de carne (Joel 3,1-2 e Ez 36,26-27). No tempo de Jesus, a tradição dos rabinos e doutores, mais fria e rígida, havia abandonado bastante este simbolismo vital para comparar a água, não com o Espírito mas com a Lei. O gesto profético que faz Jesus na metade da cerimônia, sua solene proclamação, busca voltar ao simbolismo original da água: Ela é como o Espírito. E o Espírito de Deus faz sempre coisas novas.

Desde o primeiro dia da festa das Tendas se acendiam os candelabros de ouro no pátio das mulheres, no Templo. Por ali passava a solene procissão da água. Cada candelabro sustenta quatro vasos de ouro com azeite, nos quais ardiam mechas fabricadas com fios tirados das vestes sacerdotais. Para subir até os vasos era preciso usar escadas, pois estavam colocados bem altos e assim, sua luz era vista por toda a cidade. Falando do dia do Messias, os profetas haviam anunciado uma luz que superaria a noite (Zacarias 14,6-7). Aquelas tochas tinham, pois, um sentido messiânico. A tradição profética havia sempre relacionado o Messias com a luz, até dar-lhe inclusive o nome de “Luz” (Is 60,1). Partindo também deste simbolismo, Jesus fala também do Reino de Deus: Um reino sem sombras de injustiças, iluminado por homens livres. Dizer tudo aquilo no Templo, diante dos sacerdotes dirigentes, no meio da liturgia oficial,  foi visto como um escândalo tão tremendo que os sacerdotes decidiram atuar imediatamente detendo Jesus para condena-lo como blasfemo.

A “guarda do Templo” que os sacerdotes enviam para prender Jesus, estava formada por levitas, funcionários a serviço do templo, de posição menor que a dos sacerdotes. Entre as missões que desempenhavam, uma delas era a de ser polícia. Estes soldados tinham poder para prender, para reprimir pelas armas e inclusive para executar penas. Não só estavam a serviço dos sacerdotes, mas que as próprias autoridades romanas utilizavam este corpo armado para controlar as manifestações populares na região da Judéia. A estes homens armados Jesus fala com firmeza, mas com compreensão. Tanto que os soldados, apesar de sua situação de privilégio, sentem-se interpelados por estas palavras.

(João 7, 37-39 e 43-53; 8, 12-38)












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UM SAMARITANO SEM FÉ



Jesus: Amigos, de que adianta você dizer: “eu creio em Deus, eu tenho fé”, se você não faz nada pelos outros? Se um vizinho com fome bate à sua porta e você lhe diz: “Que Deus o abençoe, irmão” mas não lhe dá um pão, de que adianta isso, heim?... Assim acontece com todos os que dizem ter fé, mas ficam de braços cruzados. Esta fé é morta, é como uma árvore sem frutos!
Um homem: Bem falado! Viva o profeta da Galiléia!

Estávamos no templo de Jerusalém, no átrio dos estrangeiros. E, como sempre, os moradores da cidade de Davi foram nos rodeando para ouvir Jesus e aplaudir suas palavras. Era gente do povo que vinha nos escutar: oleiros, vendedores ambulantes, mulheres públicas, carregadores de água... Por isso, todos nos surpreendemos quando aquele mestre da Lei, com seu manto de linho e um grosso anel de ouro no dedo se aproximou do nosso grupo...

Mestre: Posso fazer-lhe uma pergunta, galileu?
Jesus: Por que não? Aqui estamos todos conversando... O que quer perguntar?
Mestre: Veja só, estou escutando você há algum tempo. E só o ouço falar de compartilhar o que se tem, de dar de comer ao faminto... Tudo isso está muito certo, não digo que não... Mas, você não acha que está esquecendo o mais importante?
Jesus: O mais importante?... E o que é mais importante?
Mestre: Deus. Você está se esquecendo de Deus. Ou será que você é um agitador político e não um pregador da fé de Moisés?
Jesus: Foi o próprio Deus que entregou a Moisés estes mandamentos de justiça.
Mestre: Claro que sim, galileu, mas na lei de Moisés há muitos, muitíssimos mandamentos... Se eu lhe perguntasse qual é o mais importante de todos eles, o que você me diria?
Jesus: Você sabe melhor que eu qual é a resposta. O que nos ensinaram na sinagoga desde crianças? ... “Amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma, com todas as tuas forças”.
Mestre: Então, segundo você mesmo, o primeiro é amar a Deus sobre todas as coisas, não é isso?
Jesus: Claro que sim, amigo. Deus é o primeiro. Mas... onde está Deus? Às vezes o encontramos onde menos se espera...

Jesus: Certa vez, ia um camponês pelo caminho solitário e perigoso que desce de Jerusalém a Jericó. Montado em seu velho jumento, aquele homem ia contente, de volta para sua casa. Havia vendido por bom preço a colheita de centeio e agora voltava a reunir-se com sua mulher e seus filhos...

Camponês: Anda, jumento, anda, não durma!... ainda temos um bom trecho pela frente... Ai, mulher, quando lhe contar...!Larará, lararará...! Com esse dinheirinho podemos pagar todas as dívidas... Caramba, tive uma grande sorte hoje! Lararí, larararí!

Jesus: Mas não, aquele não era seu dia de sorte. Porque na curva do caminho, no meio do deserto, alguns bandidos estavam de tocaia... E quando viram passar o homem montado em seu jumento...

Um ladrão: Passe o dinheiro se não quiser perder a pele!
Camponês: Não, não, por favor, não façam isso... é meu trabalho de seis meses, a comida dos meus filhos... eu sou um homem pobre...
Ladrão: Tome! Tome!
Camponês: Ai, ai, por favor...! Aiiii...!

Jesus: Os ladrões lhe deram com um pau na nuca, espantaram seu jumento e roubaram todo o dinheiro da colheita...

Ladrão: Eu acho que este já esticou as patas... Tira-lhe também a roupa...
Outro ladrão: Bah, jogue-o aí nesta valeta... e vamos embora antes que alguém passe e nos veja... Depressa!

Jesus: E o deixaram assim, junto ao caminho, meio morto, sem dinheiro e sem roupa... Pouco depois, quando o sol caía de cheio sobre o deserto, ouviram-se as pisadas de uma caravana de camelos. Eram os sacerdotes de Jericó que viajavam a Jerusalém para celebrar lá, no templo de Deus, o culto solene dos filhos de Israel...

Sofar: As festas deste ano, ficarão muito lindas, sacerdote Elifaz, posso lhe assegurar...
Elifaz: Diga-me uma coisa, Sofar. Disseram-me que o sumo sacerdote mandou comprar o melhor incenso da Arábia...
Sofar: Comprou também toalhas novas para o altar, e ouro puríssimo de Ofir...! esperemos que não falte o vinho para completar as festas! Rá!
Elifaz: Escute, preste atenção naquilo que está naquela valeta...
Sofar: Onde?... Ah, sim, estou vendo... mas não distingo bem... é um animal morto?... Ou um homem?
Elifaz: Aposto que é um homem... mas bêbado. Esse sujeito tem mais vinho dentro que um barril!... E não tem a mínima vergonha de embriagar-se nestes dias sagrados? Ah, sacerdote Sofar, são os vícios que estão acabando com nosso povo!
Sofar: Ei, amigo, você não tem vergonha?!!... Não tem respeito a Deus nem à sua Lei?... Não está nem ligando... Talvez esteja até morto. O que você acha se nos aproximarmos para ver se podemos fazer alguma coisa por ele?
Elifaz: Veja, sacerdote Sofar, se estiver vivo saberá se virar... se soube chegar até aqui, também saberá sair... E se está morto, o que é que vamos fazer?
Sofar: Tem razão, sacerdote Elifaz, muito sensata sua observação... Mas, e se estivesse meio morto?
Elifaz: Sabe o que eu penso, Sofar? A gente faz um favor para esta gentalha e eles nem mesmo lhe agradecem. Um sacerdote amigo meu levou em seu camelo um sujeito desses, e não havia andado com ele nem um par de milhas e ele já estava sacando o punhal e ameaçando-o, e lhe roubou tudo que levava. E se se descuidasse, até o esquartejava... Ah, foi tão triste aquilo!...
Sofar: Eu creio que você tem razão. E pensando bem, acho que este desgraçado já está até duro... Enfim, Senhor, dá-lhe o descanso eterno!
Elifaz: Amém.
Sofar: Bem, falar menos e caminhar mais, senão vamos chegar tarde para a cerimônia... Ohh, camelo, ohhh...!

Jesus: Pouco tempo depois, pelo mesmo caminho seco e empoeirado, passou outra montaria. Era um levita, um desses que tem por ofício ensinar ao povo os mandamentos de Deus. Ia acompanhado por sua mulher...

Levita: Estou lhe dizendo, Lídia, não preparei nada... Falar num povoado é mais fácil... mas um sermão inteiro em uma sinagoga da capital!
Lídia: Não se preocupe tanto, Samuel. Fale pra eles de ...disso, do amor a Deus, de que temos que ser bons e... e por aí vai.
Levita: Veja, que vulto é aquele?... Olhe...
Lídia: Não vai me dizer que é um morto...! Tenho horror disso!
Levita: Não, parece que está ferido, o sangue ainda está fresco, repare bem...
Lídia: Ai, que coisa mais desagradável! Vamos embora, Samuel, o sangue me enjoa, você bem sabe... não suporto essas coisas!...
Levita: Mas, quem será este infeliz...? Está com o rosto todo machucado...
Lídia: Vai ver é um desses revoltosos que andam conspirando contra o governador Pilatos... Claro, metem-se em confusões, se enredam na política e aí está o resultado... Depois, que não se queixem...
Levita: Este não está se queixando muito, esta é a verdade...
Lídia: Você se lembra do filho do Daniel? Tão jovem, tão bom moço... e entrou nessa febre de revolucionar... Que pena!... Acabou igual a este aí... Eu não entendo por que as pessoas não podem viver na paz e na tranqüilidade sem meter-se em problemas, não é mesmo, Samuel?
Levita: É que esse povo é muito violento, Lídia. Claro, não respeitam a Deus... Alguém lhes explica os mandamentos e os bons costumes e... e nada. Pela orelha direita entra e pela orelha esquerda sai. Se amassem o Senhor, não aconteceriam essas coisas... Bendito seja Deus!
Lídia: E bendito seu santo nome!
Levita: E este bendito jumento que se apresse, que neste passo não chegaremos nem no dia do juízo. Eia, jumento, arre...!

Jesus: E aconteceu que, pouco tempo depois, cruzou por aquele lugar um camponês montado em um jumento velho e magro...

Samaritano: Êta calor dos diabos! Quem será que inventou o deserto? Se não levo os figos ao mercado, ninguém os compra. E se os levo, me apodrecem pelo caminho... E depois dizem que Deus faz as coisas direito!... Pois eu digo que Deus dá barba a quem não tem queixo e dá moscas a quem não tem rabo para espantá-las!... Que porcaria, quando chegar a Jerusalém não me restará nem um figo para arrebentá-lo na pança do sumo sacerdote Caifás!

Jesus: Aquele camponês era um samaritano, daqueles que não acreditam em Deus nem põem nunca o pé no Templo. Quando viu aquele homem estropiado...

Samaritano: Ei, você, conterrâneo, o que aconteceu?!! Caramba, se eu estou mal, este aqui está pior... Está quase morto, compadre... Epa! Os abutres já estarão afiando o bico para o banquete!

Jesus: E o samaritano desmontou do jumento. E se aproximou daquele que estava estirado na valeta. E limpou-lhe primeiro o sangue do rosto.

Samaritano: É, esse vinho irá curar suas feridas... Vejamos... E azeite para que doa menos... Assim... assim...

Jesus: Em seguida rasgou a túnica para cobrir as feridas... E o cobriu com seu manto e o levantou do chão...

Samaritano: E depois dizem que Deus cuida do mundo e dos homens!... Pois veja como cuidou deste infeliz!... Bah, besteiras, se alguém já viu as orelhas de Deus, que me avise... vão contar esta história para outro idiota!

Jesus: E aquele samaritano sem fé carregou o homem em seu velho jumento, junto com o saco de figos que levava para vender no mercado e, embora estivesse a caminho de Jericó, regressou ao albergue que fica em Anatot e lá cuidou e passou a noite velando junto dele, porque o ferido ardia de febre... E quando amanheceu, o samaritano falou ao dono da pousada...

Samaritano: Ei, amigo, eu tenho que ir... Olhe vou pagar adiantado... Gaste o que seja necessário em remédios e, se não bastarem esses denários, eu lhe darei o resto quando voltar...

Dono: Escute, se este homem perguntar quem o trouxe aqui, o que lhe digo?
Samaritano: Diga-lhe que outro homem... um homem como ele e como você... Adeus, boa sorte e... cuide bem dele!

Jesus: E aquele samaritano que não acreditava em Deus nem nunca pisava no Templo, voltou a fazer o caminho, aquele caminho solitário e perigoso que vai de Jerusalém a Jericó... E agora você, que é mestre da Lei, diga-me, quem foi de todos estes que amou a Deus?
Mestre: Bem... não sei... na verdade... claro, o que se aproximou do ferido não tinha fé, mas...
Jesus: ... mas se aproximou do ferido que precisava dele. Você também, se alguma vez for a caminho do Templo, levar sua oferenda diante do altar, e se lembrar que seu irmão precisa de você, deixe sua oferenda, volte, e procure primeiro seu irmão.

O mestre da Lei ficou mais um bom tempo escutando Jesus... Depois o vimos afastar-se, com passo indeciso, até que atravessou a Porta dos três arcos, fora do Templo de Jerusalém...


Com muita freqüência, enquanto estava em Jerusalém, Jesus falava ao povo nos átrios do Templo, com palavras bem fáceis de entender por todos. O discurso dos escribas e doutores que ensinavam naqueles mesmos lugares, era sempre obscuro, misterioso, como para marcar bem a diferença entre eles que eram “sábios” e a massa ignorante. Haviam também despojado as Escrituras, com suas interpretações moralizantes, de toda a força profética. Como leigo, sem estudos, com a linguagem do povo, Jesus apresentava aos seus conterrâneos sua própria interpretação das Escrituras, tão livre, frente à dos especialistas, era surpreendente para o povo e irritante para os teólogos oficiais. Um deles lhe apresenta precisamente neste texto um problema de interpretação da Lei.

A pergunta do mestre da lei é uma pergunta teórica: qual é o mandamento principal? Jesus não irá respondê-la teoricamente, mas com um caso prático, com um exemplo bem concreto. A atitude religiosa não consiste somente em aceitar mais ou menos dogmas, saber o catecismo com sua lista de verdades e seu catálogo de normas morais. Porque a fé não está somente na cabeça, mas também nas mãos, em nosso agir. A fé exige obras, ações concretas. E não ações concretas dirigidas a Deus, a quem não vemos, mas aos irmãos, a quem vemos. Esta é a medula da mensagem de Jesus, de toda a fé cristã (Mt 5,23-24; Tg 1,22-27 e 2, 14-26; 1Jo 3,11-18 e 4, 19-21).

Jerusalém, como capital, era o centro do comércio de todo o país. Apesar disso, as comunicações com outras cidades não eram nada boas. Jericó estava separada por 27 quilômetros de caminho em declive, ao longo do deserto da Judéia. Nas desérticas montanhas da Judéia, há muitas cavernas e esconderijos que têm sido até hoje lugares propícios para a atividade dos salteadores de caminhos. O banditismo era então muito freqüente. As autoridades tratavam de controlá-lo, embora não fosse fácil. Às vezes, os romanos se vingavam dos ataques dos ladrões a suas caravanas, saqueando as aldeias vizinhas. Parece que em Jerusalém havia um tribunal especial para julgar os casos de pilhagem e para organizar medidas policiais contra os bandidos. Atualmente, o caminho que vai de Jerusalém a Jericó é, como naquele tempo, impressionante por sua nudez. Está ladeado por montanhas cinzas e peladas. Em uma das curvas do caminho, uma pequena capela – a do Bom Samaritano – recorda aos caminhantes a parábola de Jesus.

Por aquele caminho passaram primeiro os sacerdotes. Por turnos deviam ir ao templo de Jerusalém para oferecer ali os sacrifícios (sangue de animais, incenso e orações). Era uma casta poderosa, com muitos privilégios – em dinheiro e em prestígio social.  Abaixo deles, no serviço do templo, encontravam-se os levitas. Não eram sacerdotes nem podiam oferecer sacrifícios já que, como leigos, se lhes proibia aproximar-se do altar. Encarregavam-se da música do templo. Cantavam no coro e tocavam instrumentos nos atos do culto. Outros atuavam como sacristãos: ajudavam os sacerdotes a se vestirem para as cerimônias, levavam os livros santos, limpavam o templo. Alguns, com formação nas Escrituras, atuavam como catequistas. Outros trabalhavam como policiais do templo. No tempo de Jesus, havia uns 10.000 desses levitas. Para sacerdotes e levitas, o Templo, seu serviço, seu esplendor, era o valor primeiro, a principal obrigação religiosa. As leis de pureza os proibiam, por outro lado, de se aproximar de um cadáver. Buscando desculpas – a pureza ritual, a pressa, o desprezo que sentiam pela “gentalha” – não se aproximaram do ferido no caminho. E ao fazer isso, pensaram agradar a Deus.

Ao empregar um samaritano como terceiro personagem de sua história, Jesus surpreendeu a todos e irritou o teólogo que lhe havia perguntado. Os samaritanos eram sumamente mal vistos pelos israelitas, que sentiam por eles um profundo desprezo, mescla de nacionalismo e racismo. Além disso, o samaritano de quem Jesus fala aqui, não era um homem religioso. É um ateu. Não crê nem em Deus nem nos sacerdotes nem em nada. Usando este exemplo extremo, Jesus vai responder à pergunta teórica que lhe foi formulada pelo doutor: ama a Deus quem ama o companheiro ferido. Basta isso. E tampouco é necessário fazer esta caridade “por Deus”, mas pelo companheiro. Assim, um marginal da instituição, um ateu, um mestiço desprezado, se apresenta como o homem autenticamente religioso. Tremendamente escandalosa, a parábola do bom samaritano é uma das mais subversivas de Jesus.

A palavra original que Jesus emprega nesta parábola não é “próximo” mas “plesíon” (em grego), equivalente a “rea” (em aramaico) e, para nós, “companheiro”. No tempo de Jesus se entendia que para agradar a Deus era necessário fazer o bem aos outros, mas estava em discussão quem eram os “companheiros” que deviam ser objeto desta caridade. Os fariseus excluíam de seu amor os não fariseus, “a chusma”; os essênios tiravam fora “os filhos das trevas” (= os pecadores); muitos israelitas excluíam os estrangeiros; outros, os seus próprios inimigos pessoais. O “companheiro” – diz também esta história – é qualquer homem, pelo simples fato de sê-lo, que se encontra em necessidade. Ao final da parábola se descobre quem foi realmente “próximo”. Foi o ateu, que se aproximou do ferido e o fez seu próximo, seu chegado. Próximo não é somente aquele que encontramos em nosso caminho, mas aquele em cujo caminho nos colocamos. O amor verdadeiro exige uma atitude ativa de solidariedade, de busca e de aproximação.

(Lucas 10,25-37)

































79
O CEGO DE NASCENÇA



Ezequias: E assim, irmãos, nossos primeiros pais, Adão e Eva, quiseram esquadrinhar os segredos do Altíssimo e conhecer o bem e o mal. E pecaram. Porque somente a Deus pertence esta sabedoria. Somente ele é o juiz sobre o que é bom e o que é mau. Somente ele. E, com ele, nós, seus ministros aqui na terra, que recebemos do próprio Deus a faculdade de discernir qual é o fruto bom e maduro e qual o que está podre e cheio de vermes.
Uma mulher: Mestre Ezequias, já que você sabe muito sobre essa coisa de pecados, diga-me... quem você acha que pecou, Adão ou Eva?
Ezequias: Veja, filha, o pecado de Eva foi maior porque ela, além de comer da fruta, induziu o seu esposo a pecar e, por este motivo, seu pecado foi mais grave, muito mais grave...

Quando naquela manhã de sábado passamos perto da Porta da Água para entrar na cidade, o mestre Ezequias, conhecedor da Lei e das tradições de Israel, ensinava os peregrinos que o rodeavam... Mexia muito os olhos, como uma coruja atenta à caça de sua presa. Como ele, outros fariseus ensinavam a Lei de Moisés pelas ruas de Jerusalém durante aqueles dias de festa.

Ezequias: E então, quando, uma vez comida a maçã, o pecado de nossos primeiros pais se consumou, os dois sentiram vergonha por estarem nus. E nesse instante nasceu outro pecado, o pecado da concupiscência luxuriosa e também o pecado do desejo desordenado e, além disso, o pecado do prazer carnal e o pecado...
Chispa: Escute, mestre-sei-lá-como-se-chama, você pega um pecado e vêm outros sete colados atrás como as cerejas, Rá, rá, rá...!
Ezequias: O que disse esse infeliz?
Chispa: Disse o que disse: que se o velho Noé enchesse a arca com todos os pecados que você listou desde que abriu a boca, o barco se afundaria de vez.
Ezequias: Mas, quem é este atrevido?
Um homem: É um cego, mestre Ezequias.
Uma mulher: É  o Chispa. O chamam assim por causa da língua afiada que tem. Não a deixa quieta nem quando está dormindo.
Chispa: Não, continue, continue, mestre-sei-lá-como-se-chama, que esta história da senhora Eva pelada estava ficando interessante!... Re, re!... Pode crer, sou cego mas não sou aleijado.E com as mãos também se aprende muito! Rá, Rá, Rá!...
Ezequias: Mendigo indecente, fique quieto  e vai embora daqui e deixe-nos gozar das doçuras de meditar a Lei do Altíssimo...!
Chispa: Bom, bom, vocês com suas doçuras e eu com o meu vinho, o que é muito melhor! Ahhh...!
Ezequias: Linguarudo...! Linguarudo e beberrão. Bem, prossigamos nosso ensinamento. Alguma pergunta mais?
Uma mulher: Mestre, se você sabe do bem e do mal, digamos, por que este pobre homem nasceu cego? Será por causa do pecado de seus pais ou pelo pecado dele mesmo?
Chispa: Ei, ei, olhem que meu papai e minha mamãe são gente boa, não se metam com eles. Sua avó é que deve ser a pecadora! Vejam só as idéias dessa mulher...
Ezequias: Pergunta certa e claríssima resposta. Vejam vocês, conforme se pode perceber do espírito de rebeldia que possui este indivíduo e o deboche constante com que enfrenta os ministros de Deus, podemos determinar com certeza que este homem pecou e por causa do seu pecado, nasceu cego...
Chispa: Ei, você, mas se eu nasci cego, onde eu poderia ir pecar? Dentro da barriga da minha mãe?
Ezequias: Este homem pecou e continua pecando. Sua língua é seu próprio juiz. E em sua língua há pecado.
Chispa: E na sua, mestre-sei-lá-como-se-chama, que nem saliva deve ter mais! E aí, quer um trago?... Com tanto fala que fala de pecado, seu gogó deve estar mais seco que uma telha! Rá, rá, rá...!
Ezequias: Filhos meus, vamos embora daqui, para um lugar onde haja paz. Com este sujeito não se pode refletir serenamente sobre a palavra de Deus...

O grupo de peregrinos se afastou pela estreita rua seguindo o mestre Ezequias. O cego Chispa ficou no chão, sorrindo, com seu grosso bastão entre as mãos. Era muito moreno e o vinho fazia brilhar os seus olhos sem luz. Aproximamo-nos dele e Jesus se sentou ao seu lado...

Jesus: Ei, amigo, todos já se foram... Deixaram você bebendo em paz...
Chispa: Bom, o fato é que eu estava me divertindo muito com todos eles... Ui, que sujeito aquele! Eu não sei o que você pensa, conterrâneo, mas ele sim é que é um atrevido: que este sim pecou, que isto sim é bom, que aquilo sim é mau... Puff!
Jesus: É que ele quer trancar Deus numa jaula como se fosse um passarinho...
Chispa: Sabe o que ele disse? Que eu nasci cego porque cometi pecados... Mas, como vou pecar se não vejo? Rá! Se quero beliscar uma mulher, o que acabo pegando é um melão! Bah, Eu sei que sou um pobre diabo... E ainda por cima, pecador! Era só isso que me faltava! Olhe, amigo, eu creio que Deus, se tem saliva, não a gasta falando tanta besteira como este mestre... você não acha?

Então Jesus cuspiu no chão... Com a saliva e terra fez um pouco de barro... Depois untou os olhos cegos de Chispa...

Chispa: Espere aí, o que você está fazendo? Que é isso, rapaz? Está ficando louco?
Jesus: Escute, Chispa, vai lavar-se ali, na piscina de Siloé... E quando sair, volte até onde está o mestre charlatão, e conte-lhe o que aconteceu...
Chispa: Mas... Ei, não vai embora...! Escute, quem é você?... Quem é você...?

Um tempo depois...

Uma mulher: Olhe só, comadre Lina... Aquele que vai indo ali não é o Chispa?
Outra mulher: Mas, como pode ser ele se está sem o bastão e caminhando como se nada... Venha, vamos chegar mais perto. Deve ser alguém que se parece...
Mulher: Mas, você é o Chispa? O mesmo que fica todas as manhãs na Porta da Água?
Chispa: Sim, sou o mesmo que minha mãe pariu!... O mesmo.
Mulher: E como é que você está com os olhos sadios? Você pode me ver ou está de embromação como sempre, heim, bandido?
Chispa: Não, dona Lina, olhe bem que eu estou até podendo contar os pelos que estão lhe nascendo no bigode...
Mulher: Ô língua ferina! Você é muito atrevido!
Chispa: Mas não creia que eu vejo só o feio, dona Lina. Você também está muito bonita com esse lenço de listras... Vejo! Estou vendo tudo! Só não vejo aquele mestre que não sei como se chama... Aquele que me curou me disse que o procurasse... Por onde andará?

Em muito pouco tempo correu a faísca por todo o bairro...

Um homem: Como foi isso, Chispa, conte, conte...!
Chispa: Um sujeito que eu acho que se chama Jesus me enlameou os olhos e me mandou ao tanque de Siloé para lavar-me. Eu fui, me lavei e...zaz! me curei. Foi assim.
Homem: E onde está esse sujeito que o curou?
Chispa: Não sei onde se meteu! Mas agora quem eu estou procurando é aquele mestre da lei que tem voz de grilo... por onde andará?

Chispa acabou encontrando-o...

Ezequias: O que está acontecendo com você, infeliz pecador?
Chispa: Estou vendo! Estou vendo!
Ezequias: Como está vendo? O que você está dizendo, desgraçado?
Chispa: Que os meus olhos se abriram, é isto que estou dizendo!
Ezequias: Está vendo?... Está vendo a minha mão...? Assim... assim...
Chispa: Claro que estou vendo! E por falar nisso, mestre, sua mão está bem suja! Rá, rá, ra!
Ezequias: Cale a boca, atrevido! Você não é o Chispa. É um impostor enviado por aquele mendigo condenado para nos confundir.
Chispa: Não! Sou o mesmo que antes ficava na Porta da Água enquanto você contava aquela história da Eva pelada!
Ezequias: E então, o que aconteceu?
Chispa: Um homem colocou saliva e terra em meus olhos e eu me lavei na piscina e...zaz! estou vendo!
Ezequias: E quem é este homem?
Chispa: O que me curou. Eu estava cego e não pude ver-lhe a cara!
Ezequias: Hoje é dia de descanso! Ninguém pode curar no sábado!
Chispa: Mas este me curou, sim!
Ezequias: E em nome de quem ele fez isso?
Chispa: Ele mencionou Deus quando me curou.
Ezequias: Não pode ter falado o nome de Deus, porque quem não cumpre o sábado é pecador.
Chispa: Pois eu acho que era um homem bom. Vê lá se não era bom.. até me curou!
Ezequias: Nem é um homem bom, nem o curou em nome de Deus! Quem era esse homem?
Chispa: Dizem que é um profeta de Deus.
Ezequias: Embusteiro! Não pode ser profeta de Deus quem não cumpre a Lei de Deus!
Chispa: Bom, talvez não seja um profeta.. e eu com isso? Profeta ou não, me curou!
Ezequias: Já chega de bobagens. Você nunca foi cego, sem-vergonha, impostor! Vão chamar o pai e a mãe deste homem. Vou procurar agora mesmo os sacerdotes!

Um sacerdote: Tomem muito cuidado com as palavras que vão dizer! Estão na casa de Deus e diante dos representantes de Deus! Vamos tomar sua declaração em nome do Altíssimo! Estão dispostos a dizer a verdade?
Velha: Sim, senhor, nós diremos...
Outro sacerdote: Este homem é filho de vocês?
Velho: Sim, senhor mestre... É nosso filho Roboão... Alguns o chamam Chispa... mas é ele mesmo...
Sacerdote: Eu lhes peço juramento pelo trono do Altíssimo! É verdade que este homem nasceu cego?
Velha: É verdade... Tão verdade como que eu estou... tremendo de susto... Eu mesma o pari e nasceu com seus olhos mortos... Foi uma tristeza, senhor mestre...
Sacerdote: Então, se nasceu cego, como agora está vendo? Declarem a verdade na presença do Altíssimo!!
Velho: A verdade é que não sabemos como isso aconteceu...
Velha: Pergunte a ele, que já é bem grandinho... Ele explicará tudo... sim, pergunte a ele!

E mandaram chamar Chispa...

Sacerdote: Ouça, desgraçado, e ouça pela última vez! Você está diante dos livros da lei e na presença do Três Vezes Santo. Nós sabemos que este homem que você diz que o curou é um pecador. Se você se declarar seguidor dele, nós o declararemos pecador também! Não podemos consentir que este homem o tenha curado num sábado!
Chispa: E... se tivesse me curado numa Segunda-feira?
Sacerdote: Seu pecado seria igual! Não podemos tolerar que esse homem diga que faz as coisas que faz em nome de Deus! Nós somos os representantes de Deus e recebemos do Altíssimo o dom de interpretar a santa Lei! E nós declaramos que esse homem é pecador!
Sacerdote: Vamos ver, fale: o que você diz dele?
Chispa: De novo com esta mesma cantilena? Eu digo que não estou me importando nem um pouco com o que ele seja! Eu estava cego e agora... zaz! Vejo!
Sacerdote: Quem é esse homem? Onde está esse homem?!
Chispa:  Vamos acabar com isso... Já sei o que vocês estão querendo... Vocês também querem ir com ele para aprenderem a fazer coisas maravilhosas?
Sacerdote: Vai você atrás dele, endemoniado, você que é da mesma laia: pecador e mal-nascido! Segue-o você! Nós seguimos Moisés! Nós sabemos que Deus falou a Moisés, mas desse sujeito não sabemos senão que é um charlatão da Galiléia, com as sandálias rotas e fedendo a vinho e a prostituta!
Chispa: É aí mesmo que está a questão! Que esse sujeito é um pobretão e tem Deus do seu lado, porque eu nunca vi que sem contar com Deus se possa dar a vista a um cego...
Sacerdote: Agora até você vai querer nos dar lições? A nós? Aos ministros de Deus? Fora, maldito! Não podemos tolerar que um pé-rapado como você venha nos dizer quem está com Deus e quem não está! Isso é coisa nossa! Não consentimos que esse homem faça o que está fazendo! De Deus nos vem o poder com o qual condenamos a ele e com ele expulsamos você da sinagoga! Anátema com você! Saia daqui e não volte a pôr os pés na casa de Deus!

E os ministros de Deus expulsaram da sinagoga Roboão, a quem chamavam de Chispa, que havia nascido cego e que desde aquele sábado pôde ver a cor das pedras e as formas das nuvens. Jesus lhe havia devolvido a vista. E tudo ele fazia bem: abria os olhos dos cegos, e deixava na escuridão os que, cheios de orgulho, acreditavam ver.


Os escribas, doutores e mestre da lei exerciam uma forte influência sobre o povo. Eles sabiam e isto os fazia considerarem-se superiores. Por outro lado, por serem os “especialistas” em religião, os que “sabiam”, se sentiam imunizados, a salvo do pecado. A superioridade com que se apresentavam ao povo era, portanto, intelectual e moral. Muita gente os respeitava e seguia suas instruções, os consultava e se deixava ensinar por eles. Dificilmente os mestres da Lei, que se haviam feito assim com o monopólio de Deus e da religião, iriam renunciar a este privilégio que lhes proporcionava tantas vantagens. Daí sua oposição sistemática a Jesus, leigo, sem formação teológica especial, que falava sobre temas religiosos com toda liberdade e de maneira contrária à estabelecida pela religião oficial.

A pergunta que fazem ao mestre sobre a cegueira de Chispa, corresponde à mentalidade da época. Acreditava-se que toda desgraça era conseqüência de um pecado cometido e que Deus castigava na proporção exata da gravidade da falta. Deus também podia castigar “por amor”, para pôr à prova o homem. Se se aceitava estes castigos com fé, o mal se convertia em bênção, pois o homem chegava a alcançar um mais profundo conhecimento da lei e recebia o perdão de seus pecados. Mas era crença também que nenhum castigo que viesse como prova de Deus poderia impedir o homem do estudo da Lei. Nesse sentido, a cegueira não podia nunca ser prova de amor, mas maldição. Alguns rabinos opinavam que uma criança podia pecar ainda no ventre de sua mãe, mas o mais freqüente era pensar que os defeitos corporais do nascimento eram devidos aos pecados dos pais, apesar do esclarecimento que sobre esse tema dos castigos herdados haviam feito os profetas, insistindo na responsabilidade individual de cada pessoa diante de Deus (Ez 18,1-32).

Diante da intolerância e do fechamento que supõe o ensinamento oficial, Jesus se aproxima do cego, de igual para igual, não aceita os juízos que sobre sua enfermidade fez a religião estabelecida nem muito menos a idéia de Deus que se esconde por trás desses juízos. Deus não é monopólio dos teólogos e nem pode o homem estabelecer os caminhos de sua atuação. Deus é livre e quer homens livres. Tudo isso indica o sinal que fez Jesus ao abrir os olhos do cego de nascença. Os que acreditam que vêem, que têm a verdade, que possuem a ciência, são cegos. E aqueles que são desprezados, os últimos, são os que na realidade vêem, os que chegam a conhecer de fato quem é Deus.

Jesus unta os olhos do cego com barro feito com terra e saliva. Isto também é um sinal: está reproduzindo a cena do Gênesis, quando Deus criou o homem do barro da terra. Jesus faz a argila com sua saliva. Em Israel pensava-se que a saliva transmitia a própria força, a energia vital e, por isso, era usada para curar enfermidades. Por exemplo, era crença tradicional que a saliva do filho primogênito curava as enfermidades dos olhos. O elemento simbólico deste barro, feito assim, é importante. O evangelho de Jesus, sua boa notícia, é capaz de criar um homem novo, que seja realmente livre, não só diante de seus irmãos, mas inclusive diante do próprio Deus. Deus não condena o homem nem o castiga com sofrimentos. Deus quer relacionar-se com o ser humano de igual para igual.

A piscina de Siloé estava situada fora das muralhas de Jerusalém. Siloé significa “enviada”, e esse nome faz referência à procedência da água que se acumulava no tanque. A água chegava a Siloé vinda do manancial de Guijon, situado ao oriente da cidade. A fonte do Guijon era o único manancial  de águas de Jerusalém que emanava ininterruptamente, em qualquer época do ano. Daí o interesse das autoridades de represar esta água para abastecer a cidade em tempos de seca e, sobretudo, em época de guerra. Por isso, setecentos anos antes de Jesus, o rei Ezequias mandou construir um túnel, da fonte de Guijon a Siloé, que naquele tempo se encontrava dentro dos muros da cidade. Este túnel, cavado na rocha viva,é uma obra de engenharia admirável. Tem meio quilômetro de comprimento e tão somente meio metro de largura e uma altura que oscila entre 1,5 e 4,5 metros. Ainda hoje se pode percorre-lo. É um trajeto que se faz em três quartos de hora, à luz de uma lanterna e com a água do manancial a meia perna, até chegar às ruínas do primitivo tanque de Siloé.

O que importava aqui às autoridades religiosas não era se o cego via ou não via, mas manter seu poder e sua influência. O acontecido os desconcerta, porque rompe seus esquemas teológicos. Mas não estão dispostos a admitir que, através de um leigo que havia, além de tudo, violado a lei do descanso do sábado, possa manifestar-se o poder de Deus.   Seu sistema de condenação irá por etapas. Primeiro negam que o fato seja verdade e tratam de reduzi-lo totalmente a uma fraude. Depois, tentam frear, pela ameaça e pelo medo, a alegria diante da cura e tratam de definir – com a autoridade a que se arrogam – que a vida (o ver) é algo negativo, perigoso. Negam a evidência, invertem os valores: ao bem chamam mal, à luz chamam trevas. Sua falsa teologia tem argumentos para tudo. E entre o homem e a lei, escolhem a lei. A última etapa é já um ato de violência: expulsão da comunidade.

(João 9,1-41)























80
O PIEDOSO E O MALANDRO



No bairro do Ofel, no centro mesmo de Jerusalém, vive muita gente e as casas se amontoam umas sobre as outras. Querendo ou sem querer, todo mundo fica sabendo da vida alheia... Naquela Segunda-feira, ao passar em frente à casa de Ezequiel, o piedoso...

Ezequiel: Pois acredite, Rebeca,  saímos do templo envoltos em uma nuvem de incenso. O mestre Josafá ia na frente, abrindo a procissão, com o livro da Lei levantado entre as mãos.
Menino: Buaaaaaj...
Ezequiel: O que foi esse barulho, filhote!
Rebeca: Acho que foi o pé da cadeira, Ezequiel. Continue contando da procissão...
Ezequiel: Pois bem, como ia dizendo, saímos do templo com aquele fervor, com aquele recolhimento...
Menino: Buaaaaj...
Ezequiel: Mas, o que acontece com este menino?
Rebeca: Vai ver é uma má digestão...
Ezequiel: Vai ver é uma má educação, isso sim! Filhote, “o homem grosseiro é a vergonha da família”. Você não vai fazer mais isso, não é mesmo?
Menino: Sim, papai.
Ezequiel: Como, sim?
Menino: Não, papai.
Ezequiel: Sim ou não? Responde!
Menino: Sim e não, papai.
Rebeca: Ai, deixe-o quieto, Ezequiel. Ainda é uma criança, não o atormente! Não vê que ele não sabe o que diz?
Ezequiel: “A grosseria é que atormenta o espírito. A boa educação, pelo contrário, é como o azeite que o apazigua”. E falando em azeite, Rebeca, por que você não traz algumas azeitonas para entreter essa conversa?
Rebeca: Já vou, Ezequiel...
Ezequiel: Você gosta muito de azeitonas pretas, não é filhote?
Menino: Não, papai.
Ezequiel: Como? Você não gosta de azeitonas pretas? E por que, filhote?
Menino: Porque têm gosto de merda.
Ezequiel: Mas, que palavras são essas? Rebeca, que modos são esses que nosso filho está aprendendo?!
Rebeca: São os meninos da vizinhança que o ensinam, Ezequiel...
Ezequiel: “Amigos na praça, indecência em casa”. Filhinho, esta palavra é um pecado.
Menino: Que palavra, papai?
Ezequiel: Essa, que você disse antes...
Menino: Qual, papai?
Ezequiel: Você sabe qual é, e não quero ouvi-la nunca mais em minha casa.
Menino: Mas, papai, que palavra? Diga-me, que palavra?

Enquanto isso, em outra casa do bairro onde vivia o malandro Filemon...

Filemon: Eu é que estou me arrebentando... Rá, rá, rá... é que... é que não me agüento...
Martina: Mas, acabe a história, homem!
Filemon: Imagine você, Martina, que chega o mordomo e diz ao rei: “meu rei, o príncipe está conspirando contra você”. E o rei diz: “bobagens, bobagens, o príncipe é ainda um menino inocente”. Aí diz o mordomo: “Pois este menino inocente já pôs os dois olhos sobre o trono”. E diz o rei: “bah, enquanto não põe o terceiro...!” Ai, eu vou me derreter... Rá, rá, rá...!
Martina: Rá, rá, rá...! Não seja tão porco, Filemon...
Filemon: Não, é que a porcaria começa agora, quando chega a rainha e diz ao rei... Rá, rá, rá...! Ai, ai... Eu é que não agüento mais... já me está doendo o umbigo de tanto rir... ai... Rá, rá, rá...

No dia seguinte, Terça-feira, na casa do piedoso Ezequiel...

Ezequiel: Querida esposa, hoje é Terça-feira, dia dos anjos protetores.
Rebeca: E daí, Ezequiel?
Ezequiel: É que os anjos são espíritos puros. Não comem nem bebem. Devemos imita-los, Rebeca. Hoje deveríamos jejuar.
Menino: Mas, papai, estou com fome...
Ezequiel: Você cale a boca, ranhento... E você, Rebeca, prepare um caldinho leve e um pouco de pão...
Rebeca: E... só isso?
Ezequiel: Isso será suficiente. “Nosso corpo é como um burro xucro: mantenha-o na rédea curta e o dominarás”.
Rebeca: Mas, Ezequiel, nosso filho está crescendo, precisa alimentar-se bem. Tenho medo que...
Ezequiel: Não tenha nenhum medo, Rebeca. Quem cumpre com o jejum, não teme a Deus. Quem jejua comparecerá com a cabeça bem alta diante do tribunal do Altíssimo.
Rebeca: E bem de pressa iremos a este tribunal, do jeito que as coisas andam...

A essa mesma hora, na casa do malandro Filemon...

Filemon: Puxa vida, os peitos desse frango estão melhores que os seus, Martina!
Martina: Mas, onde você consegue enfiar tudo o que engole, heim? Parece um saco sem fundo... Olhe, Filemon, pare de comer senão você vai vomitar...
Filemon: Não, vê lá! Eu sou como os pelicanos, que nunca soltam o que têm no bucho! Rá! Epa, serve-me mais berinjelas e lentilhas! E um bom pedaço daquele toucinho! Lararoooó...!
Martina: Bom, vê lá, quando arrebentar...
Filemon: Barriga cheia, coração contente, assim dizem...
Martina: Também dizem de boas ceias estão as sepulturas cheias.
Filemon: Pois veja, se a morte vier me buscar hoje, eu direi que não posso dar um passo sequer... E se quiser que me leve rolando!

No dia seguinte, Quarta feira, na casa de Ezequiel, o piedoso...

Ezequiel: “Tomarás o dízimo de tudo o que seus campos produziram e o levarás ao santo templo de Deus e ali oferecerás como sacrifício agradável a décima parte de teu trigo, a décima parte de teu azeite, a décima parte de teu vinho”... Assim ordenou Moisés, assim está escrito no livro do Deuteronômio e assim eu irei cumprir.
Rebeca: Hoje entregaremos nossos dízimos e esmolas aos sacerdotes de Deus. Tudo seja pelo Templo, para honrar o nome do Senhor e para que ele nos conte no número de seus eleitos!

A essa mesma hora, Filemon jogava na taberna do bairro...

Filemon: Esse é o número! Conte! Conte! Com dois vão seis, e com o oito, dezesseis! Ganhei de novo!
Um vizinho: Mas, que maldita sorte você tem esta noite, Filemon. Você me deixou mais pelado que Adão!
Filemon: Acontece que eu tenho um irmão gêmeo e começamos a jogar dados desde a barriga da minha mãe!
Vizinho: Não, o que acontece é que você fez trapaças!
Filemon: Trapaças? Trapaceiro eu? Olhe, vizinho, vou lhe dar outra oportunidade. Aposto tudo no sete! Tudo, tudo, os quarenta denários que eu ganhei nesta noite e os que eu ganhei de você ontem!
Vizinho: E o que eu aposto, se já não me resta nenhum cêntimo?
Filemon: Aposte a túnica, homem. Não, não, aposte sua mulher. Isso, sua mulher contra os meus denários. De acordo?
Vizinho: De acordo, jogue os dados!
Filemon: Arcanjo das sete nuvens, querubim das sete asas, demônio dos sete chifres... que me saia o sete! Aí vai... Seeeeeete!!! Pela tromba do elefante de Salomão, ganhei outra vez. Sua mulher é minha, vizinho!

Quando chegou a noite de Quinta-feira, na casa do piedoso Ezequiel...

Ezequiel: Rebeca, digo a você o mesmo que o santo Tobias disse a Sara, a filha de Ragüel: não subirei ao leito matrimonial sem antes invocar o nome do Altíssimo.
Rebeca: Huuuummmm...! Pois invoque-o e deite-se de uma vez, pois eu já não posso nem com a minha alma...
Ezequiel: “Senhor, tu sabes que não vou tomar esta minha irmã com desejo impuro e nem me aproximo dela sem reta intenção. O único motivo pelo qual me unirei a ela é para procriar um filho. Um filho, Senhor, que não será fruto do desejo carnal, mas da esperança de gerar o Messias”. Esposa minha: procriemos! Esposa minha...
Rebeca: Ahuuuummmm! Esposo meu, com tanta conversa mole o Messias adormeceu....

Enquanto isso, na casa do malandro Filemon...

Filemon: Pssst... venha cá, minha gorducha... seja boazinha...
Uma mulher: Mas, Filemon, você está louco. O que meu marido vai dizer se ele chegar e nos encontrar juntos?
Filemon: Não vai dizer nada! O susto faz engolir a língua.
Mulher: E o que eu vou dizer a ele, heim?
Filemon: Diga que você é sonâmbula e que... caminhando você chegou até os meus braços... mmm...
Mulher: E a sua mulher... se ela fica sabendo...?
Filemon: Quem? Minha mulher? Não, sossegue... Ela não fica sabendo de nada. É cega e surda.
Mulher: E por que você se casou com ela então?
Filemon: Por isso mesmo!
Mulher: Filemon, você é um sem-vergonha!
Filemon: Posso até ser um sem-vergonha, mas você está mais gostosa que um queijo.
Mulher: Tire a mão daí, atrevido...!
Filemon: É que eu estou com frio, gordinha... mmm... mmm...

E chegou a Sexta feira, na casa do piedoso Ezequiel...

Menino: Papai, papai, eu quero sair, vamos à praça, papai...
Ezequiel: Não, filhinho. Na praça há garotos mal-educados. É lá que se aprende a dizer grosserias...
Rebeca: Poderíamos ir cumprimentar minha prima Rosita, pobrezinha, está tão sozinha...
Ezequiel: Ela não está sozinha. Está divorciada. E não porei meu pé na casa de uma divorciada. Quando passar pela rua, virarei o rosto!
Menino: Papai, vamos à escadaria! Todos os meninos vão lá brincar de cavalinho!
Ezequiel: Mas filho de boa família não deve se misturar com os filhos da rua. A sabedoria consiste em sempre guardar a distância conveniente. Não se esqueça disso, filhinho.
Rebeca: Por Deus, Ezequiel, vamos ainda que seja só para esticar as pernas e dar uma volta pelo bairro.
Ezequiel: Não, Rebeca. Depois, já está ficando tarde e lembre-se que amanhã é sábado. Devemos madrugar para ir ao Templo e prestar culto ao nosso Deus. Vamos, vamos, para a cama, filhinho. Vamos descansar, esposa minha...

Na casa de Filemon também era hora de deitar-se...

Matina: Vamos, Filemon, meta-se já na cama... deite-se...
Filemon: Hip! Para que tanta pressa... se não há nenhum incêndio?... A noite é longa como o rabo de um macaco... Hip! Viva o macaco e viva a macaca!
Martina: Você está bêbado, Filêmon...
Filemon: Bêbado, eu...?... Bêbado, eu?...
Martina: Sim, bêbado você! Vamos ver: quantos dedos tenho nesta mão. Olhe bem.
Filemon: Quantos dedos nesta mão? Deixe-me conta-los... dois... quatro... seis... oito... dezesseis... vinte e quatro... quarenta e quatro... Hip!
Martina: Está bêbado mesmo... vamos, deite-se...
Filemon: Mais bêbado estava Salomão e não o meteram na cama... Hip! Eu sou o rei Salomão... Hip!... Hip! Eu sou o rei Salomão... Hiiip!

E chegou o Sábado, o dia do descanso, quando os filhos de Israel subiam ao templo para rezar...

Ezequiel: Oh, Deus te dou graças porque me permitiste viver outra semana sem faltar a nenhum de teus mandamentos. Minha família e eu não somos como outras famílias da cidade. Cumprimos com o jejum, cumprimos com a esmola e o dízimo, cumprimos com todas as normas prescritas em tua santa Lei...

O piedoso Ezequiel, junto com sua esposa e seu filho, rezava em voz alta, de pé, em frente ao altar de Deus... E, enquanto ele rezava, um homem entrou no templo e ficou atrás, no fundo. Ajoelhou-se, inclinou-se até o chão e com o punho fechado batia no peito... Era o malandro Filemon...

Filemon: Senhor, estenda-me sua mão... eu sou um desgraçado... Senhor!

Ezequiel: Te dou graças, Deus meu, porque minha família e eu não somos como esses outros que estão manchados por dentro e por fora, ladrões, adúlteros, bêbados, viciados... Ramn... Como esse que está às minhas costas...
Filemon: Senhor, olha pra mim... Eu não sou o rei Salomão... Eu sou... eu sou um merda... Estenda sua mão, Senhor... Eu quero mudar de vida... Eu queria...

Jesus: E aconteceu, amigos, que naquele dia, o malandro voltou para sua casa reconciliado com Deus. E o piedoso não. Porque Deus coloca na frente os que ficam atrás. E põe atrás os que se põem na frente.


O piedoso e o malandro são “o fariseu e o publicano”. São o decente e o sem-vergonha, o homem religioso e o pecador. Ao contar esta história, Jesus faz uma dura crítica à piedade orgulhosa de seu tempo e de todos os tempos. Também está falando de sua conduta pessoal: Jesus esteve habitualmente rodeado desses malandros e sem-vergonhas, alguns deles faziam parte de seus discípulos mais próximos e sua boa notícia foi dirigida a eles. Jesus simpatizava com essa gente. Ao falar e agir assim, estava revelando-nos, em sua vida e com seus gestos, como é Deus. Um Deus próximo dos miseráveis e distante dos que se crêem perfeitos.

O movimento fariseu, composto por leigos homens, tinha muita importância no tempo de Jesus. Calcula-se que então, contava com quase 6.000 membros. Embora os chefes do movimento fossem pessoas instruídas e de classe social elevada, tinha muitos adeptos entre as classes populares. Suas comunidades eram fechadas – como seitas. Consideravam-se os bons, os salvos, os prediletos de Deus. Para entrar e fazer parte destes grupos fariseus, selecionava-se muito os candidatos e havia um período de formação de um a  dois anos.

O centro da prática farisaica  era o cumprimento escrupuloso da lei, segundo a interpretação que eles mesmos faziam das Escrituras. No tempo de Jesus haviam estabelecido 613 preceitos na Lei. Deles, 248 mandamentos eram positivos e 365 eram proibições. Convertiam assim a vontade de Deus – a Lei – num jugo pesado e angustiante. Os que não cumpriam todas estas normas pontualmente eram considerados malditos. Os fariseus desprezavam profundamente a massa do povo e estavam convencidos de que era gente incapaz de conseguir a salvação. Grande parte da mensagem de liberdade e esperança de Jesus recobra seu sentido contrapondo-a ao estilo de vida que os fariseus levavam e tratavam de impor.

Os fariseus haviam conseguido atrair algumas camadas populares, sobretudo porque eram anticlericais. Eram contra a hierarquia sacerdotal e proclamavam que a santidade não era coisa somente de sacerdotes, mas que qualquer fiel leigo podia alcança-la. No entanto, desvirtuaram profundamente esta verdade ao interpretar na prática em que consistia ser santo. Reduziam tudo ao cumprimento escrupuloso de uma série de atos piedosos: jejum, esmolas, rezas. Eram formalistas e viviam de ritos. Salvar-se para eles era uma questão de acumular méritos. Jejuavam às Segundas e às Quintas-feiras (a Lei só ordenava um dia de jejum por ano), pagavam ao templo impostos (dízimos) até de ervas insignificantes, marcavam fanaticamente a distância com os “pecadores”. Estes eram, justamente, os glutões, os beberrões, os que entravam em jogos de aposta (muito mal vistos pelos homens religiosos), os que sempre estavam metidos em trapaças e logros... Os “malandros”.

A mensagem constante de Jesus – em gestos, em palavras, em parábolas – de que Deus se interessa especialmente pelos pecadores, pelos sem-vergonhas, de que estes estão conseqüentemente mais perto de Deus que os piedosos, provocou sempre um irado protesto por parte dos fariseus. Aquilo lhes era intolerável, pois sempre haviam vivido seguros em sua piedade. E isso é justamente o que Jesus lhes atira na cara. O evangelho vem dizer que nada afasta mais o homem de Deus do que a piedade segura de si mesma. Essas pessoas pretendem separar-se dos maus e de um possível contágio e, na realidade, elas mesmas se separam de Deus. Os fariseus acreditavam que era praticamente impossível os malandros se salvarem. Jesus inverte tudo: a salvação é mais difícil para o homem “piedoso” porque o que afasta de Deus não são esses pecados tão grandes, mas essa piedade que conduz à insolência, à soberba, à segurança, essa atitude em que praticamente não há esperança de conversão. Os malandros, pelo contrário, estão mais abertos à humildade, a reconhecer suas faltas diante de Deus.

Esta mensagem tão transcendental é contada neste episódio de forma bem humorada e picaresca. Não para tirar-lhe a importância mas para que confrontados com a caricatura de nossas atitudes, aprendamos a profunda humildade que há em saber rir de nós mesmos e não nos levarmos demasiadamente a sério.

(Lucas 18, 9-14)






















81
JUNTO AO POÇO DE JACÓ



Quando terminou a Festa das Tendas, Jerusalém despediu com tristeza os peregrinos que haviam enchido suas ruas durante aquela longa semana. Para nós, galileus, era hora de regressar ao norte...

Tiago: Olhos abertos! Por estas paragens há ladrões até debaixo das pedras...
João: Já passaram todas as caravanas... O que vão roubar de nós?...
Jesus: Fora os piolhos que pegamos em Jerusalém, não estamos levando mais nada...
Tiago: Digam o que quiserem, mas esta terra parece maldita...
João: Sim, é encardida... como a pança do demônio...
Tiago: E está vazia como o esqueleto de uma vaca morta.
Felipe: Caramba, Tiago, não fale assim, que já estou com medo suficiente aqui dentro...

Desde centenas de anos nós, galileus do norte e os judeus do sul temíamos e odiávamos os samaritanos, aqueles compatriotas nossos que viviam nas terras centrais do país... Por todos os caminhos de Israel corriam lendas que aumentavam esses temores. Um samaritano era para nós um rebelde às tradições de nosso povo e não merecia nem uma saudação. Os samaritanos, claro está, também nos desprezavam...

João: O que dizem os seus calos, Jesus?
Jesus: Estão dizendo que querem tirar um descanso, João. Puf...
Felipe: Pois eu trocaria meu bastão e minhas sandálias por um copo de água... Estou morrendo de sede!
Tiago: O sol da Samaria é tão traidor como sua gente, Felipe...
João: Paciência, camaradas. Quando esse traidor tiver andado dois palmos mais, estaremos em Sicar. Lá poderemos comer e beber...
Tiago: Até lá, conforme-se engolindo saliva, Felipe...

Quando o sol sinalizava a metade do dia, chegamos a Sicar, uma pequena aldeia construída entre dois montes, o Ebal e o Garizim, a montanha sagrada dos samaritanos...

João: De pressa! Vamos ver quem chega primeiro ao poço!

À entrada da aldeia ficava o poço que nosso pai Jacó comprou dos cananeus dois mil anos atrás para presenteá-lo, ao morrer, a seu filho José.... É um poço grande e muito profundo. A água que corre em abundância debaixo da terra ressecada faz crescer, junto dele, tamareiras de folhas brilhantes...

Tiago: Vamos primeiro comprar azeitonas e pão! Minhas tripas já estão cantando as lamentações de Jeremias!
João: Vamos, Pedro! Correndo!... Você vem, Judas?... E você, Felipe?
Felipe: Sim, vamos todos!... E você, Jesus?
Jesus: Não, eu vou ficar aqui no poço. Estou muito cansado... Estou até achando que estou com um pouco de febre... Eu espero vocês aqui.
Felipe: Está bem. Tire uma soneca, moreno. E quando você acordar terá à sua frente uma bela jarra de vinho!...  Vamos embora!...

Saímos correndo até Sicar. Quando nos afastamos, Jesus se recostou sobre uma pedra, entre os caniços, e fechou os olhos... Passou um bom tempo...

Abigail: Ei, quem está aí?
Jesus: Humm... Peguei no sono...
Abigail: Vai pro diabo, barbudo! Você me deu um belo susto, sabia? Pensei que era uma ratazana.
Jesus: Pois agora você está vendo... não tenho rabo... Sou Galileu... Pior que uma ratazana, não acha?

Junto ao poço de Jacó, uma mulher samaritana, de rosto formoso e tostado pelo sol, olhava fixamente Jesus, estendendo até ele seu braço moreno, cheio de pulseiras...

Abigail: Você é que está dizendo... Eu não disse nada... Olhe, eu não me meto com ninguém. Venho buscar água e volto por onde vim. Não gosto de confusão... Daí que não quero nada com você, está bem?
Jesus: Mas eu sim quero algo com você..
Abigail: Ah, sim?... Um galileu com uma samaritana... Vê lá! Isso sim é que é divertido... pois você se enganou de poço, amigo... A água “desta fonte” já tem dono...
Jesus: Não, você é que está se enganando, mulher...
Abigail: Mmmm... mmm... mmm...!
Jesus: Como?
Abigail: Mmmm... Que eu não falo com galileus, caramba! Não quero nada com eles!
Jesus: Pois eu falo com samaritanas. E já lhe disse que quero algo de você...
Abigail: Mmmm... mmm... mmm...
Jesus: Olhe, pare de resmungar e dê-me um pouco de água... Estou morto de sede... Não fale comigo se não quiser, mas dê-me de beber, ande...
Abigail: Ah... então era isso? Olhe, até que essa não foi tão ruim, mas o que você quer então é só água...?
Jesus: Não é o bastante? Custa pouco e não embriaga.
Abigail: Sim, sim... ... Mas eu prefiro vinho...
Jesus: Então você é como o mosquito...
Abigail: Como o que?
Jesus: Como o mosquito. Você não sabe o que disse o mosquito à rã, quando se atirou no barril?... “Mais vale morrer no vinho que viver na água”... e plash! Se enfiou de cabeça e se afogou contentíssimo no vinho!
Abigail: Rá, rá, rá!...!... Mmmm... mmm...
Jesus: O que aconteceu? Sua língua travou de novo?
Abigail: Olhe aqui, moço, ponha as coisas claras de uma vez... O que você anda procurando?... A mim você não enrola... quem é você, heim?
Jesus: Quem você acha que eu sou?
Abigail: Aposto todas as minhas pulseiras que você é um desses bandidos que andam soltos pela montanha roubando os homens e violando as mulheres.
Jesus: Você acha que eu tenho cara disso?
Abigail: Não, o que você tem é cara de contador de histórias. E de embromador. Porque eu sou uma mulher decente e você já me enredou para conversar... com um galileu!
Jesus: E lá vem de novo essa história de galileu. Mas, venha cá, mulher, o que os galileus lhe fizeram, diga-me?
Abigail: A mim, nada. Mas aos meus, muito. Vocês galileus se acham os donos do mundo e nos desprezam e falam mal de nós.
Jesus: E vocês samaritanos se acham os donos do mundo, nos desprezam e falam mal de nós. Assim que, dê logo essa água que estou com o gorgomilo pregado aqui atrás...
Abigail: Tome a água, então... e para de me embrulhar...
Jesus: Ahhh... Que delícia...!
Abigail: Só podia ser galileu... vocês só servem para pedir... Não ouviu o que eu disse? Que vocês só servem para pedir e depois nem agradecem!
Jesus: Não precisa gritar assim que eu já ouvi... E eu vou lhe dar algo em troca... sabe o que é?
Abigail: O que?
Jesus: Água.
Abigail: Como, água?
Jesus: O mesmo que lhe peço, o mesmo que lhe dou.Você quer água?
Abigail: O sol deve ter derretido seus miolos. Quem tem o balde e a corda sou eu! Como você vai tirar água?
Jesus: É que eu conheço outro poço que tem uma água mais fresca.
Abigail: Outro poço? Que eu saiba o único poço que há por aqui é este. Foi por isso que nosso tataravô Jacó o comprou para beber ele e seus filhos e seus rebanhos...
Jesus: Pois eu conheço um poço que tem uma água melhor... Você bebe esta água e em um par de horas volta a ter sede. Mas se conhecesse o outro poço que lhe digo, se beber uma vez dele sua sede acabaria para sempre.
Abigail: Ei, e onde fica esse poço maravilhoso?
Jesus: Ah, é um segredo...
Abigail: Ande, conte para mim e assim não terei de ficar indo e vindo para tirar água...
Jesus: Não, não, é um segredo...
Abigail: Um segredo?... Um conto da carochinha! Já sei quem você é, um charlatão e um embusteiro!...Um poço maravilhoso, rá!
Jesus: Está bem, está bem, vou lhe dizer onde está... Mas, chama primeiro seu marido.
Abigail: O meu marido? E o que tem a ver meu marido nisso tudo?
Jesus: Bom, para que ele também fique sabendo do poço...
Abigail: Pois sinto muito, conterrâneo, mas tenho que lhe confessar que não tenho marido... esta que você está vendo aqui é solteira e sem compromisso...
Jesus: Vamos, vamos, mulher que nisso nem você mesma acredita... Você não disse antes que “a fonte” já tinha dono...?
Abigail: Bom, claro, cada um se defende como pode...
Jesus: Quantos?
Abigail: Quantos o que?
Jesus: Quantos maridos você já teve?
Abigail: Olhe aqui, o que você tem a ver com isso, intrometido? Diacho de sujeito! E você, quantas, heim? Por acaso eu lhe perguntei se você já esteve na cadeia ou se lhe caíram os dentes?
Jesus: Está bem, não fique assim... Venha cá, deixe-me ver sua mão...
Abigail: Você sabe ler as linhas da mão?
Jesus: Espere... deixe ver... Aqui vejo... vejo cinco.
Abigail: E como você sabe? Sim, é verdade, já tive cinco maridos!
Jesus: Não, eu dizia que estava vendo cinco dedos na sua mão...
Abigail: Eu já sei quem você é! Um adivinho! Um profeta!... Você é profeta, não é mesmo?
Jesus: Bom, eu sou um galileu, como você disse antes...
Abigail: Não, você é um profeta! E eu nunca havia visto as barbas de um profeta! Pois agora você não me escapa!... Vamos ver, o que vou perguntar agora... Sim, sim, já tenho uma. Você me vai resolver esta questão: Veja, vocês galileus e os judeus dizem que Deus colocou seu trono no monte de Jerusalém. E nós, samaritanos, dizemos que não, que é aqui no monte Garizin onde vive Deus... E você, o que acha?
Jesus: Bom, pois eu acho que Deus já se levantou do trono e desceu do monte e pôs sua tenda aqui embaixo, entre as pessoas, entre os pobres...
Abigail: Você é um profeta, tenho certeza!...E se me descuido, acaba sendo o próprio Messias...

Quando a mulher samaritana disse aquilo, Jesus se agachou, pegou uma pedrinha branca do chão e se pôs a brincar com ela entre as mãos...

Jesus: E... e se eu fosse?
Abigail: O que você disse?
Jesus: Que se eu fosse o Messias, o que você faria?
Abigail: Isso eu é que lhe pergunto: O que você faria?
Jesus: Pois olhe, a primeira coisa que eu faria seria comprar uma esponja assim deste tamanho para apagar as fronteiras entre a Samaria e a Galiléia, entre a Galiléia e a Judéia, entre Israel e todos os países... E depois, procuraria uma chave mestra para abrir todas as fechaduras de todos os celeiros e assim o trigo daria para todos... E com um martelo grande arrebentaria as correntes dos escravos e os grilhões dos presos. E depois, chamaria todos os pedreiros da terra e lhes diria: Eia, companheiros, desmontem pedra a pedra o templo de Jerusalém e o templo do Garizim e todos os templos. Porque Deus não está nos templos, mas nas ruas e nas praças. E os que de verdade buscam a Deus, o encontrarão ali, entre as pessoas... E também compraria o melhor sabão do mundo que existe para esfregar todas as leis e todas essas normas que durante anos descarregaram sobre nossas costas... e escreveria uma só lei aqui dentro, no coração: a liberdade... Sim, era isso que eu faria...
Abigail: Agora eu tenho certeza! Você é o Messias que esperamos! Venha à minha casa e ao meu povoado e que todos o ouçam! Venha, ande!...
Jesus: Sim, mulher, mas espere um pouco, meus amigos foram comprar alguma comida e já devem estar chegando...

Pouco tempo depois, nós chegamos. Quando vimos Jesus falando com aquela samaritana, estranhamos muito. Não era costume que os homens falassem com mulheres a sós. Nem era bem visto que um judeu conversasse com um samaritano de igual para igual. Mas Jesus nunca se preocupou com o que dissessem dele. Era um homem livre, mais livre que a água que brotava daquele manancial de Siquém. E nós, como já o conhecíamos um pouco, não dissemos nada então e nos pusemos a comer. Era meio dia.


Samaria é a região central da Palestina. Para regressar de Jerusalém à Galiléia era freqüente ir pelo caminho das montanhas, atravessando a Samaria. Uns setecentos anos antes de Jesus, os assírios haviam invadido esta zona do país. Deportaram o melhor da população israelita que ali vivia e povoaram a região de colonos. Com o passar do tempo os colonos assírios se miscigenaram com o restante da população autóctone que havia ficado na Samaria. O resultado foram os samaritanos: uma raça de mestiços, um povo com uma grande mistura de crenças religiosas. O desprezo que sentiam os israelitas, tanto os galileus do norte, quanto os judeus do sul, pelos samaritanos, era uma mistura de nacionalismo e racismo. Chamar alguém de “samaritano” era um dos piores insultos, sinônimo de bastardo.

Uns quatro séculos antes de Jesus a comunidade samaritana se separou definitivamente da comunidade judaica e construiu seu próprio templo sobre o monte Garizim, um templo rival de Jerusalém. Com isso se cristalizou o cisma religioso entre ambos os povos. A partir de então, as tensões foram aumentando e, no tempo de Jesus, a inimizade era muito profunda. Estava proibido expressamente que judeus e samaritanos se casassem, já que eles eram impuros em grau extremo e causadores de impureza. Tampouco podiam entrar no templo nem oferecer sacrifícios. Eram chamados de “o povo estúpido que habita em Siquém”.

Os samaritanos tinham a grande honra de descenderem dos antigos patriarcas de Israel. Realmente, tinham sangue hebreu, mas o restante dos israelitas terminou por considerá-los como pagãos e estrangeiros. Os samaritanos também guardavam escrupulosamente a Lei mosaica, mas eram tidos como idólatras por render culto a Deus na montanha do Garizim. O Garizim, a montanha sagrada dos samaritanos, era certamente um monte muito importante na história do povo de Israel, por ser o lugar onde foram pronunciadas as bênçãos sobre o povo ao entrar na terra prometida, tendo Josué à frente (Josué 8, 30-35). O templo samaritano ali erigido estava destruído no tempo de Jesus, mas o cimo do monte continuou sendo o lugar de culto e ali subiam os samaritanos para rezar e fazer seus sacrifícios.

A Siquém do tempo de Jesus corresponde à atual Nablus, uma das cidades mais puramente árabes em território de Israel. Em Nablus existe hoje um bairro dos samaritanos, onde vivem os descendentes desta raça rebelde e singular. Na atualidade restam apenas uns 400, só se casam entre si, conservam um dialeto próprio, têm suas escolas e sua literatura. Os chefes da comunidade samaritana vestem sempre turbantes vermelhos, como sinal de sua hierarquia. Os samaritanos de hoje continuam guardando zelosamente suas tradições, sobem pela Páscoa ao Garizim para sacrificar um cordeiro segundo seu rito – diferente do judeu – e conservam na sinagoga do bairro um rolo da Lei que, segundo eles, foi escrito por um neto de Aarão, o irmão de Moisés, embora isto não tenha nenhum fundamento histórico. É uma comunidade fechada, fadada a extinguir-se pelo incessante cruzamento entre primos ou parentes, na qual já se notam traços de deterioração biológica: vêem-se muitos cegos e anormais.

Sicar era uma pequena aldeia entre o Ebal e o Garizim, montes guardiões da região da Samaria. Ali ficava o terreno que o patriarca Jacó havia comprado (Gênesis 33,18-20) e que depois havia presenteado a seu filho (Gênesis 48,21-22). Neste terreno havia um poço que depois de quase dois mil anos o povo continuava chamando – no tempo de Jesus – “o poço de Jacó”. Os poços são muito importantes na Palestina, por causa da escassez de água. Essas fontes são subterrâneas, por serem tão pouco abundantes, são facilmente localizáveis, ainda depois de séculos, com exatidão. Para os pastores e nômades, os poços eram vitais, pois de suas águas dependia a vida do gado, sua única fonte de riqueza. Esses poços chegavam a ter até 20 metros de profundidade. Na atualidade, ainda é possível, depois de quatro mil anos, beber água fresca do poço de Jacó – para os cristãos, poço da Samaritana. Bem perto do poço, a tradição árabe conserva um momento funerário venerado como a tumba de José, o filho do patriarca Jacó, herdeiro das terras de Siquém.

A narração que faz o evangelho de João do diálogo de Jesus com a samaritana é uma densa elaboração teológica carregada de símbolos, parecida com a do capítulo 3, com Nicodemos. O elemento substancial deste diálogo pode ser resumido na palavra liberdade. Jesus, ao falar com uma mulher samaritana a sós, está rompendo de uma vez dois fortíssimos preconceitos de seu tempo: o sexual, que proibia um homem falar sozinho com qualquer mulher, e o nacional-racista, que inimizava de morte israelitas e samaritanos. São marcas de sua enorme liberdade e de sua amplíssima capacidade de relação humana. Do ponto de vista teológico, esta cena também fala de liberdade. A liberdade de Deus, que não quer ser encerrado nos templos – nem no de Jerusalém nem no de Garizim – mas que quer relacionar-se conosco como Pai, em espírito e em verdade. A nova comunidade que Jesus vem inspirar já não se distinguirá pelo culto que preste a Deus, mas pela fraternidade com que faça presente esse Deus no meio de sua vida.

(João 4,1-27)




























82
EM UMA ALDEIA DA SAMARIA



Abigail, a mulher samaritana que havia falado com Jesus no dia em que chegamos a Sicar, insistiu muito para que entrássemos no povoado. Ela foi à frente, anunciando a todos os seus vizinhos que havia encontrado um profeta junto ao poço de Jacó...

Abigail: Ei, comadre Nora!!... E você Simeão!... Venham ver um homem que leu minha mão e adivinhou tudo o que eu fiz!... E se ele fosse o Messias, heim?... Vizinhos, não percam isso, corram!...

Abigail batia em todas as portas convidando todos para sua casa. Nós íamos atrás dela, sem muito entusiasmo. E, como sempre, meu irmão Tiago e eu éramos os que mais protestávamos...

Tiago: Mas, Jesus, o que está acontecendo?... Está com febre ou tem um rato roendo seus miolos?
João: Que antes me cozinhem vivo amarrado a um pau, do que por as patas na casa de um samaritano!
Tiago: Dizem que quem entra e se senta na casa de um samaritano, se lhe secam os olhos antes de um ano!
Jesus: Pois então, fique de fora e vire o rosto...
João: Se fizer isso, você vira sal, como a mulher de Lot.
Jesus: Está bem, Tiago, está bem, João, não venham se não quiserem. Mas eu vou entrar na casa da Abigail e vou cumprimentar seu marido.
Tiago: Abigail! Veja só o nome que se arranjou esta “garota”...!
João: Você se vendeu barato, Jesus. Por um jarro de água você se deixou amansar pelos samaritanos...
Jesus: Vê lá!, vocês é que estão amarrados por meia dúzia de idéias velhas, que os galileus não falam com os samaritanos, que os samaritanos são isso e aquilo outro... Eu bebo água de qualquer poço e entro e saio por todas as portas. Façam vocês o que quiserem.

Íamos entrando em Sicar, a aldeia onde morava Abigail. Junto ao caminho havia uma pequena praça. E, junto à praça, um grupo de samaritanos, com turbantes vermelhos e túnicas cinza, nos olhavam com ódio.

Um samaritano: O que vocês vieram procurar aqui, heim?
Outro samaritano: Galileus fedorentos, vão lavar os sovacos no lago de Tiberíades! Rá, rá, rá...!
Jesus: Deixe-os pra lá, João, não vê que estão nos provocando?
Samaritano: Galiléia! Brrr...! Rá, rá, rá...!
Outro Samaritano: Ai, galileus, como são tão mirradinhos! A mamãezinha não lhes dá de comer?... E você, com cabelos vermelhos, o que há com você, belezura?... Venha, venha cá, não tenha medo, que eu vou lhe deixar vermelha outra coisa! Ra, rá!
Jesus: Não lhes faça caso, Tiago, estão só querendo nos irritar...
Tiago: Pois eles já conseguiram, diacho! Não agüento que esses desgraçados riam de nós! Ouçam bem, samaritanos do diabo, sobrinhos de Lúcifer, tomara que agora mesmo caia um raio e os parta pelo meio a todos vocês!
Samaritano: E tomara que lhe caiam todos os dentes, menos um, pra que fique doendo!
João: Tomara que você engula um bom punhado de carrapatos e que eles o chupem por dentro!
Samaritano: E tomara que você e todos os seus cresçam como as cebolas, com a cabeça na terra!
Tiago: E tomara que agora mesmo chova fogo e enxofre do céu como daquela vez com Elias e queime o cocoruto de todos vocês, filhos de uma cadela!
Jesus: Já chega, Tiago, não se meta mais com eles... E você, João, que diacho de língua vocês têm, são mais venenosas que as de uma víbora!
Tiago: Ouviu isto, Jesus?... Está trovejando!
João: Deus nos escutou e vai mandar fogo do céu contra esses samaritanos do demônio!
Jesus: Está bem, fiquem vocês esperando os trovões e os raios que eu não quero pegar outro resfriado!

Jesus se pôs a correr até a casa de Abigail. Nós, muito contrariados, corremos também até lá... A chuva esfriou os ânimos de todos... Esquecemos as maldições e atravessamos correndo a pequena praça do povoado... Em pouco tempo, chapinhando debaixo da água, chegamos à casinha de bambu e adobe onde viviam Abigail e seu marido Jeroboão...

Abigail: Entrem, entrem...! Esta é minha casa, Jesus. Muito pequena para uma família tão grande, mas... Todos esses são meus filhos... E este é meu marido.
Jeroboão: Bem-vindos, galileus! Minha casa é como a arca de Noé, que abre suas portas para todo tipo de animais!
Abigail: Não seja grosseiro, Jeroboão...
Tiago: E sua mulher e você foram o primeiro casal a subir nela, não é mesmo?
Jesus: Cale a boca, Tiago...
Jeroboão: Abigail já me falou que um de você é um bruxo que sabe ler a mão... onde está ele?
João: A única bruxa por aqui é sua mulher, que em péssima hora chegou perto do poço para pegar água!
Jesus: Por Deus, parem já com esses insultos e vamos primeiro cumprimentar-nos, não acham?
Abigail: É o que eu acho também! Ei, Jesus, explique a esse meu marido, que é mais bronco que um jumento, o que você me disse lá no poço, que já se acabou essa história de samaritano e galileu e judeu e por aí vai.. Vamos explique para ele...

E nos sentamos a conversar... Depois de um tempo, a chuva foi amainando e os moradores samaritanos começaram a chegar...  Logo a casa de Abigail se encheu de gente. Os que podiam se sentavam sobre a terra molhada. Os mais velhos ficavam em pé, apoiando a barbicha nos cajados...

Um samaritano: Quem disse que se acabou essa coisa de samaritano e galileu? Quem falou esta besteira?
Jesus: Quem disse foi esse besta que está aqui.
Samaritano: Ah, é?... E quem é você?
Jesus: Um irmão seu... E você também é um irmão meu. Todos os homens são irmãos.  Fomos amassados com a mesma argila e temos o mesmo sopro de Deus nas narinas. Não é verdade o que eu digo?

O velho encurvado e com uma barba longa como um rio, assentiu com a cabeça...

Velho: Sim, é bem isso que diz Baruc, o justiceiro...
Uma mulher: Pois minha tia Lódia diz que cada ovelha deve andar com seu parceiro!...Temos pele diferente, forasteiro, não se esqueça disso...
Jesus: Mas seu sangue é vermelho como o meu, conterrânea. Não vê que temos o mesmo sangue, vocês e nós?... O que vale numa árvore não é a casca, mas a madeira. A madeira e o fruto. Não é mesmo?
Velho: Sim, é bem isso que diz Baruc, o justiceiro...
Samaritano: Um momento, isso não é tão fácil assim! Vocês galileus abusaram muito de nós, arruinaram nosso comércio com Damasco!
João: Ah, é?... E quem estropiou a venda de trigo na capital? Não foram vocês, samaritanos?...
Outro samaritano: Vocês botaram fogo nos bosques do Ebal!
Mulher: E foi um galileu quem roubou o rolo da Lei do neto de Aarão!
Tiago: E quem fez a asquerosidade de jogar aqueles malditos ossos de morto no templo de Jerusalém, heim, quem foi?
Jesus: Deixem isso pra lá, caramba! Olhem, a chuva já passou. Quando acaba o dilúvio, começa a paz. O que ganhamos esfregando-nos o ódio antigo de nossos avós?... Eu digo que todos somos irmãos e que todos temos um só pai, que está lá em cima. Isso é mais importante que todo o resto.
Velho: Sim, era bem isso que dizia Baruc, o justiceiro...
Mulher: Podemos ser irmãos, mas falamos linguagem diferente. Quando um galileu diz preto, um samaritano diz branco. Quando um samaritano fala do monte Garizim, vocês falam do monte Sião.
Jesus: Mas quando um galileu diz: “tenho fome”, e a sente, um samaritano sente a mordida nas tripas igual a ele. E quando um samaritano grita justiça, o galileu diz a mesma coisa: justiça! Amigos de Samaria, nós estamos divididos há muitos anos, eu creio que desde a torre de Babel, quando aqueles loucos quiseram subir ao céu para roubar o lugar de Deus... Agora temos de levantar outra torre, não com tijolos, mas unindo nossas mãos, juntando os braços de todos, os da Samaria e os da Galiléia, porque todos somos necessários para construir uma terra de irmãos!

Quando aquele velho samaritano repetiu pela quarta vez o que dizia Baruc, o justiceiro, meu irmão Tiago perdeu a paciência...

Tiago: Pode-se saber quem diabos é esse Baruc que tanto mete a colher nesta sopa?... Quem está falando aqui é Jesus e não um Baruc qualquer!
Abigail: É que Baruc, o justiceiro, é um grande profeta dos samaritanos!... Se não fosse por ele! Ele abre os olhos das pessoas e defende o direito dos infelizes...
Velho: Baruc, o justiceiro, sempre diz que...
Tiago: Não me interessa pinóia o que diz esse Baruc, caramba! Este é Jesus, o que tem o bastão do mando, o homem forte de Israel!
Mulher: Mas, então e o Baruc?...
Tiago: Com Baruc eu me limpo o ranho e jogo fora o lenço!
Samaritano: Engula agora mesmo essas palavras, cabelo-de-fogo do inferno, se não...!

Meu irmão Tiago e um samaritano gordo partiram pro braço. Simão e Judas também se engalfinharam aos tapas com outros moradores enquanto as mulheres gritavam ameaças para nós... A estreita casa de Abigail retumbava e creio que não veio abaixo só porque Pedro e Jesus, depois de muitos gritos, conseguiram um pouco de calma...

Jesus: Mas, não estávamos dizemos que somos irmãos, que temos que nos unir em vez de nos dar sopapos?!... Se este Baruc está com a justiça, está conosco e nós com ele! O importante é mudar as coisas, não quem as muda!... Digam de nossa parte a Baruc, o justiceiro, que gostaria muito de cumprimentá-lo e falar com ele!

Já estava escurecendo sobre a aldeia de Sicar, quando um homem alto e forte entrou na abarrotada casa de Abigail...  Vestia uma túnica de cor cinza e na cabeça um turbante vermelho dos chefes samaritanos...

Baruc: Quem pergunta por mim? ... Sou Baruc.
Jesus: E nós somos um punhado de galileus. Estamos trabalhando no norte, empurrando por lá o Reino de Deus. Disseram-nos que você e seu grupo fazem o mesmo por estas terras da Samaria... Podemos ajudá-lo em alguma coisa?
Baruc: Mas é claro que sim. Veja só o campo: as plantações já estão maduras para a colheita. Todos os braços fazem falta... E nós? Podemos ajudar vocês?
Jesus: Claro que sim, Baruc. Não dizem que um semeia e outro colhe?... O importante é fazer as coisas, não quem as faz. Ao final, semeadores e colhedores nos alegraremos todos juntos, não é assim?
Baruc: Falemos claramente, galileu. Com quem vocês estão?... Com os zelotas?... Com os rebeldes do deserto?... Com os sicários da Judéia?...
Jesus: Estamos com a justiça, Baruc. Estamos com os pobres que gritam dia e noite pedindo um pouco de ar, reclamando liberdade. O resto... tem tanta importância assim?
Baruc: Gosto de suas palavras. Pode contar comigo. Nós também nos batemos pela justiça do nosso povo.
Jesus: Se vocês não estão contra nós, estão conosco!
Baruc: Então dê-me um abraço, galileu!

Jesus se aproximou de Baruc, o chefe samaritano. E os dois se apertaram as mãos e se beijaram com emoção e respeito, igual aos irmãos Esaú e Jacó, quando se encontraram depois de muitos anos, junto ao rio Yaboc, perto de Penuel.

Dois dias mais ficamos na aldeia de Sicar, anunciando o Reino de Deus entre os samaritanos...




A inimizade entre samaritanos e galileus e judeus estava alimentada por uma série de circunstâncias. Cento e vinte e nove anos antes de Jesus, o rei judeu João Hircano havia destruído o sagrado templo samaritano do Garizim. Isso carregou de ódio as relações entre os dois povos. Quando Jesus tinha uns dez anos, ocorreu um fato que horrorizou os judeus: por ocasião da festa da Páscoa, os samaritanos foram a Jerusalém e jogaram ossos de defunto por todo o Templo. Aquela profanação do lugar santo foi um ato de vingança que os judeus não esqueceram. A partir de então, as tensões foram sempre aumentando.

O povo israelita – como hoje os povos de raça árabe – vangloriava-se, como virtude nacional, da hospitalidade. Mas isso não acontecia entre samaritanos e judeus. Eles se negavam o cumprimento e fechavam as portas de suas casas, como sinal de rechaço total. Quando os judeus atravessavam o território samaritano, não era de se estranhar que ocorressem graves incidentes, que às vezes terminavam em autênticas matanças. Os discípulos de Jesus, especialmente Tiago e João refletem essa hostilidade competindo em maldições com os aldeões de Sicar. Jesus não compartilha esse espírito nacionalista de seus companheiros e fica com os samaritanos até dois dias, detalhe que ressalta o evangelho de João para indicar a ruptura total de Jesus com os nacionalismos e as discriminações racistas.

Baruc não é um personagem histórico. Neste episódio aparece como um líder do povo samaritano, querido e respeitado por seus conterrâneos. Como homem justo, a serviço dos pobres de seu povo, entende-se muito rapidamente com Jesus. O evangelho é uma boa notícia para os pobres enquanto pobres, não enquanto judeus, samaritanos, negros, brancos, bons ou maus.

O ecumenismo é uma das conquistas da evolução do pensamento cristão de nossos dias. Católicos, evangélicos, ortodoxos e – mais ainda – muçulmanos, hindus, budistas etc., estamos chamados a unir-nos não porque precisamente tenhamos todos as mesmas idéias sobre Deus, sobre a imortalidade ou sobre a origem do mundo, mas porque todos estamos chamados a construir um mundo de justiça e de paz.

Se Jesus disse em certa ocasião: “Quem não está comigo, está contra mim” (Lc 1,23), e esta frase tem sido lida por alguns como sinal de intolerância e exclusivismo, no próprio texto evangélico se resolve, com outra frase, o possível conflito: “Quem não está contra vocês, está a favor de vocês” (Lc 9,50). Ao longo da história, desgraçadamente, abundaram as “guerras de religião” e em nome da fé se torturou milhares de pessoas, organizou-se sangrentas cruzadas, estabeleceu-se tribunais para decretar excomunhões aos que pensavam de forma diferente. Mas nada disso vem do evangelho. O evangelho não é uma chamada à intolerância, à discriminação, ao rechaço de quem pensa diferente de nós. Frente a esta triste herança histórica, os católicos devem crescer em humildade, em arrependimento e – como dizia Jesus – antes de pretender enxergar ciscos nos olhos alheios, devem tirar a viga que levam nos seus.

(Lucas 9,51-56; João 4,28-43)
83
OS CONVIDADOS AO BANQUETE



Quando regressamos da Festa das Tendas, a Galiléia estava alvoroçada. Os rumores do que Jesus havia feito na capital chegaram a Cafarnaum antes de nós. Por todo lugar se falava do novo profeta. Jacó e Simão, os primos de Jesus, voltaram de Jerusalém na mesma caravana e passaram aquela noite na casa de meu pai, Zebedeu.

Simão: Temos de reconhecer que você está ficando famoso, primo. Mas se me permite, vou dizer o seguinte: Você tem boa língua pra falar e boa mão para dirigir. O que lhe faz falta é gente. Jacó e eu vínhamos falando disso... Você não tem gente que o apóie...
Jesus: E todos aqueles que estavam esta tarde no cais, o que eram então, primo Simão?
Simão: Bah, andrajosos e pobres diabos. Aonde, diacho, você pensa ir com essa tropa de mendigos?
Jacó: E se fossem só mendigos! De quem você está rodeado, Jesus? De um punhado de pescadores que não sabem nem onde têm a mão direita...
Simão: Mateus, esse asqueroso publicano...
Jacó: Aquela fulana, a tal Maria, que recende perfume de rameira por todos os poros...
Simão: E aquela outra, a Selenia, igual a ela...
Jacó: E camponeses rudes e malandros...
Simão: Em que cabeça isso pode caber, Jesus? Escute o que estamos dizendo, primo, procure outro tipo de gente, gente com mais preparação, caramba!... e também com mais... como direi?... com mais “influências”... Esses são os que movem o mundo... Será que você ainda não entendeu isso? Abra os olhos, Jesus, acorde, homem!

Gerasia: Abre os olhos, Elizeu, acorde!... Feliz aniversário!... Como se sente nesta manhã?
Eliseu: Ahuuuummm...! Muito bem, Gerasia, melhor que nunca! Tralará, tralari, tralararari!
Josué: Feliz aniversário, patrão! Que o Deus de Israel o abençoe da ponta dos cabelos do cocoruto até às unhas dos pés!
Eliseu: A você também, Josué! Ah, caramba, hoje me sinto tão feliz, tão contente que queria... queria!...
Gerasia: O que, Eliseu?
Eliseu: “Queria ter você em meus braços, amada minha”... Tralará, traliri... Rá, rá, raí...!
Gerasia: Você levantou com o pé direito, sim senhor! A alegria é a melhor companheira do homem!
Eliseu: Eu queria que todos os vizinhos se alegrassem comigo!
Josué: E por que você não faz isso, patrão? Faz muito tempo que não temos uma festinha em casa!
Eliseu: Você tem razão, Josué. Mas nada de festinha. Quero uma festona! Vamos preparar um grande banquete, diacho! Durante o ano a gente já passa por tanto sufoco, que tirar um dia para um respiro não fará mal. Gerasia e Josué: vamos fazer uma surpresa para toda a vizinhança. Uma festa com boa comida, com boa bebida...
Josué: E com boa música para mexer as cadeiras! Yupii!!
Eliseu: Josué, vai agora mesmo ao curral e mate os cinco melhores cordeiros do rebanho..
Josué: Cinco cordeiros bem gordos... e o que mais?
Eliseu: Gerasia, compre um par de caixas de azeitonas...
Gerasia: Das verdes ou das pretas, patrão?
Eliseu: Duas das verdes e outras duas das pretas. E não se esqueça dos figos!
Gerasia: E uma bela panela de grão-de-bico!
Josué: E beringelas e pepinos...
Eliseu: E molho de amêndoas!
Gerasia: E muitas nozes!
Eliseu: Josué, vai ordenhar as cabras e que hoje corra leite pelas barbas de todos os meus amigos!
Gerasia: O leite e o mel, que escorram até a barra do vestido!
Josué: E o vinho! Quantos barris eu trago, patrão?
Eliseu: Dois barris... Não, dois não, compre quatro... quatro barris do melhor vinho do Carmelo! Quero que todos saiam alegres da minha casa!
Gerasia: Sairão alegres e de quatro, Eliseu, porque com tanto vinho...
Eliseu: Tralará, tralari...!
Josué: Mas falta o mais importante, patrão!
Eliseu: Como o mais importante?
Josué: Os convidados. Quem você vai convidar?
Eliseu: Todos os meus vizinhos...! Todos, sim senhor! Mande recado para Dom Apolônio, para o doutor Onésimo.. ah, e para o Absalão e sua querida esposa dona Eurídice... Para todos, Josué, diga-lhes que os espero de braços abertos. Que esta noite venham todos ao banquete! Quero que hoje minha casa esteja repleta de amigos e de alegria!

Eliseu: Tudo preparado, Josué?
Josué: Sim, patrão, não fique nervoso...
Eliseu: Não são os nervos, Josué... é a alegria que estou sentindo... Gerasia, Gerasia... os cordeiros já estão assados?
Gerasia: Requeteassados, Eliseu! Você já me perguntou mais de dez vezes...
Eliseu: Você não se esqueceu das tâmaras, não é mesmo?
Gerasia: Não, patrão. Está tudo pronto. Fique tranqüilo...
Eliseu: É que estou tão contente... Tralará, tralari...! Josué, você já deu o recado a todos os convidados?
Josué: A todos, patrão. Olhe só as bolhas que tenho nos pés de tanto andar pra cima e pra baixo... Fui à casa de Dom Apolônio, à do doutor Onésimo... do Absalão e...
Gerasia: ... e de “sua querida esposa dona Eurídice”! Rá!
Eliseu: Ouviram?... A primeira vigília da noite.
Josué: Pois os convidados já devem estar chegando...
Gerasia: Bom, Eliseu, você já sabe como é esta gente. As mulheres fazendo as tranças... Os homens untando os bigodes com azeite... resultado, sempre chegam tarde...

Apolônio: Mas, que cabeça essa de convidar a mim, homem com tantas ocupações como eu, para chupar ossos de cordeiro na casa dele!... Puf, este Eliseu está meio maluco... Além disso, ele é um homem sem fortuna e sem negócios. De que vou falar com ele, diga-me, dos passarinhos do céu? Um maluco e extravagante, por isso está como está, sem um centavo no bolso!
Mensageiro: Bom, Dom Apolônio, o que vou dizer a ele?
Apolônio: O que lhe passar pela cabeça. Diga-lhe que não estou em casa, que você não sabe para onde eu fui... ou que comprei umas terras e tive de ir medi-las, que me desculpe...

Pouco depois, chamaram à porta de Eliseu...

Eliseu: Já chegaram! Já chegaram! Gerasia, corre, vai abrir-lhes a porta! Tralará, traliri!...
Gerasia: É um mensageiro, patrão...
Mensageiro: Meu amo, Dom Apolônio, pediu para dizer-lhe que não poderá vir porque está viajando... que o desculpe!
Eliseu: Mas como disse isso se estava de viagem?
Mensageiro: É que ele comprou uma terra e foi medi-la e... e que todos vocês aproveitem bem a comida!... Adeus!
Eliseu: Que pena, gostaria tanto de cumprimentar Dom Apolônio.
Gerasia: É que Dom Apolônio tem muitas ocupações e muito dinheiro...
Josué: Já estão anunciando a segunda vigília, patrão!
Gerasia: E até agora não veio ninguém... Os cordeiros e os grãos-de-bico vão esfriar...
Eliseu: Bem, mulher não se impaciente... eles vão chegar... Tralará, tralari...

Mensageiro: E o que lhe digo, doutor Onésimo?
Onésimo: Qualquer coisa, rapaz. Esse Eliseu é tão bronco que nem vai perceber... Ah, dizia meu mestre Jeconias: “um homem sem cultura é como um monte de excrementos, quem o toca, sacode a mão”... Se você fala dos mistérios da ciência ele não entende; se lhe explica as sutilezas da arte, cai no sono; se você diz: conhece a Filosofia?”, ele responde: “em que rua mora esta mulher?”... Ah, pobres ignorantes!
Mensageiro: Bom, doutor Onésimo, o que eu vou dizer a ele?
Onésimo: Diga a esse Dom Ninguém, que não posso ir... que acabei de comprar uma junta de bois e tenho que prová-las, Ré, ré! Que me desculpe!

Novamente bateram à porta...

Eliseu: Até que enfim chegaram os convidados. Gerasia, depressa!
Mensageiro: Mensagem do meu amo, o doutor Onésimo: ele, o doutor Onésimo mandou-me dizer a Dom Ninguém... perdão... a Dom Eliseu... que não pode vir ao banquete porque comprou uma junta de bois e que... que lhes aproveite a todos a ceia... adeus!
Eliseu: Adeus...
Josué: Que azar, patrão...
Gerasia: É que o doutor Onésimo tem muita cultura...
Eliseu: E muita cara de pau, isso sim... Escute, Gerásia, já está soando a terceira vigília... e minha casa está vazia...
Gerasia: Não fique triste, Eliseu... eu acho que eles já estão pra chegar...
Eliseu: É bem capaz. Vamos esperar mais um pouco. Trarirá... lira...

Eurídice: À casa de um homem tão vulgar?... Ai, não, querido, sinto muito, sinto muitíssimo mesmo, mas esse tal Eliseu não tem classe, não tem modos... Ai!
Esposo: Mas o que vamos dizer, querida esposa Eurídice?
Eurídice: Para um porco, qualquer algaroba é boa! Diga-lhe que... que acabamos de nos casar... que ainda estamos em lua-de-mel... Ai!

O mensageiro chegou até a casa de Eliseu...

Mensageiro: É que eles acabaram de se casar e ainda estão em lua-de-mel... Ai!
Eliseu: O que há?
Mensageiro: Não há nada. É que eles não vêm.
Gerasia: Mas esses dois já se casaram faz mais de um mês...
Mensageiro: É que eles têm muito amor e...
Eliseu: Muito amor e pouca vergonha! Puff... que fracasso... Daqui a pouco os galos vão cantar e não veio um só dos convidados...
Gerasia: Os cordeiros já estão mais frios que um defunto.
Josué: E os barris de vinho também descansam em paz.
Gerasia: Patrão, Eliseu, será que não confundiram a casa e por isso não vieram?
Eliseu: Não, Gerasia, não. Fui eu que confundi os convidados. Tarariró... Josué!
Josué: Mande, patrão!
Eliseu: Josué, calce as sandálias e saia agora mesmo pelas vielas e pelos barracos e traga para cá os mendigos, os coxos, os cegos, a todos os maltrapilhos que você encontrar.. Diga-lhes que venham à minha casa, que eu tenho um banquete preparado para eles...
Gerasia: Você ficou louco, Eliseu?
Eliseu: Não, agora sim é que estou são. Agora eu compreendi. Corre, Josué, avise-os logo, antes que amanheça...

E depois de algum tempo...

Josué: Patrão, o bairro todo está alvoroçado! Estão vindo muitos para cá!... Digo para eles que já não cabe mais?
Eliseu: Ao contrário, Josué, torne a sair e diga a todos que estão com fome que venham, que ainda há lugar na minha casa, que tem cordeiro e azeitonas e vinho para todos eles!
Josué: Sim, patrão, estou indo! Ouça, patrão, na rua eu me encontrei com uma dessas tipinhas, o senhor sabe... e ela me disse que o negócio vai mal, que se também pudesse vir comer alguma coisa...
Eliseu: Claro, Josué, diga-lhes que venham ela e suas companheiras.
Josué: E os que vivem do outro lado do rio me perguntaram se...
Eliseu: Que venham também! Que venham todos os maltrapilhos, os pobres diabos, os que fedem à sarna e as que cheiram perfume de jasmim! Para esses é minha casa e meu banquete, para esses eu tenho as portas abertas de par em par!

Jesus: E, naquela noite, a casa de Eliseu se encheu de gente até transbordar. E houve baile e comida e alegria. Foi uma grande festa... a festa de Deus.
Simão: Como você disse, Jesus?... A festa de Deus?
Jesus: Sim, primo Simão, o Reino de Deus é assim, como o banquete de Eliseu. A verdadeira casa de Deus não cheira a incenso, mas a suor e perfume de prostituta. Deus é dos nossos, não se esqueça. Deus está conosco, os de baixo.


O fato de que Jesus, um homem com grande popularidade, a quem o povo via como um autêntico profeta, estivesse rodeado das pessoas mais baixas de Cafarnaum ou de Jerusalém, tornava-se um escândalo. Fazer dos pobres de Israel  os destinatários privilegiados da boa notícia e confiar neles para que fossem o fermento da mudança, era intolerável. Jesus contava com isso e inclusive chamou de “bem-aventurados” os que fossem capazes de superar semelhante escândalo (Mt 11, 5-6).

Os seguidores de Jesus são designados nos textos evangélicos com várias palavras que apontam todas para uma mesma direção. Fala-se de “os pequenos”, ou “os menores”, ou “os simples”. Outra palavra usada é “nepis” (em grego), equivalente a “päti” em hebraico e “sabra” em aramaico, um vocábulo em que se resume: gente inculta, sem nenhuma formação e às vezes nada piedosa. Jesus teve ao seu redor os “amha’ares” – como os chamavam os fariseus – homens e mulheres de má reputação, mal afamados, a quem por sua ignorância religiosa e seu mau comportamento moral consideravam os decentes que se lhes fechariam as portas da salvação. A eles Jesus chamará simplesmente “os pobres”. São os que nada tem, “os que estão angustiados e fatigados”, “os que andam como ovelhas sem pastor”. Jesus, que provinha da mesma classe social, um artesão e camponês, anunciou a eles a boa notícia de sua libertação.

Muitas das parábolas de Jesus tratam de “justificar” a conduta de Deus, que dirige sua boa notícia aos mais miseráveis. Uma delas é esta “do grande banquete”, em que Jesus demonstra uma vez mais uma das razões desta preferência de Deus: Os ricos, os privilegiados, os sábios, têm tão alto conceito de si mesmos, estão tão satisfeitos e tão seguros que fecham para si mesmos as portas da festa. Deus os convidou, mas eles não têm nenhuma vontade de aceitar o convite. Ao contrário, os pobres, aqueles que não contam para ninguém nem para nada, estão abertos ao convite. Demonstram capacidade de assombro, de surpresa. Têm esperança e vão. É com eles que Deus conta para seu projeto histórico e são eles os que abarrotarão sua casa e participarão da festa sem fim.

Desde os profetas, Israel descrevia alegria dos tempos messiânicos com a imagem de um banquete com boas comidas e, sobretudo, com bebida em abundância (Is 25, 6-8). Na mentalidade popular, a diferença básica da comida corriqueira e um banquete, estava precisamente na quantidade de bebida que se consumia. O vinho era sinônimo de celebração e alegria. Como também o era o baile. Falar em festa era falar em dança, a tal ponto que a palavra hebraica equivalente a “festa”, significava primitivamente “baile”. A festa do Messias também foi comparada a um banquete de casamento. Até o Apocalipse, o último dos livros do Novo Testamento, conserva esta imagem das bodas messiânicas (Ap 19, 7-8). No interior destas alegorias solenes e brilhantes, Jesus enfia com uma cunha “o escândalo” do evangelho: os convidados a este banquete são os maltrapilhos, os mendigos, os últimos, a chusma.

Superar o escândalo dos pobres é básico para entrar no miolo do evangelho e, o que é mais importante, no próprio mistério de Deus. A partir de Jesus, os pobres não serão somente os destinatários privilegiados da boa notícia, mas  são os chamados a tomar parte do Reino. Tudo isso significa que, desde Jesus, só tem reto sentido de Deus quem tem o sentido do pobre.

O evangelho está chamado a apagar diferenças de todo tipo entre os homens, aponta para uma sociedade igualitária e fraterna. E, como já acontecia nos tempos de Jesus, a única coisa que pode fazer-nos compreender qual é o projeto de Deus é repetir o exemplo de Jesus: colocar Deus nas mãos dos pobres.

(Mateus 22, 1-10; Lucas 14, 15-24)











































84
A ASTÚCIA DE UM CAPATAZ



Quando amarrávamos nossas barcas no pequeno cais de Cafarnaum, depois de um cansativo dia de trabalho, batalhando com as redes e as ondas, nós pescadores nos reuníamos na bagunçada taberna do zarolho Joaquim. Ali podíamos beber uma jarra de vinho, protestar contra os novos impostos do rei Herodes, e rir das trapalhadas do capataz do Fanuel...

Pipo: Esta jarra sou eu que pago, camaradas! Hip! Todos estão convidados, mas antes têm de gritar “viva o Pipo!”... Vamos lá... um, dois... e... três!
Todos: Viva o Pipo!
Pipo: Viva eu, sim senhor! Ei, zarolho, vinho para todos os meus admiradores! Rá, rá, rá! Ai, caramba, como a vida é boa quando as vacas estão gordas, hip, assim como eu! Rá, rá, rá!

O gordo Pipo era um homem especial. Amigo de todos, com sua barba de três pontas e seus dentes estragados, Pipo ia de taberna em taberna rindo de suas próprias piadas e fazendo todos rirem. Por sua simpatia e sua habilidade com os números, havia conseguido um bom emprego como capataz do velho Fanuel, um dos proprietários mais ricos de Cafarnaum. Mas Pipo era um perdulário. Todo o dinheiro que ganhava, e até o que não ganhava, ia pelo ralo dos barris de vinho...

Pedro: O que é isso, Pipo, você é que leva uma vida boa, safado! Tem mais dinheiro no bolso do que carregavam os camelos da Rainha de Sabá!
Pipo: O meu patrão Dom Fanuel ganha o dinheiro, hip!... e eu o administro.
João: Ou seja, você o gasta, grande sem-vergonha!
Pipo: Eu faço um favor a ele porque, veja bem, o velho Fanuel não sabe nem o que fazer com tanto dinheiro... Hip!, não sabe se divertir... Bah, a gente tem de ajudar os sovinas para que as traças não acabem comendo suas economias... Hip! Sabem de uma coisa, camaradas? Aqui se cumpre ditado do sábio Salomão: “o vivo vive do bobo, e o bobo do seu trabalho”. Rá, rá, rá...!
Tiago: Onde foi que Salomão disse isso, Pipo?
Pipo: Eu sei lá! Mas isso não importa. Mas que é um bom ditado, isso é! Hip! Ei, rapaziada, aqui estou eu, o homem mais feliz de Cafarnaum! Hip! Convido todos que estiverem com a jarra vazia a gritar: “viva o Pipo”!... Um, dois, hip!... e... três!
Todos: Viva o Pipo!
Fanuel: Que viva o Pipo!

Foi algo inesperado. Na porta, com sua polida bengala, e uma cara muito séria, apareceu Fanuel, o patrão de Pipo. Todos ficamos tensos enquanto aquele velho ricaço atravessava em silêncio a taberna... Pipo, imóvel, com a jarra de vinho levantada em uma das mãos, como uma estátua, ainda não tinha conseguido passar engolir o último trago de vinho...

Fanuel: Pipo!
Pipo: Às ordens, patrão...
Fanuel: Passe amanhã cedo para pegar suas coisas.
Pipo: Mas, patrão...
Fanuel: Nada de patrão. Eu escutei tudo dali da porta. Está despedido.

E Fanuel, sem dizer uma palavra mais, apertou sua bengala e saiu da taberna...

Pipo: Maldição, esse pássaro não encontrou outro momento melhor para visitar o ninho?... Com o susto, até parou meu soluço!
Pedro: Acabou-se o que era doce, companheiro! As vacas magras chegaram!
Tiago: Amanhã por estas horas, você estará na rua com uma mão na frente e outra atrás!
Pipo: Se o velho Fanuel tivesse me deixado explicar...
Pedro: Mas, explicar o que, espertalhão? Trate de ficar contente por ele não ter vinho buscá-lo com a polícia e metido você na cadeia!
Pipo: Tem razão, Pedro... mas, o que eu vou fazer agora, heim?
Pedro: O que você vai fazer? O que fazemos todos nós. Pôr-se a trabalhar!
Pipo: Não, não, por favor, não me falem em trabalhar, que só de ouvir esta palavra, sinto calafrios... Eu não nasci para isso... Não tenho forças...
João: Forças não lhe faltam, mas lhe sobra tripa. Com uma pança deste tamanho, não consegue nem dobrar o lombo!
Tiago: Mas terá de dobrá-lo, companheiro, já o vejo cuidando de porcos ou colhendo pepinos.
Pipo: Não, não, eu não sirvo para os trabalhos da roça. Não há um só lavrador em toda minha parentela.
Pedro: Pois então, venha pescar com a gente no lago. Você sabe lançar a rede?
Pipo: O que eu sei é que a água me deixa enjoado como uma mulher prenha.
João: Aprenda um ofício, caramba: pedreiro, alfaiate, curtidor...
Pipo: Na minha idade, João? Você acha que na minha idade se aprende alguma coisa? Aos quarenta, nem ofício, nem benefício!
Tiago: Pois então, amigo Pipo, não lhe resta outro remédio que sentar-se na porta da sinagoga para pedir esmola!
Pipo: Está ficando maluco? Prefiro cortar as veias! Eu, Pipo, o filho de minha mãe, pedido esmola? Nunca, jamais, está ouvindo, Tiago, e que todos ouçam bem, nunca, jamais farei isso!
Pedro: Está bem, fanfarrão, está bem!... E que diabos você vai fazer então?
Pipo: Ainda tenho uma noite para pensar. Uma noite. Preciso esvaziar a cabeça... Zarolho, sirva-me outro trago... Prometo que amanhã a esta mesma hora eu lhe pagarei tudo... Juro!

Naquela noite, Pipo dava voltas e voltas sobre a esteira sem conseguir pregar um olho...

Pipo: O que eu vou fazer?... O que eu vou fazer?... Pitonisa do rei Saul, ilumine esta moleira!... Grande Poder de Deus, mande um anjo para soprar alguma idéia nessa minha orelha!... Por todos os santos, fico eu aqui espremendo meus miolos como se fosse uma laranja e não sai nem uma gota... Até a burrinha de Balaão zurrou quando foi preciso, caramba!... E por que não passa nada na minha cabeça?... Pipo, pensa logo alguma coisa, se você não quiser se estrepar... Pela mulher de Putifar, achei! Achei! ... Ai, mãezinha querida, que filho mais esperto você trouxe ao mundo!... De pressa, de pressa, tenho que agir imediatamente...

E antes que amanhecesse, Pipo começou a agir...

Lúcio: Pelo amor de Deus, quem será que está chamando à esta hora?
Pipo: Sou eu, Lúcio, é o Pipo!... Abra logo esta porta!...
Lúcio: Mas, meu amigo,  o que está acontecendo? Teve algum pesadelo? Ou a polícia está atrás de você?
Pipo: Bem que eu preferiria um batalhão inteiro atrás de mim, do que passar pelo que estou passando...
Lúcio: Como é?
Pipo: Nada, meu caro amigo. Mas diga uma coisa: quantos barris de azeite você está devendo ao meu patrão Fanuel.
Lúcio: Estou devendo cem. Você mesmo me fez assinar o recibo, está lembrado? Mas, por que isso agora?
Pipo: Não seja tão curioso, meu velho! Olhe, aqui está o seu recibo: “Eu, Lúcio, filho de Luciano, devo a Fanuel cem barris de azeite, conforme a medida galiléia”.
Lúcio: Mas o que você está fazendo, seu trapaceiro?
Pipo: Rasgando o recibo que você assinou.
Lúcio: Mas, e então...?
Pipo: Então, sente-se, senhor Lúcio. Aqui está um novo, em branco... Escreva: ! Eu, Lúcio, filho de Luciano, devo a Fanuel... cinqüenta  barris de azeite... É, isso mesmo, escreva isso, cinqüenta barris...
Lúcio: Mas, Pipo...
Pipo: Calado! Não abra a boca para não entrem moscas!
Lúcio: Mas o que seu patrão vai dizer quando ficar sabendo?
Pipo: Estou pouco ligando para o que ele diga. O que me importa é o que você vai dizer, amigo Lúcio.
Lúcio: Eu?
Pipo: Sim, você, meu querido amigo Lúcio... Olhe bem pros meus bigodes... Agora você só deve a Fanuel cinqüenta barris de azeite, graças a mim, seu amigo Pipo, que o ajuda, e lhe quer bem... Até mais, meu velho, e meta-se logo na cama, senão você vai apanhar um resfriado!

Em seguida, foi bater em outra porta...

Urias: Cem sacas de trigo, esta é a minha dívida com seu patrão Fanuel.
Pipo: Cem?... Você não acha que é demais, meu querido amigo Urias?
Urias: Eu acho, Pipo... Eu sou um homem pobre... nem no vale de Josafá conseguirei pagar ao seu patrão o que lhe devo...
Pipo: Não precisa dizer mais nada, Urias. Fiquei comovido... As lágrimas me sobem pela garganta e me escapam pelos olhos... Aqui está o seu recibo... rasgado. Sente-se aqui e escreva outro... Ponha somente oitenta. “Devo oitenta sacas de trigo ao sovina do Fanuel...” Bem, o sovina você deixa de fora... E lembre-se que isso eu só faço para você, porque você é meu amigo...
Urias: Obrigado, Pipo, obrigado...!

E assim Pipo passou aquele noite, de porta em porta, acordando os devedores de seu patrão Fanuel, conversando com todos e fazendo-os assinar novos recibos... E quando o sol apareceu por entre os montes de Basan e os galos de Cafarnaum sacudiram as penas, Pipo, o esperto capataz, terminou sua jornada...

Pipo: Puff, que noite!... Agora o Fanuel pode me dar o chute... já tenho uma almofada no traseiro!

No meio da manhã foi procurar seu patrão...

Fanuel: Não temos nada mais a conversar, Pipo. Já não acredito em nenhuma de suas histórias...
Pipo: Mas, patrão Fanuel...
Fanuel: Vamos acabar com isso de uma vez. Você foi um capataz imoral. Não quero ver nunca mais sua desagradável barba de três pontas.
Pipo: Bem, patrão, se esta é sua última palavra... Olhe, aqui estão as chaves da fazenda e... e estes são os recibos de todos os seus devedores... Não está faltando nenhum...
Fanuel: Está bem, deixe-os ali... E agora, suma daqui.

Ao sair dali, foi correndo até a casa de Lúcio...

Pipo: Ai, Lúcio, ai!
Lúcio: Mas, amigo Pipo, o que aconteceu, conte-me?
Pipo: Ai, Lúcio, algo inesperado, como o fogo que queimou Sodoma. Meu patrão Fanuel me despediu da fazenda.
Lúcio: Despediu?... Assim, sem mais nem menos?
Pipo: Assim, sem mais nem menos.
Lúcio: Que injustiça! Pipo, pode crer, compreendo a triste situação em que você se encontra.
Pipo: Senhor Lúcio, acredite: só boas palavras não amadurecem as lentilhas!
Lúcio: Pipo, minha casa é sua casa. Se você precisar de um quarto, se precisar de um prato quente, se precisar de algum dinheiro adiantado... aqui estou eu, seu amigo!
Pipo: Não esperava menos de você, senhor Lúcio!

Em seguida, foi à casa de outro devedor de seu antigo patrão...

Pipo: Urias, hoje por você, amanhã por mim.
Urias: O que você quer dizer com isso, Pipo?
Pipo: Que ontem foi hoje e hoje é amanhã.
Urias: Não estou entendendo.
Pipo: Mandaram-me embora do trabalho, homem e eu estou mais pelado que uma rã...
Urias: Não chore, Pipo. Para esses momentos difíceis é que servem os amigos. Fique sossegado e conte comigo!
Pipo: Obrigado, Urias, obrigado...

E assim, Pipo foi percorrendo o mesmo caminho que havia feito na noite anterior... batendo de novo na porta dos devedores de Fanuel, seu antigo patrão...

João: Esse Pipo é demais, escapou pelo meio das pernas do capeta!
Pedro: Você se lembra do que eu disse, Jesus? Esse danado sempre dá um jeito de sair por cima. O Pipo apronta cada uma!
Jesus: Olhe, Pedro, sabe o que eu penso? Que se nós fôssemos tão espertos para lutar pela vida dos demais como o Pipo luta para salvar a própria pele, ah, caramba, as coisa mudariam! Se nós fossemos tão astutos quanto ele, o Reino de Deus iria pra frente, você não acha?
Pipo: E aí, companheiros! Tenho certeza de que estão fofocando sobre mim, não é mesmo? Pois podem parar de fofocar nas minhas costas, porque agora eu estou aqui, o Pipo! E nesta noite quem manda sou eu!... Zarolho, sirva vinho para todo mundo que estiver com o copo vazio e que todos gritem: Viva o Pipo! Vamos lá, amigos, é uma... é duas... é três!
Todos: Viva o Pipo!!

Jesus também ergueu seu copo brindando o Pipo, aquele capataz que não tinha nada de bobo... E assim, entre o vinho e a conversa de jogar fora, passamos um bom tempo na taberna do Joaquim, que ficava perto do cais. Quando saímos, Jesus ia rindo e dizendo que para lutar pelo Reino de Deus era preciso ser tão simples quanto as pombas e tão astutos quanto as serpentes...

Os fazendeiros galileus habitualmente se valiam de um administrador ou capataz para cuidar de suas terras, seus operários e seus devedores. Geralmente, muitos desses latifundiários não moravam permanentemente em suas fazendas. No entanto, não se usava na economia oriental daquela época uma contabilidade precisa, como a que conhecemos em nossos países. Isto explica porque as trapaças de Pipo foram possíveis.

Pipo é um malandro, um fanfarrão. Mas é hábil, sagaz, astuto, tem engenhosidade para sair do apuro e salvar a pele. Jesus não critica sua atuação, mas a valoriza. Mais ainda, vê  em Pipo um modelo de astúcia que devemos imitar. A parábola “do capataz astuto” – que neste episódio aparece como um fato real – sempre foi algo surpreendente. O fato de Jesus propor um trapaceiro como modelo de conduta aparece como sumamente audacioso. Diante da indignação que a conduta do capataz pode provocar, Jesus sabe ver mais à frente: é tão urgente a tarefa do Reino, há tantos obstáculos para que isso aconteça, é tão crítico o momento, que a rapidez com que esse Pipo consegue resolver seu problema, lhe parece admirável.

Jesus nunca foi um moralista, um beato, um puritano. Era um homem, na metade da vida, enfrentando a multiplicidade de acontecimentos, alguns dramáticos, outros sombrios, outros divertidos. Diante deles foi um homem com humor. Riu, sabia rir, gostava de rir. Se o imaginamos ensimesmado ou taciturno, torna-se incompreensível a sabedoria que Jesus demonstra diante da vida e dos homens. A engenhosidade de muitas de suas parábolas, a surpresa final que reserva para o fim de tantas delas – esta, por exemplo – está falando de um humorista nato.

A Bíblia é um livro cheio de traços de humor. É impossível ler uma infinidade de suas páginas sem sorrir. Há nelas ironia, engenhosidade, travessura,s todos os gêneros do humor humano. O humor é sinal de maturidade e sabedoria. A sabedoria de tomar distância, de relativizar as coisas, de não dar muita importância a certos fatos. O verdadeiro humor sempre tem algumas raízes de autêntica humildade.

Quem não sabe rir de si mesmo ou não admite que os demais riam dele, possivelmente padece de soberba, acha-se demasiado importante. A autoridade que não admite uma gozação, que se irrita diante de uma piada, que censura o humor, teme perder algo de seu poder que seguramente está calcado em imposições e não na verdadeira autoridade moral. Para muitas pessoas o religioso é sinônimo de seriedade, de tristeza, de solenidade, inclusive de mau humor. Quando as comunidades cristãs estão compostas de gente que não sabe rir, alguma coisa não está funcionando.

Jesus recomendou a seus amigos que fossem “astutos como as serpentes e simples como as pombas” (Mt 10,17). A serpente era tida em Israel – como na maioria das culturas primitivas – por um animal altamente perigoso, símbolo de maus espíritos. Jesus, um homem vitalista, positivo, soube ver no temível réptil seus valores: é sagaz, cauteloso, prudente, sabe sair-se bem. A pomba, símbolo da mansidão, será o contraponto necessário da serpente. A astúcia é também uma virtude cristã, tanto quanto uma virtude humana. O equilíbrio necessário para que a astúcia não seja cinismo e a simplicidade não seja parvoíce, o cristão encontrará no confronto constante de seus atos com a palavra de Deus, com a realidade e com os conselhos da comunidade cristã.

(Lc 16, 1-9)

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