quarta-feira, 8 de junho de 2011

Um tal Jesus: capítulo 61 ao 72

61

UM DENÁRIO PARA CADA UM







Um capataz: Um ferreiro! Um ferreiro para ferrar cinco mulas! Um ferreiro!

Uma mulher: Escute aqui, ô caolho, quanto você cobra para consertar a porta do meu celeiro, heim?

Caolho: Primeiro eu conserto, depois falamos do preço.

Mulher: Não, diga primeiro quanto vai cobrar.

Caolho: Olhe aqui, dona Frísia, em se tratando de trabalhar, até de graça eu faço. Vamos!



Na praça de Cafarnaum, em frente à sinagoga, reuniam-se a cada manhã os homens procurando trabalho. Antes do sol se levantar, já estavam ali uns quantos deles, sentados nas escadarias ou encostados às paredes, esperando, cada um com sua ferramenta: os pedreiros com sua pá e nível, os carpinteiros com seus martelos, os camponeses com suas mãos cheias de calos...



Daniel: Ei, rapazes venham trabalhar na minha vinha! Há muita uva esperando!... Sim, todos vocês!... Um denário quando o sol se pôr!... Venham, vamos logo, para que o dia renda bem!



Um grupo de homens se levantou do chão e se pôs a andar atrás de Daniel... Jesus também ia à praça todos os dias, com seus pregos e sua pá, esperando que o contratassem...



Um vizinho: Ei, Moreno, você está com uma cara de sono que dá dó...!

Jesus: Ontem eu vim tarde e não consegui nenhum trabalho... Vamos ver o que acontece hoje.

Vizinho: Se você não madruga, não consegue nada. Veja, agora mesmo, antes de você chegar, apareceu esse Daniel, para contratar uns quantos para sua vinha. Está colhendo a uva e parece que tem muita.

Jesus: E quanto ele paga?

Vizinho: Um denário, como sempre.Um denário para cada um. E pode crer, se ele diz que paga, paga mesmo. Daniel é um bom sujeito. Com ele se pode trabalhar.

Um capataz: Um pedreiro para dois dias, um pedreiro para dois dias! Teto e parede! Teto e parede!

Jesus: Escute, não procure mais. Aqui está esse pedreiro!... Vamos?

Capataz: Vamos! Um denário hoje e outro amanhã. De acordo?

Jesus: De acordo! Tchau, Simeão!

Vizinho: Tchau, Jesus. Você está vendo que Deus ajuda quem cedo madruga!

Vizinho: O Moreno teve sorte. Até que se arranjou bem depressa.

Neto: Dá pra ver. E eu, já faz três dias que estou vindo aqui e nada de nada... Nesta época ninguém tosquia ovelhas. Maldição! Todos os dias afio a navalha e não sei pra quê... Qualquer dia desses corto meu pescoço com ela.

Vizinho: Deixe disso, Neto. Está preocupado?

Neto: Estou farto. Todos os dias é a mesma coisa: voltar para casa com as mãos vazias e ver as crianças com fome... “Não, meu filho, só tem esse pedacinho de pão. Amanhã... amanhã, teremos mais”. E, diabos, amanhã será igual a hoje!

Vizinho: É, as coisas estão difíceis, Neto, muito difíceis...

Neto: Se hoje não conseguir um denário, juro que não volto para casa. Não agüento mais ver meus filhos morrendo de fome. Não agüento!



Às nove horas da manhã, quando o sol já havia esquentado as pedras da praça, Daniel voltou por lá...



Daniel: Ei, rapazes!... Preciso de mais braços para trabalhar na minha vinha... Quem está disposto?

Vizinho: Vamos com ele, Neto. É trabalho seguro. Com o denário que ele der, seus filhos poderão comer hoje...

Neto: Sim, vamos nessa, Simeão!



Simeão e Neto e alguns mais foram para a vinha de Daniel... Pouco tempo depois, a praça voltou a se encher de homens que procuravam trabalho... A esta hora as crianças já brincavam por lá, correndo e alvoroçando...



Um menino: Um ferreiro! Um ferreiro para pôr ferradura em cinco mulas!

Outro menino: Eu sou a mula!

Diarista: Eu também, garoto, eu também sou a mula, o jumento, o burro...

Tito: Por que você diz isso?

Diarista: Porque é isso que eu sou: um burro de carga. Nem mais nem menos. E você também, Tito. Isso mesmo. E aquele, e aquele outro também. Todos aqui não são mais que isso: burros de carga! Só nos falta o rabo.

Tito: Vamos lá, o que é isso?! Lá vem você com a mesma história...

Diarista: É a verdade. Parece que nascemos para isso mesmo, para dobrar o lombo. De manhã até à noite. E todos os dias, tudo começa de novo. Isso não lhe dá raiva, Tito, heim, não lhe dá raiva?

Tito: E o que vamos fazer, homem, o que vamos fazer...?

Diarista: Nada, o que é que eu vou querer!... Isso deve estar escrito em algum lugar... que nós pobres viemos a este mundo para dobrar o lombo e gerar filhos para que continuem fazendo a mesma coisa que nós: continuar dobrando o lombo e ficar com as tripas vazias... Olhe só para aquelas crianças... quando crescerem, estarão aqui, no nosso lugar, esperando que alguém lhes dê trabalho para continuar vivendo... como burros de carga!



Ao meio dia, a praça fervia de gente pelos quatro cantos. Os balidos das ovelhas que se aproximavam da fonte redonda, se confundiam com os gritos das crianças, os pregões dos vendedores e os lamentos dos mendigos... E ainda a esta hora havia homens esperando para conseguir algum trabalho...



Uma mulher: Nada, Samuel?

Samuel: Nada, mulher. Nada ainda.

Mulher: E o que vamos comer hoje?

Samuel: Ferva uma pedra, para ver se sai alguma coisa!

Velha: Uma esmolinha para esta pobre cega, que não pode ver a luz do sol!... Uma esmolinha por piedade!

Mulher: Vovó, faz tempo que você não aparecia aqui na praça...! O que aconteceu?

Velha: Ai, minha filha, veja só meus cabelos. Os que enxergam direito dizem que estou mais amarela que os ovos das galinhas!

Mulher: Mas... o que aconteceu?

Velha: Estou morrendo, filha. De uma doença que  me chupou o pouquinho de vida que me restava. É assim, cega, cocha... e agora isso!

Mulher: Ai, vovozinha, o que posso lhe dizer?

Velha: Nada, filha, se alguém tem de dizer alguma coisa sou eu... Eu lhe digo que se fosse uma escritora e contasse todos os meus males, faria um livro mais grosso que o de Moisés!

Mulher: Pois dê graças a Deus por estar cega, pode crer. Se você conseguisse abrir um olho só, veria coisas muito tristes... Bem, para que ficar falando nisso. Eu penso que se o lago da Galiléia secasse, nós voltaríamos a enchê-lo num instante com nossas lágrimas!

Daniel: Ei, rapazes, o que acontece com vocês?... Não percam tempo!... Venham para minha vinha, estou precisando de mais braços! Vamos!...



Um grupo de homens se levantou e foi com Daniel para sua vinha... Às três da tarde, quando o sol escaldava o calçamento da praça, ainda havia homens esperando, agachados sobre as escadarias, uma oportunidade de trabalhar...



Samuel: Disseram-me que hoje Daniel está contratando meia Cafarnaum... Vamos ver se volta outra vez por aqui...

Outro diarista: É que  ele tem suas videiras todas paridas. Se não recolher logo essas uvas, a chuva estragará tudo...

Samuel: Grande coisa! Primeiro colhê-las, depois pisá-las no lagar, esperar que o mosto fermente e, no fim, para que?

Diarista: Como para que?... Para que a gente tenha um bom gole de vinho descendo pelo gogó, caramba! Isso não é o bastante?

Samuel: Bastante para esquecer. Mas depois, quando o efeito do álcool baixar, tudo continuará como antes... bah!...

Diarista: E o que você está querendo, meu amigo?

Samuel: O que estou querendo?...

Diarista: Sim, sim, o que você quer...?

Samuel: Eu quero... ser feliz. Só isso.



E às três da tarde, Daniel voltou para procurar mais trabalhadores para sua vinha. E ainda encontrou alguns, com os braços cruzados e a cabeça baixa, olhando para o chão, esperando sempre...



Daniel: Mas, o que vocês estão fazendo por aqui, bocejando e perdendo tempo? Estou precisando de mais gente na minha vinha!... E então, quem vem comigo?... Ainda falta um punhado de horas para o dia acabar! Vamos, vamos!



Às cinco da tarde, Daniel voltou uma vez mais à praça...



Daniel: Caramba, não é que ainda há gente olhando para as nuvens!

Samuel: Ninguém nos contratou. Como você vê, estamos aqui esperando para ver se cai alguma coisa para nós...

Daniel: Bem, acho que a única coisa que cai nesta praça é o cocô das pombas. Então vamos lá, que o sol ainda nem se pôs, venham para a minha vinha!



Quando a lua já desenhava sua silhueta sobre a vinha de Daniel e começava a escurecer...



Daniel: Rapaziada, já chega de vergar o lombo...! Está na hora de parar. Venham todos para receber!



E Daniel chamou o capataz de sua vinha...



Daniel: Ciro, pague um denário para cada um. E até outro dia, companheiros!

Caolho: Espere um pouco, Daniel. Quanto você disse que vai nos pagar?

Daniel: Um denário para cada um. Por que?

Neto: É que... esses quatro chegaram aqui não faz nem uma hora. E aqui há alguns que trabalharam o dia todo, agüentando o sol e...

Daniel: Bem, e daí? Não contratei todos vocês por um denário?

Caolho: Sim, mas não é justo pagar para os que chegaram no fim do dia a mesma coisa que para nós...

Daniel: Ah, não? E por que não é justo?

Neto: Bem, porque... porque...

Daniel: Você tem filhos, não tem? E precisa do denário para lhes dar de comer. Por isso eu lhe dou o seu denário. E este que chegou por último, também tem filhos e precisa de um denário para lhes dar de comer. Onde está a injustiça? Cada um fez o que pôde.

Caolho: Mas nós trabalhamos mais tempo na vinha!

Daniel: Digamos que vocês esperaram menos tempo na praça... Não, amigo, não se queixe. Amanhã, quando você for o último a chegar, ficará contente por receber um denário inteiro. Porque todos precisam de um denário para viver...



Salomé: Pois a comadre Lia me contou que hoje seu marido e outros homens estiveram trabalhando na vinha do Daniel... Mas, sabe de uma coisa, Jesus? Ele contratou alguns logo de manhãzinha...

Jesus: É, eu tinha acabado de chegar à praça quando Daniel apareceu.

João: Madrugou hoje, heim, Moreno, isso sim é que é um milagre!

Salomé: Pois ele voltou às nove e levou mais homens. E ao meio dia e às três da tarde, a mesma coisa. Dizem que até às cinco da tarde andou procurando gente para a colheita das uvas... Mas, o grande condenado, à hora de pagar, deu um denário para cada um. A mesma coisa para todos, está entendendo? A mesma coisa para os que foram cedinho e aos que trabalharam só uma hora...

João: Ele sempre faz isso... Diz que todos precisam comer... E paga igual para todo mundo...

Salomé: Esse Daniel é um patrão  muito maluco, é isso que eu penso!

Jesus: Por que você diz isso, Salomé?... Ao contrário, ele é o melhor patrão que existe aqui por Cafarnaum. E sabe o que eu acho? Que quando Deus se põe a contratar peões para trabalhar neste mundo, faz a mesma coisa que Daniel.

João: Não estou entendendo o que você quer dizer...

Jesus: Ora, digo a mesma coisa que Daniel disse. Que todos precisam de um denário para viver. Um denário de pão. E um denário de esperança também. Estamos todos sentados na praça, esperando ser felizes.

Salomé: Sim, está certo, é isso o que todos queremos, mas...

Jesus: Mas nossos olhos ficam amarelos de inveja quando vemos que alguns se levantam da praça antes de nós... Mas veja, mais cedo ou mais tarde, chegará a vez para todo mundo. E então, Deus fará a mesma coisa que Daniel: ele dará um jeito de dar a todos um bom salário... A todos a mesma paga, o que é a melhor justiça... Sim, eu estou certo de que, no final, quando a praça estiver vazia, todos teremos na mão o mesmo denário, a mesma felicidade que por tanto tempo esperamos...



Pouco a pouco, as luzes foram se apagando. O bairro dos pescadores, as ruas e também a praça ficaram vazios e escuros... Os olhos de Cafarnaum, cansados, se fecharam de sono, esperando a luz de um novo dia...





A parábola “dos chamados à vinha” foi interpretada geralmente como um exemplo para ilustrar a vocação nas diferentes etapas da vida (os que são chamados jovens, os mais maduros, os já velhos...). No entanto, o sentido profundo desta história de Jesus justifica que seja melhor chamada de a parábola “do bom patrão”.





Neste episódio, a parábola aparece não só como um conto com moral da história, mas como um fato da vida real. Porque foi da vida, num tempo em que o fantasma do desemprego pairava sempre sobre a vida dos pobres que Jesus foi tirá-la. A praça é o lugar de reunião em qualquer povoado. Também foi assim em Cafarnaum para os que procuravam emprego. Naqueles tempos eram abundantes os trabalhadores eventuais, contratados por algumas horas, alguns dias, para uma colheita. Nos povoados pequenos, da roça, isto era ainda mais generalizado do que em Jerusalém. Não existia como hoje nenhum tipo de estabilidade no emprego e, muito menos, direitos, sindicatos ou especialização laboral. Isso tornava a vida dos pobres totalmente instável. A dominação romana havia agravado ainda mais esta situação, típica de um sistema econômico primitivo. Em terras galiléias, os impostos cobrados pelo império haviam acabado com a propriedade comunal da terra e favorecido, por outro lado, a concentração da terra cultivável em muito poucas mãos. A venda forçada da terra a que se viram obrigados os pequenos proprietários, os transformou de repente em assalariados. Grande quantidade de diaristas não organizados era mão de obra barata que vivia procurando trabalho onde quer que aparecesse. O fato de ficar vários dias sem encontra-lo, tornava sua situação tão frágil que os empurrava, junto com suas famílias, à miséria mais absoluta. Esta mesma situação ainda é experimentada pelas grandes maiorias de nossos países. Nessa dura condição de pobre, que vive do dia-a-dia, Jesus é seu companheiro.



Jesus compartilhou esta situação, como trabalhador pobre. É importante ressaltar que ele trabalhou com suas próprias mãos, que foi um operário e não um homem versado nas letras e estudos, alheio à realidade diária dos que ganham o pão com o suor de seu rosto. Suas mãos tiveram calos e sabiam mais de toscas ferramentas do que de papéis. Sua origem o havia ensinado também a trabalhar no que aparecesse. Quando o evangelho nos diz qual era sua profissão, não devemos limitar isso unicamente a carpinteiro. A palavra que Marcos emprega (Mc 6,3), é o vocábulo grego “tekton”, que originalmente significa “construtor” e “artesão”. Era também empregado para designar tanto o carpinteiro como o ferreiro ou pedreiro. Um homem da aldeia – como Jesus – tinha três ou mais profissões por necessidade. Além disso Jesus devia saber muito de construção. Em várias ocasiões falou com detalhes da construção de uma casa, comparando este trabalho com a construção do Reino de Deus (Mt 7, 24-27; Lc 14, 28-30).



A videira é um dos cultivos mais típicos da Palestina e de todos os países vizinhos. A vindima – ou colheita das uvas – começa até meados do mês de setembro. E pode durar até à metade de outubro. De qualquer forma é preciso terminá-la antes que comecem as chuvas de outono, porque então as noites são muito mais frias e podem estragar as frutas. Daniel teve uma boa colheita e lhe interessa colher logo os cachos para que não se estraguem.



A diária de um trabalhador nos tempos de Jesus era ordinariamente um denário. Em alguns casos, o almoço era incluído na diária. Nos povoados pequenos, com muita freqüência, o pagamento era em espécie. O denário foi a moeda oficial de Israel nos tempos da dominação romana. Era de prata e trazia estampado o rosto do imperador que de Roma governava as províncias. Equivalia à dracma, moeda também de prata, que fora usada oficialmente nos tempos da dominação grega, uns duzentos anos antes de Jesus.



Daniel é um bom patrão. Sabe que embora alguns tenham suado durante doze horas e outros tenham trabalhado menos tempo, todos têm uma família para levar adiante. Por isso paga a mesma coisa para todos. Não esbanja pagando mais que o habitual, mas não permite que ninguém fique sem o necessário para aquele dia. Não importa se os últimos tenham sido mais preguiçosos ou não tenham madrugado o suficiente. Todos têm que comer e dar de comer a seus filhos e se lhes pagasse só por um hora, não seria o bastante. Daniel não é arbitrário, nem injusto, nem caprichoso. É bom. Seu coração compreende o drama de um trabalhador desempregado, aborrecido pela insegurança diária. Assim é Daniel, o bom patrão. Assim também é Deus: esta história é seu retrato.



Para além da justiça estrita da diária necessária, Jesus propõe também neste episódio o tema da felicidade. No fundo, por trás de todos os nossos atos, todos os seres humanos, estamos perseguindo sempre uma e mesma coisa: a felicidade. Todos os desempregados que se encontravam na praça e todos os moradores de Cafarnaum estiveram falando de pranto, todos reclamando sua felicidade. Pois bem, Jesus diz que esta felicidade chegará para todos e que Deus não faltará à sua promessa de bom patrão. A história humana, cheia de injustiças e dores, será resgatada pelo amor de um Deus libertador. E também será resgatada a pequena história de cada um, com suas lágrimas e suas dificuldades. Porque o projeto de Deus é que sejamos felizes hoje e para sempre. Esta é a certeza da nossa fé (Rm 8, 31-37).



Diante desta parábola muita gente reage com indignação, com amargura. São mentalidades comerciais: a tanto de esforço, tanto de prêmio; a tantas horas, tanto de pagamento. O que sair disso, é injusto. Mas Deus não é um banqueiro, um capitalista eficaz. Nele não há números, há sentimentos. Ele tem coração. As mentalidades mesquinhas ficam incomodadas com os gastos do generoso. Por isso esta história sempre será escandalosa para todas aquelas pessoas que pensam só em méritos para se “assegurarem” do céu.



A primeira comunidade cristã repetiu o gesto do bom patrão: dava a cada um segundo suas necessidades, não segundo o que produzia (At 2, 44-45). A autêntica justiça é mais qualitativa que quantitativa, busca a unidade e não a uniformidade. Postula que cada um se desenvolva tal como é, em todas as suas possibilidades. Que cada um possa viver.



(Mt 20, 1-16)





















































































62

O FERMENTO DOS FARISEUS







Eliazim: Bem, já estou aqui. Teria muito interesse em trocarmos impressões...

Josafá: Fique à vontade, dom Eliazim. Este almofadão estava esperando por você, he, he!

Eliazim: E o mestre Abiel? Ainda não chegou?

Josafá: Está pra chegar. Quando reza suas orações, esquece até do chão em que pisa, he, he!



Alguns momentos depois, o escriba Abiel chegou à casa de seu amigo o fariseu Josafá. Ali se reuniram naquela manhã com dom Eliazim, o poderoso latifundiário de Cafarnaum. Queriam falar sem pressa sobre algo que os preocupava há algum tempo.



Eliazim: Isso não se pode permitir. Desde que esse homem chegou a Cafarnaum, tudo anda de pernas para o ar. Não há mais lei,  não há mais religião, não há mais respeito por nada! E tudo por culpa dele! Esta gentalha com quem ele se reúne é capaz de tudo. Com esse homem aqui, alvoroçando as pessoas com essas idéias, estamos todos em perigo. Ouçam-me bem: todos. Vocês também...

Abiel: Então, dom Eliazim, você propõe que...

Eliazim: Sim, nada de panos quentes... Que se faça uma acusação formal diante das autoridades romanas. Eles não estão aqui para manter a ordem e meter na cadeia os revoltosos? Pois não há nenhum maior que ele!... O que aconteceu outro dia na sinagoga transbordou o caneco...

Josafá: Mas veja só, dom Eliazim: os romanos apareceram por lá mas não fizeram nada.

Abiel: Bah, os romanos não nos levam a sério. Eles nos desprezam demais. Para eles, tanto faz se nos esfolamos uns aos outros. Contanto que não toquemos em nada do que é deles...

Josafá: Além disso, se nós o acusarmos, eles empurrarão o caso para o rei Herodes. Herodes é supersticioso e vai demorar pelo menos um ano para cortar-lhe a cabeça, como fez com João, o batizador. Eu creio que é de interesse de todos nós acabar logo com esse assunto...

Eliazim: Pois então vamos provoca-lo, e que ele mesmo acabe se enfrentando diretamente com os romanos.

Abiel: Ele não fará isso. Permita que lhe diga, dom Eliazim, que esse sujeito é tão astuto como as serpentes.

Eliazim: E então...?

Abiel: Está me ocorrendo outra idéia. Deixemos quietos Herodes e os romanos. Talvez nem façam falta. Talvez seja ele mesmo quem nos dará a saída...

Eliazim: O que está querendo dizer, mestre Abiel?

Abiel: Quero dizer que todos os homens têm seu preço. E Jesus de Nazaré o terá também, não lhe parece?

Eliazim: De que se trata?

Abiel: Trata-se de jogar o anzol com uma isca bem gorda... e o peixe a beliscará... estou certo que beliscará...



Pedro: Tiago, escute só:  faz pouco tempo que a velha Salomé foi lá pelas bandas do cais. Disse que esta manhã o fariseu Josafá esteve procurando por Jesus lá em sua casa.

Tiago: E o que queria essa ave de mau agouro?

Pedro: Falar com ele. Assunto importante. Salomé foi procurar o Moreno na casa grande. Lá estava ele pregando uma porta.

Tiago: Isso não me cheira nada bem. Onde esses abutres metem o bico, há carniça no meio...



Jesus chegou à casa do mestre Josafá antes do meio dia...



Jesus: Muito bem, aqui estou eu. Disposto a escutá-los...

Abiel: Você fez muito bem em vir, Jesus. É melhor para você que falemos de uma vez claramente, sem rodeios...

Josafá: Trata-se do seu futuro, Jesus. Um homem como você, que vale tanto, que é capaz de incendiar as pessoas só com umas quantas palavras bem faladas, é um homem que pode aspirar a vôos mais altos...

Abiel: Sabemos que seu pai morreu faz uns quantos anos, que você é filho único e que sua mãe agora vive sozinha, lá em Nazaré.

Jesus: Estou vendo que sabem muita coisa a meu respeito...

Abiel: O que acontecerá com sua mãe se você continuar pelo caminho que vai indo? A quem ela se agarrará se você vier lhe faltar?

Jesus: Dissemos que íamos falar claramente. O que minha mãe tem a ver com isso?

Josafá: Queremos ajuda-lo, Jesus. E ajudar a ela também. Desde que você chegou a esta cidade, consegue trabalho um dia sim e dois não. Uns quantos bicos aqui e ali e depois fica perdendo tempo nas tabernas... Para um homem como você, isso é realmente penoso...

Abiel: Nós poderíamos conseguir-lhe algo melhor. Um trabalho fixo. Não precisaria sair a cada manhã e esperar na praça para ver o que acontece. Um trabalho. Sim, muito trabalho, he, he..., cômodo, interessante... Temos influência, você sabe muito bem.

Jesus: E quanto vai custar esse favor? Porque imagino que não irão querer fazer isso de graça.

Abiel: Olhe, nazareno, falemos sem rodeios. Você alvoroçou muito por Cafarnaum. Isso todo mundo sabe. Os romanos também sabem. Não seria difícil faze-los ver que você é um sujeito perigoso para Roma. E então, você já sabe... eles cortarão sua língua. Mas, ainda há tempo...

Josafá: Deixe sua língua quieta. E nós deixaremos você quieto também. E para que você perceba que sabemos apreciar o que você vale... lhe daremos em troca um grande posto, onde ganhará muito dinheiro...

Abiel: Sim, já sabemos que o dinheiro não é tudo... Mas nesse trabalho, você terá muita gente às suas ordens... Estou certo que um prato assim abrirá seu apetite... Você é ambicioso, não se conforma com pouco. Veja, Herodes quer reorganizar a administração da Galiléia. Precisa de gente inteligente, habilidosa... Gente como você...

Josafá: Pense bem, Jesus... Convém a você dizer que sim...

Jesus: E se eu disser não...?

Josafá: Bem, neste caso... você estaria em perigo, entende?... E não só você... esse grupinho de pescadores que anda com você por todo lado também... pobres rapazes... Por outro lado, eles são jovens e sabem se defender melhor... mas ela... sua pobre mãe poderia ser molestada também... você imagina como as coisas podem se complicar...

Abiel: Está compreendendo, Jesus?  Todos esses sonhos que você tem na cabeça são como as nuvens. Aparecem e somem e, de um momento para o outro, não resta mais nada delas. Ponha os pés no chão, rapaz, e pare de olhar as nuvens...

Jesus: Não posso deixar de olha-las. Aprendi a fazer isso desde pequeno. Camponeses como eu mal sabemos ler nos livros, por isso, aprendemos a ler no céu o que dizem as nuvens.

Abiel: Deixe sua ironia para outra hora. Agora é sua vez de falar claramente.

Jesus: Isto está bem claro. E vocês sabem tanto quanto eu ler as nuvens. Se à tarde o céu fica vermelho como o sangue, é porque vai fazer tempo bom, não é assim?... E se as nuvens se escondem e começa a soprar os ventos do sul, o que você diriam que vai acontecer?

Josafá: He, he... É sinal que fará calor...

Jesus: E você, mestre Abiel, se vir que as nuvens se agitam no poente, o que diria?

Abiel: Diria que vem tempestade...

Josafá: Muito bem, já chega. Aonde você quer chegar com essas histórias?

Jesus: Hipócritas! Como é que vocês conhecem os sinais do céu e não conseguem ver os sinais da terra!?... Sim, vai haver tempestade, mas aqui em baixo!... Hipócritas! Não estão se dando conta do que está acontecendo? O povo desperta e vocês continuam dormindo. E aqueles que não se vendem a vocês por dinheiro, chamam de louco e sonhador. Hipócritas! Quando veio João, o profeta, que não comia nem bebia, disseram que era um endemoniado. De mim, que ando pelas tabernas, dirão que sou um bêbado, um glutão. Vocês são como esses meninos bobões que fazem tudo fora de hora: nem dançam quando há casamento, nem choram quando há velório. E estes são os sábios e os sacerdotes de Israel! Hipócritas!...

Abiel: Espere um momento, nazareno, escute...



Mas Jesus lhes deu as costas e saiu da casa...



Abiel: Imbecil. Algum dia se arrependerá.



Pedro: O que aconteceu, Moreno? O que querias esses caras?

Jesus: O de sempre, Pedro. Desde o que aconteceu na sinagoga, estão doidos para pegar no nosso pé.

Tiago: Temos que ter muito cuidado, Jesus. Essa gente é perigosa.

Jesus: Pois veja, Tiago, eles dizem que os perigosos somos nós.

Tiago: Ah, é? E por que estão com medo de nós? Estou gostando disso, caramba!

Felipe: Pois eu não estou gostando nada... Também tinham medo do profeta João... e veja como acabou...

Jesus: João tinha que acabar assim... O que ele era? Um caniço que o vento agita como quer? Não, ele não se dobrou diante de ninguém.

Pedro: A bem da verdade, nem mesmo diante do próprio Herodes...

Jesus: Por isso o cortaram ao meio, como a uma árvore que crescia reta, sem torcer-se. Era a única forma de acabar com ele. Também a ele propuseram luxos e influências e dinheiro. Mas ele não se curvou diante de nada...

Tiago: Isso porque João era um profeta, caramba!

Jesus: Sim, e muito mais que profeta. Foi o maior homem que tivemos entre nós.

Pedro: Bem, mas, o que foi que aconteceu, Jesus? Para que esses caras chamaram você? Para falar do profeta João...? Será que mesmo depois de morto o batizador ainda os preocupa?

Jesus: Não, Pedro, agora estão preocupados conosco. Estão preocupados que as pessoas abram os olhos e despertem e se dêem conta que esta religião que eles ensinam não é mais que um punhado de leis humanas e preceitos inventados por eles mesmos. Por isso, querem tapar nossa boca na marra, ou com astúcia, quem sabe...

Felipe: E... o que vão fazer?

Jesus: Usar de violência, Felipe. Eles são violentos. Eles ganharam assim todos os privilégios que têm, pela violência, esmagando os outros. E agora também querem ganhar pela violência. Querem comprar o Reino de Deus, conquista-lo à força...

Tiago: Eles lhe ofereceram dinheiro, Jesus?

Jesus: Dinheiro, sim. E um bom emprego. E qualquer outra coisa, desde que nos calemos. Sabem o que eu penso?... Que a partir de hoje devemos ter o olho bem aberto com o fermento dos fariseus. Basta um punhado de fermento velho para estragar toda a massa. Essa gente está podre, e o que eles procuram é isso, apodrecer tudo...

Tiago: E usarão todas as suas artimanhas contra nós...

Jesus: Hoje armaram a arapuca para mim. Amanhã a armarão para Natanael ou Tomé ou Judas... a qualquer um de nós.

Felipe: Então, pelo que estou vendo, esse negócio de Reino de Deus está ficando complicado...

Pedro: Temos que avisar as pessoas para que fiquem ligadas. Esses caras têm espiões por tudo que é esquina. Com um par de denários compram um dedo-duro. Podem estragar tudo.

Tiago: Isso é bem a cara deles, trabalhar na sombra. Vermes malditos!

Jesus: E o nosso jeito será trabalhar à luz do dia. E jogaremos pra cima todos os planos deles, e tudo o que andam dizendo a portas fechadas, gritaremos de cima das cumieiras das casas... Se acham que vão nos assustar, estão muito enganados... Não daremos um passo atrás sequer.



Eliazim: E então, mestre Josafá? Conseguiu meter medo nele?

Josafá: Medo? Aquele lá está tão cheio de orgulho que não lhe cabe outra coisa no corpo!

Eliazim: O que ele disse?

Josafá: Charlatão! E por cima de tudo, quer dar uma de profeta!

Abiel: A única coisa que sabe fazer é comer e embebedar-se e carregar atrás de si aquela chusma de Cafarnaum...

Eliazim: Então, o que podemos fazer, mestre Josafá?

Josafá: Esperar, dom Eliazim. O peixe morre pela boca, não é assim que diz o povo do mar. Pois esse peixe também morrerá pela boca. É imprudente e altaneiro. Não quer se calar. Pior para ele. Você vai ver, amigo, é tudo uma questão de tempo... Deixe que ele continue... Estará levantando sua própria cruz, he, he...



Dom Eliazim, o rico latifundiário e o fariseu Josafá, mestre e fiel cumpridor da lei de Moisés, continuaram conversando. Enquanto isso, as nuvens, agitando-se no poente, anunciavam uma forte tempestade...





Mais cedo ou mais tarde, foram se aliando contra Jesus os grupos sociais que tinham o poder econômico, político e religioso daquela sociedade. Neste episódio, perfilam-se as primeiras dessas alianças. De um lado está Eliazim, o latifundiário. Na Galiléia, a estrutura agrária chegou a ser, depois da dominação romana, claramente latifundiária. Esses grandes fazendeiros, naturalmente, opunham a qualquer movimento popular que apresentassem reivindicações sociais. Junto dele aparecem dois mestres fariseus. Embora nem sempre os fariseus fossem da classe dominante, muito porém pertenciam a ela. Todos tinham poder religioso: “salvavam” ou “condenavam” com sua interpretação da Lei. Para esse grupo piedoso, Jesus – que se relacionava com os “malditos” e não respeitava a Lei – era sumamente perigoso. Ele questionava todo o aparato religioso. Por fim, estes dois grupos de poder, que se envolveram com o poder político e militar de Roma, percebem que Jesus começava a se tornar um elemento incômodo, por causa das esperanças de libertação que despertava entre os pobres. Entre as inumeráveis táticas que os poderosos utilizam para combater os que lhes oferece resistência, está o suborno. Em geral, antes de se liquidar um líder, tenta-se “compra-lo”. A chantagem – um bom emprego, dinheiro – ou as ameaças são métodos usados para debilitar a vontade daquele que se compromete com uma causa que exige sacrifícios. A esta altura de sua vida, Jesus já era um homem com muita popularidade entre seus conterrâneos. Era um líder e é muito possível, por isso, que sofresse também pressões desse tipo.



Jesus fala a seus inimigos de “sinais no céu”, que eles não sabem ler. Nestes últimos anos, o grande profeta que foi o papa João XXIII, se referiu muitas vezes ao que ele chamava “sinais dos tempos”. Dizia que era preciso estar atentos ao que acontecia ao nosso redor, na história, para enxergar por onde vai o futuro e trabalhar nessa direção. Assim como Jesus despertou o povo de Israel de sua passividade, lhe deu uma esperança e pôs em marcha uma comunidade que compartilhasse e trabalhasse pela justiça, também em nosso tempo aparece esse sinal. E cada vez com mais força. As comunidades cristãs de base, as organizações populares, multiplicam-se, amadurecem e crescem. Elas são um sinal dos tempos. Elas farão o futuro.



Para os homens “decentes” de sua época, Jesus foi um homem mal afamado e sua vida lhes parecia um verdadeiro escândalo. O evangelho conservou o que dele se dizia: “comilão, beberrão, amigo das prostitutas”. Em outra ocasião o chamaram de “samaritano” (Jo 8, 48), insulto muito pesado, equivalente a “bastardo”, “filho de prostituta”. Todo o evangelho dá testemunho de que Jesus não foi um homem insociável, de que sua vida nada tem a ver com a dos beatos, dos santarrões, dos ascetas que castigam o corpo para libertar o espírito. Muito menos se parecia com o profeta solene e sóbrio que foi João Batista. Jesus foi um homem do povo. Seu ambiente natural era a praça, a rua, o bairro. Nele fica para sempre santificada a vida cotidiana, a alegria das pessoas, a simplicidade sem complicações, como caminho para chegar a Deus.



(Mt 11,7-19; 16, 1-12; Mc 8,11-21; Lc 7,24-35; 12,54-56)

63

UMA PEDRA DE MOINHO







Por aqueles dias, o rei Herodes, tetrarca da Galiléia, aumentou os impostos do trigo, do vinho e do azeite. Com isso continuaria mantendo o luxo de sua corte e deixaria contentes os oficiais de seu exército... De nada valeram os protestos do povo. E os cárceres de Tiberíades, onde o rei tinha seu melhor palácio, inundaram-se de jovens inconformados e rebeldes zelotas...



Herodes: Onde, onde vocês colocaram os últimos que foram pegos conspirando contra mim?

Carcereiro: São esses aqui, rei Herodes. Nem um só escapou à vigilância de seus guardas.

Herodes: E nenhum só escapará do machado do meu verdugo.

Carcereiro: Este moleque é filho do fariseu Abiatar.

Herodes: E o que isso me importa?

Carcereiro: O fariseu Abiatar está à porta do palácio com dois talentos de prata como resgate de seu filho. E suplica sua compaixão para com ele.

Herodes: Compaixão?... Você disse compaixão?... Ah, ah, ah...! Qual a acusação contra esse rapaz?

Carcereiro: Ele e um grupo foram roubar armas no arsenal de Safed.

Herodes: Aha?... Ainda nem tem barba e já está roubando espadas para conspirar contra seu rei! Rá! Com esta mesma espada corte-lhe a mão direita. Isso lhe tirará a vontade de roubar.

Um rapaz: Não, não, piedade de mim, rei, piedade...!

Herodes: Leve-o e avise o verdugo... E esse com cara de tonto, o que fez?

Outro rapaz: Eu não fiz nada, rei, é uma injustiça...!

Carcereiro: Cale-se! É assim, que você fala com o rei?...

Herodes: E este imbecil, o que foi que ele fez?

Carcereiro: Este nos deu muito trabalho. Corre como uma lebre. Escapou duas vezes bem debaixo do nariz dos guardas.

Herodes: Pois não escapará uma terceira. Cortem-lhe o pé direito!

Rapaz: Não, não, não!!!

Carcereiro: Este aqui é um espião, majestade. Foi pego na semana passada bisbilhotando nos arquivos de compra e venda. Pertence ao movimento zelota.

Herodes: Espionando, não é mesmo? Vazem os olhos dele com a ponta de um prego e jogue-os aos meus cães... São sua comida favorita.



O rei Herodes Antipas era cruel como seu pai... Qualquer um preferiria a morte a ser levado aos fossos de seu palácio... Ali encontravam-se os calabouços escuros onde dezenas de homens e mulheres apodreciam em vida... Ali se encontrava o salão das ratazanas, uma masmorra negra e pestilenta, trancada solidamente, onde se amontoavam cadáveres, onde deixavam morrer os mais rebeldes... Ali se encontrava também o pátio das torturas e seus quatro verdugos, encarregados de cumprir as sentenças do rei...



Rapaz: Não, não, não, não faça isso comigo...! Você é um homem como eu!... Não pode fazer isso comigo...!



Agarraram o rapaz, o filho do Abiatar, esticaram-lhe o braço direito sobre um tronco de madeira que recendia a sangue de outros castigados...



Rapaz: Pelo amor de Deus!... Pelo amor de Deus!... Não me corte a mão!... Não, não... não quero, nãããooo...!!!

Carcereiro: Maldição, tape a boca desse infeliz e segure-o firme!

Rapaz: Não, não, ... aaaiiiiiii!!!



Depois dos interrogatórios e das torturas, muitos presos que haviam sido mutilados selvagemente naqueles calabouços de Tiberíades, voltaram para suas casas...



Mãe: Ai, meu filho, meu filho...! O que fizeram com você?... Filho!!

Abiatar: Canalhas, canalhas...!!



O filho do fariseu Abiatar procurava esconder seu braço direito que terminava num punho infeccionado e cheio de vermes...



Conselheiro: E sua majestade já se inteirou do novo profeta que temos na Galiléia?... Aqui os profetas crescem como os cogumelos.

Herodes: Profeta? De quem você está falando, trapaceiro?

Conselheiro: De um tal Jesus. Um moreno alto e barbudo, vindo do campo. Do povoado de Nazaré, para ser mais exato.

Herodes: Por que está me contando isso?

Conselheiro: Porque o rei Herodes deve estar informado de tudo o que se passa em seu reino. Esse nazareno se mexe bastante. É um homem astuto e organizado. Dizem que quer mudar tudo, até a religião! Tem um grupo com ele. Estiveram viajando por todos os povoados do lago, de dois em dois.

Herodes: E o que eles fazem? Conte-me.

Conselheiro: O que fazem todos. Conspirar contra sua excelência. Dizer às pessoas que se rebelem, que não paguem os impostos, que...

Herodes: Então, porque você disse que era um profeta? Deve ser um agitador a mais, como os outros.

Conselheiro: Sim e não. Parece que esse tal Jesus é um mago e tanto. Faz milagres! E tem mel na boca. As pessoas correm atrás e se grudam nele como moscas... Alguns andam dizendo se não será o messias esperado!

Herodes: Ahh! O Messias!... Um camponês piolhento, o messias!... Minhas prisões estão cheias de messias... e ainda querem mais!

Conselheiro: Ouvi dizer que esse nazareno tem fogo na língua, como o próprio profeta Elias!

Herodes: Fogo desse tipo a gente apaga enchendo-lhe a boca de areia, até que lhe estoure as tripas.

Conselheiro: Dizem também que é parecido com o rei Davi porque dança, ri e anda pelas tabernas...

Herodes: Quando estiver pendurado nos grilhões, não sentirá mais vontade de rir!

Conselheiro: Dizem também... Bom, dizem muitas coisas.

Herodes: O que você está insinuando? Fale claro. O que mais dizem dele?

Conselheiro: Bah! Conversa fiada do povinho, meu rei...

Herodes: O que mais dizem desse maldito?

Conselheiro: Dizem que ele é o próprio João Batista que ressuscitou.

Herodes: Mentira! João está morto. Eu mesmo mandei que lhe cortassem a cabeça!

Conselheiro: Dizem que o espírito de João lhe saiu pelo pescoço quando o verdugo deu o golpe fatal. Depois deu sete voltas em Maqueronte procurando a porta. E quando a encontrou saiu fugindo a toda pressa e...

Herodes: E o que? Acabe logo de uma vez!

Conselheiro: E... e se grudou na cabeleira do nazareno. O que é certo, majestade, é que esse sujeito fala igualzinho ao filho de Zacarias.

Herodes: Embusteiro! Por que está me enganando?... Você o ouviu, não é mesmo? Por acaso você o ouviu?

Conselheiro: Pessoalmente, não, meu rei, mas dizem...

Herodes: Mandarei prende-lo por charlatanice!

Conselheiro: Acalme-se, majestade. Foi o senhor mesmo que exigiu que o informasse...

Herodes: Que me tragam agora mesmo esse homem!

Conselheiro: Sim, meu rei.

Herodes: Quero ver a cara dele. Aí saberei quem é esse Jesus. Tenho um bom olfato, sabia? Se for um charlatão, eu lhe arrancarei a língua. Se for um profeta cortar-lhe-ei a cabeça...

Conselheiro: E se for o próprio João Batista que ressusci...

Herodes: Cale a boca, embromador! Cale a boca! Ele está querendo me assustar!... Maldito seja você, João Batista! Nem morto me deixa em paz!



Nesse mesmo dia dois homens chegaram à nossa casa, perguntando por Jesus. Vinham de Tiberíades...



Um fariseu: Você é Jesus de Nazaré?

Jesus: Sim, sou eu mesmo. Mas por que está falando tão baixo? Não tem nenhum doente em casa!

Outro fariseu: Doente, talvez não. Mas um morto é bem capaz que tenha. É isso aí. O rei Herodes anda procurando você, nazareno.

Jesus: É mesmo? E como vocês sabem disso?

Fariseu: Viemos de Tiberíades. Somos amigos de um conselheiro do rei.

Jesus: E o que essa raposa quer de mim?

Fariseu: Pensa que você é João Batista que ressuscitou e que quer se vingar dele. Herodes é muito supersticioso. Quer um conselho, rapaz? Suma daqui. Esconda-se em algum povoado das montanhas. E não conte isso nem a seu melhor amigo.

Jesus: Há uma coisa que não entendo nisso tudo. Vocês são amigos de um conselheiro do palácio. E estão me ajudando a fugir do rei. O que está acontecendo? Herodes não lhes está pagando um bom salário, e então vocês estão atrás de propinas?

Fariseu: Não, não é isso, nazareno. Na semana passada, cortaram a mão direita de um sobrinho meu, filho do fariseu Abiatar. Era um rapaz alto e forte como você. Quando o vi com aquela ferida, com as duas pontas de osso lhe saindo pela carne apodrecida, não contive as lágrimas. E prometi ajudar qualquer israelita a escapar das garras desse assassino, não importa as idéias que tenha.

Jesus: Compreendo... E você, por que não fala nada? Também viu o rapaz mutilado?

Fariseu: É meu filho. Sou o fariseu Abiatar.



Jesus apertou os punhos com raiva e seus olhos se encheram de lágrimas...



Jesus: Criminoso...!

Fariseu: Vai embora daqui, rapaz, vai embora se não quer que lhe aconteça o mesmo que aconteceu a meu filho. O pior.

Jesus: Não, não irei.

Fariseu: Acredite, rapaz. Você está em perigo. Entende isso?

Jesus: Sim, eu entendo. E lhes agradeço por terem vindo me avisar. Mas não irei. E vocês, quando voltarem a Tiberíades, se virem essa raposa lá em sua toca de ouro e mármore, entreguem esse recado meu: que vou continuar fazendo a mesma coisa que fiz até agora. Hoje, amanhã e depois de amanhã. E que suas ameaças não me assustam, porque todos os profetas morrem em Jerusalém, não na Galiléia.

Fariseu: Não seja louco, nazareno, escute a gente...



Nesse momento, eu e meu irmão Tiago voltávamos do cais. Também outros do bairro se aproximaram de nossa casa para ver quem eram aqueles visitantes...



João: O que acontece, moreno? Algum problema?

Jesus: Não, não está acontecendo nada. É que a Herodes não basta o sangue que já derramou. Quer mais. Quer beber todo o sangue dos filhos de Israel!

João: Sem vergonha, isso é o que ele é! Veja agora os impostos: espremendo nossos bolsos para encher os porta-jóias de suas queridas.

Uma mulher: O rei é um adúltero. Continua vivendo com sua cunhada, a mulher de seu irmão Felipe. Safado!

Jesus: Isso seria o de menos, amiga. Que ele faça de sua vida o que bem quiser. Mas com a vida alheia, não tem direito. Esse homem é uma pedra de tropeço. Enquanto continuar no trono não haverá paz por aqui. Enquanto continuar roubando o povo e torturando nossos filhos, aqui não haverá tranqüilidade.



As pessoas do bairro, como sempre, começaram a juntar-se na rua para ouvir Jesus...



João: Jesus, deixe isso pra lá. Venha, vamos para dentro.

Jesus: Não João. As pessoas têm de saber o que está acontecendo em nosso país. Cortaram a mão direita do filho deste homem, compreende? Se a mão fosse sua, você ficaria calado?

João: Está certo, moreno, está certo. É que tem dedo-duro em todo canto... Nunca se sabe...

Jesus: Ei, vocês todos, escutem bem! Se algum de vocês é amigo dessa raposa disfarçada de rei, vai logo vê-lo e levem esse recado meu: quem abusa da força, pela força morrerá... Você cortou a mão do filho de Abiatar, Deus o lançará ao fogo com as duas mãos. Você arrancou olhos com um prego, arrancou unhas com um alicate, castrou homens e violentou mulheres no cárcere e esquartejou os membros dos filhos de Israel. Deus o lançará com todos os seus membros, no inferno, e você será pasto para os vermes. Você cortou a cabeça  do profeta João. Deus amarrará em seu pescoço uma grande pedra de moinho e o lançará no fundo do mar. Porque você, e os criminosos como você, não merecem respirar deste ar nem pisar nesta terra. Digam isso a Herodes e digam que fui eu que falei...



Jesus deu meia volta e entrou em casa. Estava muito alterado. Sentou-se no chão, afundou o rosto entre as mãos e ficou um longo tempo em silêncio.





Uns vinte anos antes de Jesus nascer, Herodes havia fundado a cidade de Tiberíades, na orla esquerda do lago da Galiléia. Pôs esse nome em honra de Tibério, imperador romano daquele tempo. E a transformou em capital da Galiléia, em lugar de Séforis. Tiberíades era lugar da residência habitual de Herodes Antipas, que tinha ali seu palácio. Era uma cidade odiada por muitas razões, além da presença do rei. Ela fora edificada sobre um cemitério – por isso, para os fariseus, era “impura” -  e estava dedicada ao rei de Roma, o que a tornava desprezível para os nacionalistas. Hoje Tiberíades é uma das cidades mais povoadas e modernas da Galiléia, com vários hotéis, bons restaurantes e centro de esportes (esqui aquático e vela, que são praticados no lago).



Nos porões de seu palácio, Herodes tinha – como era habitual na época – as masmorras que serviam de prisão para seus inimigos. Embora em Israel não existisse a tortura como meio de castigo para os prisioneiros, Herodes o Grande a empregou abundantemente durante todo seu reinado, desprezando o direito judaico. Seu filho, este Herodes contemporâneo de Jesus, tão cruel quanto seu pai, seguiu pelo mesmo caminho. Sua ambição de poder e a debilidade de seu reino, dependente de Roma e assediado pelo descontentamento popular, fizeram dele um governante capaz de qualquer crime para não perder o trono.



A tortura sempre existiu ao longo da História. O homem, degradando sua condição, fez sofrer seus semelhantes com o intuito de domina-los, de submetes-lo, de obter deles informações. A tortura aparece quase sempre ligada ao exercício injusto do poder. Precisamos saber que até a Igreja oficial torturou. Há menos de quinhentos anos atrás, queimou hereges, atormentou com horrendos suplícios aqueles que não pensavam como ela, utilizou todo tipo de pressão sobre seus “inimigos”. Para a missão cristã erradicar, denunciar, e combater por todos os meios a tortura é um assunto urgente e prioritário.



Este texto evangélico que fala do “escândalo dos pequenos” foi usado com muita freqüência para ilustrar o tema da corrupção de menores, da pornografia infantil ou coisas parecidas. “Os pequenos”, na linguagem bíblica, não é só equivalente a crianças. Os pequenos são também os pobres, os desvalidos, os oprimidos, os que não têm poder e são esmagados pelo poder. Para esses pequenos, homens como o rei sanguinário são um escândalo, entendido o que quer dizer esta palavra em sua origem: pedra de tropeço. Isto é, homens assim impedem os pobres deste mundo de crescer, desenvolver-se, viver. Por isso valeria mais serem lançados ao mar com um pedra de moinho amarrada ao pescoço.



A farinha de trigo e de outros cereais era obtida do grão por meio de um moinho. Era uma instrumento composto por duas pedras que eram giradas uma sobre a outra. Os moinhos eram uma peça básica num lar e tiveram diferentes formas ao longo dos séculos. No tempo de Jesus eram empregados os chamados “moinhos de asno”. As pedras eram enormes e somente um burro conseguia mover a que girava sobre a que permanecia fixa no chão. Este tipo de moinho era usado por diversas famílias. Entre os restos arqueológicos de Cafarnaum encontram-se várias dessas pesadíssimas pedras. Vendo seu tamanho capta-se o tremendo efeito da frase de Jesus, uma frase “exagerada”, segundo o típico modo de falar oriental, que reflete em imagem a enorme carga crítica com que Jesus julgou o explorador dos pobres.



(Mt 14, 1-2; 18, 6-9; Mc 6, 14-16; 9, 42-48; Lc 9, 7-9; 13, 31-33; 17, 1-3)





































































64

ÁRVORES QUE CAMINHAM







A praça de Betsaida estava semeada de amendoeiras. À sombra de uma delas, a mais frondosa de todas, se recostava cada manhã Barnabé, um pobre velho que levava sempre sobre os ombros um grosso manto preto, cheio de manchas e buracos...



Barnabé: Sabe o que eu acho, mulher, que eu tenho gelo enfiado dentro dos meus ossos. E não sai de jeito nenhum. Se não fosse este manto que você costurou para mim...!

Um homem: Ah, velho louco, com quem você está falando?

Barnabé: Eu lhe digo que não sei mais o que fazer. Se fosse por mim, eu iria para longe, muito longe... Mas, e se depois as árvores perguntam e lhe dizem que fui embora...? As pobres ficam sem companhia... Mas eu acho que vou ter de ir, sim, vou acabar fazendo isso...



Barnabé falava sozinho já fazia muitos anos. Fazia muitos anos também que seus olhos não podiam ver a luz do sol. Umas brasas que saltaram do fogão onde sua mulher preparava a comida o deixaram cego. Um ano depois, sua mulher morreu, sem haver-lhe dado nenhum filho. E Barnabé ficou sozinho, com a lembrança de sua esposa morta e pedindo esmola junto às árvores da praça...



Barnabé: Uma esmola e Deus a devolverá em saúde! Uma esmola, pelo amor de Deus!

Um menino: Olhe só o cego Barnabé! Vamos dar uma “esmola” para ele, rá, rá, rá!

Outro menino: Não ria, idiota, senão ele vai perceber...! Venha, vamos...

Barnabé: O que acontece é que eu não posso ir até lá, mulher. Há muitas pedras pelo caminho e nem com o cajado posso me livrar delas... Se você estivesse comigo seria diferente...

Menino: Está vendo como ele fala sozinho? Está completamente gagá. Vamos só ver a cara dele...!

Barnabé: Uma esmolinha, por amor ao céu!

Menino: Olhe aqui, velho, tome... São umas gorjetinhas... com elas você terá com o que passar uma semana...



Os meninos, disfarçando a voz, colocaram nas mãos do cego Barnabé uma bolsinha de pano que pesava muito...



Barnabé: Mas, senhora, esta esmola é grande demais!

Menino: Não se preocupe, meu velho. Nós temos olhos e você não... Tudo isso é para você, para que não tenha mais que vir por aqui para pedir... Você já sofreu bastante...

Barnabé: Obrigado, senhora, obrigado... Eu já não lhe disse, mulher, que ainda tem gente boa neste mundo?...

Menino: Adeus, velho, que o Senhor o abençoe...!



Os meninos, sufocando o riso, afastaram-se um pouco da amendoeira onde Barnabé estava encostado, enquanto o cego, todo contente, desamarrava a bolsinha que acabavam de lhe dar...



Barnabé: Mas... mas, o que é isto? Ai, desalmados! Desalmados!



Da bolsa, cheia de pequenas e polidas pedras de rio, saiu um bom punhado de baratas que subiram em Barnabé pelos braços e pregas do manto. O cego tentava espanta-las, enquanto os rapazes retorciam-se de tanto rir, vendo-o dar pulos e proferir mil maldições.



Um menino: Rá, rá, rá...! O velho Barnabé tem olhos e não vê! O velho Barnabé tem olhos e não vê!

Uma mulher: Mas, o que está acontecendo agora com este velho louco?

Menino: Nada, ele está ensinando as baratas a dançar...!

Mulher: É o fim da picada! O que mais ele ainda vai inventar?... Bem, pelo menos podemos dar umas boas risadas. Porque se não, para que mais serve este infeliz!



Quase todos os dias acontecia algo parecido na praça das amendoeiras de Betsaida. O cego Barnabé era a chacota do povo. Todos mexiam com ele.



Um menino: Ei, velho, adivinha quem foi agora! Puah!

Outro menino: Você, agora é a sua vez... Agora! Puah!

Menino: Adivinha quem foi, adivinha, Barnabé!

Barnabé: Desalmados! Safados! Safados!!



Quando naquela manhã chegamos à praça de Betsaida, um grupo de meninos havia amarrado com cordas o cego Barnabé a uma das amendoeiras. Revezavam-se para cuspir nele, tentando acertar-lhe os olhos com a saliva, e depois pedindo que adivinhasse quem havia feito... Algumas pessoas haviam se juntado ao redor...



Jesus: Mas o que é isso, o que está acontecendo aqui?

Mulher: Não sei, forasteiro. Este velho cego anda meio louco...

João: Mas estão cuspindo nele... Por que fazem isso?

Mulher: Brincadeira de criança, você sabe como é. Eles têm que se divertir com alguma coisa.

Jesus: Claro, e os grandes também se divertem, não é mesmo?

Homem: Olhe aqui, forasteiro intrometido, está falando o que, heim? Está falando o que? Cada um se diverte como quer... ou não, hein? Ou não...?

Um menino: É minha vez! É minha vez! Agora é minha vez!

Todos: O velho Barnabé,  tem olhos e não vê! O velho Barnabé, tem olhos e não vê.

Jesus: Escute, amigo, se você fosse cego, gostaria que lhe fizessem isso?

Homem: Eu não sou cego, e não estou nem aí! E se você não gosta da brincadeira, vá caindo fora!



Ao meio dia, quando Jesus e eu voltamos à praça, a brincadeira já havia acabado. Mas o velho Barnabé ainda estava com os braços amarrados à amendoeira. Ofegava e falava sozinho, com o rosto cheio de cusparadas...



Barnabé: ... E eu subirei num barco, mulher, num desses que atravessam o lago... e irei embora. Lá, na outra margem, dizem que as pessoas são distintas, que os meninos lhe dão a mão e os homens o ajudam...

Jesus: Nós viemos da outra margem, velho...

Barnabé: Hein...? Quem... quem são vocês?

João: Chegamos esta manhã. Vimos você na praça.

Barnabé: Safados!... Vão embora e deixem-me em paz!!

Jesus: viemos desamarrar você, velho... Não tenha medo. Não gostamos nada dessa brincadeira que fizeram com você...

Barnabé: De onde são vocês...?

Jesus: Viemos de Cafarnaum.

Barnabé: Do outro lado do lago?

João: Sim, de lá mesmo. Você nunca esteve na outra margem?

Barnabé: Quando eu ainda enxergava, sim... Mas isso faz muito tempo. Já nem me lembro mais...

Jesus: Venha, João, vamos desamarra-lo...

Barnabé: O que vocês vão fazer comigo? Por favor, tenham piedade de mim!...

Jesus: Não tenha medo, velho. Não vamos machuca-lo. Não tenha medo...

Barnabé: Filhos da mãe!... Riem de mim o dia todo... e eu... eu não posso fazer nada...

João: Alegre essa cara, velho, já está solto...

Barnabé: Solto?... Amanhã ou depois voltarão a me amarrar e fazer a mesma coisa... É sempre assim...

Jesus: Já lhe fizeram isso outras vezes?

Barnabé: Isso e muito mais. Quando não cospem em mim, me dão pauladas, ou jogam baratas e eu tenho que fugir... e me lastimar... Bem, mas já estou acostumado. Já não me importa mais.

Jesus: Não lhe importa?... Então, por que está chorando?

Barnabé: Porque sempre me dói... Não, não estou acostumado... Sempre me dói...

Jesus: Vamos, vovô, vamos sair daqui.

Barnabé: Ir para onde?

João: Venha com a gente...

Barnabé: Mas vocês estão loucos?... Aonde vocês querem me levar?

Jesus: Para longe daqui, vovô, onde não lhe façam mal...

Barnabé: Mas, mas é que não posso fazer isso... Como ir embora e deixar vocês sozinhas?... Está vendo o que eu lhe dizia, mulher, que já não sei o que fazer?... Estes forasteiros me dizem para ir com eles, mas se eu for, quem fará companhia às árvores, heim? Bem, se você quiser que eu vá com eles, eu vou, mulher, mas depois não diga que eu...

Jesus: Vamos, velho, apóie-se em mim... assim, cuidado para não tropeçar... vamos...



E fomos nos afastando da praça por um caminho estreito, ladeado de palmeiras, que saía para fora da cidade. Barnabé se apoiava em seu bastão e não mão larga e calejada de Jesus. Mancava um pouco...



João: O que acontece com seu pé, vovô?

Barnabé: Ah, isso não é nada, vai passar. É que outro dia me queimaram o pé com um tição aceso... “Adivinha quem fez isso?” ... Como se eu pudesse adivinhar, safados!

Jesus: Isso já passou. Eles não voltarão a fazer-lhe nada de mau...

Barnabé: Sim, eles voltarão, voltam sempre e me amarram, e eu não faço nada a eles... então, por que se metem comigo e fazem essas coisas, diga-me?

Jesus: Esquece essa gente, velho, deixe de se preocupar sempre com a mesma coisa...

Barnabé: Para você é fácil dizer isso, rapaz. E minha mulher também sempre diz para esquece-los... Mas eu não posso esquecer, porque... porque eu os odeio, sabe?... Antes, quando enxergava, eu não sabia o que era isso, o ódio... Mas agora eu sei. É como uma coisa aqui dentro que não se arranca com nada... Sim, mulher, é feio dizer essa palavra, mas o que vou fazer se eu sinto isso? Claro, é porque você não passou o que eu passei...!



Continuamos caminhando, afastando-nos cada vez mais da cidade. O sol do meio dia abrasava o caminho e fazia brilhar as folhas das árvores. O cego Barnabé não podia ver aquela luz que nos deslumbrava...



Barnabé: É o que lhe digo, rapazes, os homens são piores que os animais. Porque os animais matam para comer, mas os homens fazem maldades só pelo gosto de faze-las...e ainda por cima, dão risada!... Sabem o que fazem comigo? Cospem em mim... cospem na minha cara... nos olhos... percebem?

Jesus: Escute, velho, espere um momento... Puah!

Barnabé: O que... o que você está fazendo...? Não, não faça isso, rapaz... você não... você não...



Jesus cuspiu em suas mãos e com os dedos molhados de saliva tocou os olhos do cego...



Jesus: Espere, velho... fique quieto... Sabe de uma coisa? Os homens às vezes são maus... Mas Deus sempre é bom...

Barnabé: Escute... escute, o que você está esfregando em meus olhos?

Jesus: Nada, não se preocupe... Vamos, agora abra-os...



Jesus tirou os dedos dos olhos de Barnabé...



Jesus: Pode ver alguma coisa, velho?

Barnabé: Eu... eu... sim, sim!... Estou vendo muitas árvores... E vejo você e seu companheiro... Parecem árvores que caminham...



Jesus se aproximou do cego e lhe pôs outra vez a mão sobre os olhos. Barnabé estava chorando...



Jesus: O que foi, velho? Por que está chorando?

Barnabé: Estou vendo as árvores de novo, meu rapaz... Lá na praça do povoado, as amendoeiras foram meus únicos amigos, sabe?... Elas me deram sombra e, quando chegava seu tempo, me davam seus frutos. Agora voltarei a vê-las. Os homens, não, esses não quero ver...

João: Mas você está vendo a nós...

Barnabé: Vocês... foram meus amigos... como as árvores...



Através de suas lágrimas, Barnabé começou a distinguir o caminho, as pedras, as flores. E lá, ao longe, as silhuetas das casas de Betsaida...



Barnabé: Não quero voltar para lá.

Jesus: Não, não volte a esse povoado. É melhor ir por este caminho. Ao cair da tarde, você chegará a Corozaim. Fique por lá. E não conte a ninguém o que aconteceu. E também nunca faça a ninguém o que você não gostou que lhe fizessem.



Barnabé nos olhou com seus olhos pequenos e enrugados, agora cheios de luz. E coxeando, com seu longo bastão, se pôs em marcha. Como sempre, ia falando sozinho...



Barnabé: Se você tivesse visto, mulher... Era um homem, mas parecia uma árvore... Você podia se apoiar nele e ele lhe dava sombra... Se você tivesse visto, mulher...



E o velho Barnabé foi se afastando até perder-se no horizonte, iluminado pelo grande e vermelho sol da Galiléia...





Betsaida, que significa “casa do pescado”, era uma pequena cidade situada ao norte do lago da Galiléia, Nela nasceram Felipe, Pedro e seu irmão André. O tetrarca Felipe a chamou de Julia, em honra à família imperial romana que tinha esse sobrenome. Hoje não há restos desta cidade. Supõe-se que os aluviões depositados pelo rio Jordão ao desembocar no lago sepultaram a antiga aldeia pesqueira.



A cegueira era uma enfermidade muito comum em Israel no tempo de Jesus. O clima seco e o sol forte influíam nisso. Em geral, a cegueira abundou em todo o mundo antigo, devido também à falta de condições higiênicas e ao desconhecimento de quais eram as causas que originavam a enfermidade.Era tida sempre por incurável e acreditava-se que era um especial castigo de Deus. O cego, por isso e pela invalidez a que o submergia seu mal, era marginalizado.



Nem sempre o enfermo desperta em seus semelhantes compaixão e misericórdia. Em muitas ocasiões é motivo de chacota e é tratado com crueldade. Aquele que não serve, o diferente, o anormal, se transforma muitas vezes em motivo de riso para todos. Acontece na escola onde sempre há uma criança mais débil, ou mais gorda, ou mais feia para que os demais façam chacota dela. É uma reação humana bastante freqüente. Quando Jesus se aproxima de Barnabé e lhe devolve a visão, mostra com este sinal a proximidade de Deus com todos os desditosos e ridicularizados. Deus sente por eles um carinho especial.



Ainda que aplicando normas bem críticas ao ler as histórias de milagres do evangelho – algumas duplicadas, outras excessivamente adornadas, outras com base em relatos similares de outros povos – sempre reste um núcleo absolutamente histórico. Jesus realizou curas que foram assombrosas para seus contemporâneos. Tratou-se fundamentalmente de doenças reais, ainda que relacionadas a situações sociológicas especiais. Entre elas estariam a chamadas expulsões de demônios, loucuras, histerias, epilepsia e as curas de leprosos (na ampla gama de enfermidades que esta palavra abarcava), de paralíticos, de cegos. Essas curas estariam na linha do que hoje com linguagem moderna a medicina chamaria de “terapia de superação”.



Fazer aos demais o que gostaríamos que nos fizessem: esta é a chamada “regra de ouro do evangelho” (Mt 6,12). Com ela, Mateus resume todas as palavras pronunciadas por Jesus no monte das bem-aventuranças. Certamente, é uma conclusão muito prática, pois toda a Lei pode ser condensada no amor – de obras, não de palavras – que tenhamos para com nossos semelhantes.



(Mc 8, 22-26)









































































65

OS CACHORROS ESTRANGEIROS







Naqueles dias subimos ao país de Tiro. Atravessamos as fronteiras de Israel pelo norte, próximo à lagoa de Meron, e entramos nas terras marítimas e cheias de bosques dos sírio-fenícios.



Pedro: É a primeira vez que ponho as patas fora do nosso país.

João: Não é só você, pedrada. É a mesma coisa para todos nós... Ou será que Jesus já esteve no estrangeiro...?

Jesus: Não, nunca estive. Nós, do interior, viajamos pouco.

João: Bem, pois se todos somos novatos no assunto, vamos tomar cuidado. Dizem que por aqui a metade das pessoas é ladra e a outra metade é usurária. Sendo assim, olhos bem abertos!

Jesus: O que dizem, João, é que em matéria de comércio não há quem ganhe desses cananeus.

Felipe: Sim, isto é verdade. Porque eu entendo dessas coisas, eu sei. E se quiserem bons tecidos, aqui tem, vidro de primeira, aqui tem.

Pedro: E se quiserem safados de primeira, também tem, Felipe. O que essa gente vende com uma mão, rouba com a outra... Todos os nossos conhecidos que passaram por este país dizem a mesma coisa...

Jesus: Acho que já estamos bem perto de Tiro... Não será aquilo que se vê lá longe?



Tiro, um dos maiores e mais importantes portos do país dos cananeus, era uma cidade branca, construída sobre as rochas, junto ao mar. Em Tiro vivia Salatiel, um israelita amigo do velho Zebedeu. Ele havia nos convidado a ir até lá...



Jesus: Onde será que fica a casa de Salatiel?

João: O bairro dos israelitas é aqui nas beiradas. Não devemos estar longe...

Jesus: Vamos perguntar a alguém...

Pedro: Se pudermos encontrar sozinhos, é melhor.

Jesus: Por que, Pedro?

Pedro: Não aposto nem um fio de cabelo nesses estrangeiros. Cada macaco no seu galho. O que é nosso, é nosso, o que é deles, é deles.



Pouco tempo depois, o sotaque das pessoas que conversavam pelas ruas nos indicou que estávamos no bairro dos nossos conterrâneos israelitas. Perguntamos a um velho de longas barbas grisalhas pela casa de Salatiel e ele mesmo, mancando e apoiando-se num longo bastão de cedro, nos levou até ela...



Salatiel: Sejam bem vindos, compatriotas. Eu os esperava amanhã, e o velho Joaquim vem me avisar que já chegaram, rá, rá!... Isso sim é que é uma boa surpresa!

Pedro: Saímos um dia antes. As coisas andam bastante ruins lá pela Galiléia.

Salatiel: É mesmo? Herodes anda aprontando as dele, não é? Aqui todo mundo sabe o que acontece por lá... Mas, bem, sentem-se, que agora mesmo trarão vinho, que é o mais importante... Melita, Melita!... Duas jarras de vinho, agora mesmo!... Ah, não se assustem, é vinho da nossa terra. O daqui não vale nada! Água suja tingida de púrpura!... E então, Jesus, Pedro, João... Tinha muita vontade de conhece-los... Chegou até aqui a história de que vocês estão alvoroçando a Galiléia. Quero que depois falem com nossos conterrâneos. Neste país também tem muita coisa para mudar, sim senhor!

Felipe: Esta cidade é muito grande, não é mesmo? Ao chegar atravessamos a praça e não se pode dar um passo...

Salatiel: Vocês chegaram em dia de mercado. Esses cachorros estrangeiros são os maiores camelôs do mundo!...Hoje todos eles vão para a rua e nós ficamos em casa, re, re! Juntos, mas não parceiros!

Jesus: Quantos israelitas vivem por aqui, Salatiel?

Salatiel: Bem, não é difícil saber. Todos nós vivemos neste bairro. Creio que sejamos uns trezentos, sem contar as mulheres e as crianças. É, nos defendemos muito bem, é isso aí. Esses estrangeiros precisam de nós. E trabalho não falta. Os cananeus são muito astutos para os negócios, mas se não fosse por nós, pouco fariam, re, re! Onde um de nós põe a mão, as pedras se transformam em dinheiro, sim senhor!



Salatiel foi nos explicando como era a vida de nossos compatriotas naquele país estrangeiro. Já fazia muitos anos que ele vivia ali com sua família. Era uma espécie de patriarca de seus conterrâneos.



Salatiel: É penoso viver entre pagãos, rapazes. Esses cachorros estrangeiros podem saber muito do comércio de púrpura, mas são ignorantes em todo o resto. Têm um deus em cada bairro, imaginem vocês... Ah, quando alguém vive aqui, longe da pátria, é quando de verdade se agradece a Deus por ter nascido em um país como o nosso. Deus soube escolher bem quando elegeu Israel como sua nação. Bom, porcaria, essa minha língua também merece descanso... Estão com fome?

Pedro: Sim, Salatiel. A última vez que vimos um pedaço de pão, foi quando atravessamos a fronteira....

Salatiel: Pois então vamos comer! Daqui a pouco estará por aqui um bom punhado de conterrâneos para que vocês lhes expliquem o que estão fazendo lá pela Galiléia... Ei, Melita, Melita!

Melita: Pois não, senhor...

Salatiel: Ah, quando penso que uma dessas cananéias dorme debaixo do meu teto, se me remexem as tripas, re, re, mas o que me consola é que esteja sob minhas ordens...

Jesus: Faz muito tempo que ela está com você, Salatiel?

Salatiel: Bah, o marido a abandonou ainda recém-casada e com uma filha faz uns... quatro... cinco anos. Então eu a comprei como criada. Foi um bom negócio, sabem? Custou bem barato... Ah, uma cadela dessas não vale nem o pó das sandálias das nossas mulheres... Já repararam como são feias...? Por mais penduricalhos que se ponham em cima...!



Pouco depois, Melita chegou com uma grande panela de lentilhas e uma travessa de berinjelas e as pôs sobre a mesa. Em seu rosto jovem, da cor das azeitonas, como o dos homens e mulheres sírio-fenícios, já se notavam as rugas deixadas na face pelo pranto e os sofrimentos...



Salatiel: Eia, vamos rezar para que Deus abençoe estes alimentos! “Bendito e louvado sejas, Deus de Israel, tu que colocaste nosso povo acima de todas as nações! Lembre-se, Senhor, dos que vivem fora, no meio dos pagãos que não conhecem teu amor e dos estrangeiros que não respeitam tuas leis, e faze com que voltemos logo a comer o pão em nossa terra”.

Todos: Amém, amém!

Salatiel: Ao ataque, rapazes, que na fonte não ficarão nem os talos dessas berinjelas!



Quando já estávamos terminando de comer...



Salatiel: Ah, com vocês aqui, à minha mesa, parece-me que estou junto ao meu querido lago da Galilléia... Mas eu não perco a esperança, não senhor: um dia desses, sacudo as sandálias no nariz desses pagãos e volto para lá!... “Laralá... Galiléia, minha terra querida...”

Todos: Muito bem, muito bem!

Salatiel: Ah, caramba, quanta saudade...!

Melita: Senhor, não mais querrer...?

Felipe: Como disse...?

Melita: Não mais querrer...?

Felipe: Escute, Salatiel, que diabos esta mulher está me perguntando? Não estou entendendo nada!

Salatiel: O que acontece agora, Melita?

Melita: Não mais querrer, senhor?

Salatiel: O que queremos é que você saia daqui e nos deixe tranqüilos. Vai, bobona, para a cozinha, que é o seu lugar.

Melita: E o vinho, senhor... ponho aquilo?

Salatiel: Rá, rá... Sim, ponha ali... Rá... rá! Vocês ouviram? Não sabem nem falar! Rá, rá, rá!... Vejam só, vejam só... Melita, diga a esses amigos o que você joga na sopa para que ela fique saborosa...

Melita: Senhor, jogo sarsenha...

Salatiel: Sarsenha... sarsenha... Cinco anos e ainda não aprender a falar salsinha!... Rá, rá... Vejam só, porque não lhes diz também como você chama as flores que mandei semear ali fora, no jardim...

Melita: Senhor, são lirrios e margarridas...

Salatiel: Rá, rá! Ai, ai, acho que vou estourar de tanto rir...! E olhem que eu a ensinei falar direitinho, e nada!... Rá, rá, rá...! Puxa vida... Olhe, Melita, você está vendo este barbudo na sua frente? É um médico famoso, um curandeiro... Peça que ele faça alguma coisa por sua “fila”... Rá, rá rá...! Vamos lá, mulher, peça, peça...

Melita: Você é médico, senhor?



Melita, a empregada Cananéia, olhou Jesus com um brilho de esperança em seus olhos negros e fundos...



Salatiel: Esta infeliz só faz chorar por causa da sua filha... por causa de sua “fila”, como ela diz... Rá, rá rá...! Lacrimejando o dia todo... Essa menina nasceu doente e nem os médicos nem as suas lágrimas vão cura-la! Meta isso na cabeça e entenda de uma vez, Melita!

Melita: Você é médico, forrasteirro?

Salatiel: Rá, rá, rá...!  É, ele é currandeirro, sim!... É que me dá vontade de rir, ouvir esses cananeus falarem!

Melita: Forrasteirro, você pode ajudar minha fila?

Salatiel: Já, já veremos isso...! Agora vai, Melita, cuidar de seus afazeres, que eu chamarei se precisarmos de alguma coisa...

Melita: Ajude-a, forrasteirro...!

Salatiel: Mas que mulher mais abusada! Estou mandando você ir. Você com seu fogão, nós com nossas lentilhas!



Mas Melita não ia embora. Esfregando as mãos no sujo avental e com os olhos chorosos, aproximou-se ainda mais de Jesus...



Melita: Minha fila está doente, ajude minha fila...! Cure-a, você é um grande profeta!

Salatiel: E o que sabe você deste homem?... Claro, no mínimo estava escutando por trás da porta. Como sempre! Mexericar e meter o bedelho em tudo, é só isso que você sabe fazer!

Jesus: Espere, Salatiel, deixe que ela...

Salatiel: Não, Jesus, minha paciência já se esgotou...Puff, é isso que acontece por dar confiança... Você dá um dedo e lhe tomam a mão... Pedro, João, Felipe... desculpem por isso tudo... Vamos, saia logo daqui, vai chorar lá na cozinha...



Então Melita se atirou soluçando aos pés de Jesus...



Salatiel: Mas, o que é isso? Onde já se viu tanto descaramento? Jesus, espante essa cadela daqui!... Não perca seu tempo com ela... vamos, vamos...

Melita: Ajude minha fila, ajude-a!!



Jesus cravou seu olhar em Salatiel, o israelita, e sorriu com ironia...



Jesus: Mulher, como posso ajuda-la?... Não posso perder meu tempo dando aos cães o pão dos filhos...

Melita: Está certo, forrasteirro... mas, veja, os cães também comem as migalhas de pão que caem da mesa dos senhores...



Melita, com a cabeça baixa, como um cachorro espancado, continuava no chão...



Jesus: Levante-se, mulher. Ninguém deve ficar aos pés de ninguém... Levante-se e vai tranqüila... Sua filha ficará boa, eu lhe garanto...



Quando Melita saiu à procura de sua filha, Jesus se voltou para Salatiel, o velho patriarca do bairro judeu de Tiro...



Jesus: Você nasceu em Israel, mamou ali a história de amor de nosso Deus... mas não entendeu nada. Para Deus não há fronteiras. Ele rompe as fronteiras entre os povos, como palha seca... Para Deus esta não é terra de cachorros, mas terra de homens. De homens e mulheres como todos os demais. Porque na casa de Deus ninguém é estrangeiro.



Dois dias depois, regressamos a Israel, nossa pátria, pelo caminho dos fenícios. E ao cruzar a fronteira, quase nem nos demos conta, porque a terra tinha a mesma cor, nas árvores brotavam as mesmas folhas e os pássaros, de um lado e outro cantavam igual.







A província romana da Síria era o território estrangeiro em que vivia maior número de israelitas. Entre a Síria e a Palestina existiam, por isso, muitíssimos contatos. Havia ainda mais com a província do norte da Palestina, a Galiléia, com quem a Síria fazia fronteira. Dentro do território da Síria estavam Tiro e Sidon, cidades importantes dos fenícios, grandes navegantes e comerciantes do mundo antigo. As ruínas do que foram Tiro e Sidon, correspondem hoje ao território do Líbano, ao norte de Israel.



Tiro era uma cidade importante nos tempos evangélicos. E o foi durante séculos. Tinha dois portos de ativo comércio com outros países do Mediterrâneo e também indústrias de metais, tecidos, corantes (especialmente, púrpura) e cristal. Uma grande colônia israelita havia se estabelecido ali. Como os judeus sempre foram muito hábeis no comércio, conseguiram prosperar rapidamente, mas como povo nacionalista – e às vezes racista – não se misturaram com os habitantes de Tiro. No evangelho, eles são chamados de sírio-fenícios ou cananeus.



Somente nesta passagem nos conta o evangelho que Jesus saiu de sua pátria para um país estrangeiro. E foi somente com esta mulher cananéia e com um centurião romano que tinha um criado doente que Jesus realizou um sinal do reino de Deus em forma de cura para pessoas não israelitas. A atividade de Jesus, certamente, não transcendeu as fronteiras geográficas de Israel. Apenas não teve tempo para faze-lo. No entanto, com sua mensagem, com suas palavras, Jesus rechaçou absolutamente o nacionalismo que caracterizava seus compatriotas. Isto foi uma novidade e, ao mesmo tempo, um escândalo para eles. Os grupos fariseus, os monges essênios e o povo em geral, excluíam os estrangeiros do reino de Deus que esperavam. E acreditavam que Deus também os excluiria. Jesus rompeu totalmente com esta arraigada tradição nacionalista.



Em nosso tempo também existem nações que se sentem superiores a outras e por isso se arrogam o direito de domina-las. Igualmente há raças que se sentem mais inteligentes, mais capazes que as demais. E, em nome desta suposta superioridade colonizam, ditam leis, excluem, perseguem e matam. Essas nefastas ideologias produziram na América Latina matanças massivas de indígenas das mais variadas culturas. E depois, escravidão de homens e mulheres da raça africana, arrancando-os violentamente de seus países. A América Latina indígena (mais de 15% da população) é formada pelos sobreviventes desse crime histórico. Os 30 milhões de negros que vivem nesses países são os filhos e netos daqueles escravos que foram trazidos ao continente como animais por homens brancos que se criam no direito ou mesmo no dever de escraviza-los. Ao fazer isso tudo invocaram a Deus, como ainda hoje o continuam a invocar para justificar racismos e discriminações de todo tipo. A ciência demonstrou abundantemente a absoluta falsidade que existe no pensamento racista que afirma que umas raças são superiores a outras. Biologicamente, cada agrupamento humano tem diferentes características físicas e psíquicas, nem melhores, nem piores que os demais, tão valiosos uns como os outros. E, sobretudo, historicamente, as raças e povos tiveram oportunidades muito desiguais para desenvolverem seus próprios valores e expressa-los. Ao nível racial é fácil descobrir o esquema de opressores e oprimidos. E o mais terrível de tudo é que do lado dos opressores estão majoritariamente as nações de mais longa tradição cristã. Todo o evangelho rechaça o nacionalismo e o racismo. E o cristianismo mais original combate qualquer forma de discriminação: já não há judeu nem pagão, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher... (Gal 3, 28). Tampouco branco ou negro, índio ou latino, mulato ou mestiço... Todos são iguais perante Deus. Todos somos seus filhos. Jesus usa da ironia com a mulher sírio-fenícia. E lhe diz que “não se deve jogar pão aos cães”. Faz isso para  realçar diante de Salatiel sua falta de compaixão e sua arrogância nacionalista. “Cachorro” é usado como insulto tanto na língua aramaica como na árabe. O cachorro era considerado um animal desprezível e impuro, por andar errante e comer carniça ou carne de animais não puros.



No cristianismo não se pode falar de fronteiras que separem os povos. O nacionalismo mal entendido não é mais que uma expressão coletiva de egoísmo e orgulho. Respeitando a cultura de cada povo, sua história, suas peculiaridades, o cristão deve ser, como às vezes se diz, um “cidadão do mundo”, um “internacionalista”, sensível à dor e às alegrias dos homens de qualquer  país, solidário com as lutas e realizações justas de todos os povos. No mundo em que vivemos, no qual a sorte de uma nação já não pode se separar da de seus vizinhos, para o bem ou para o mal, isto não é só um ideal teológico, mas uma evidência histórica. Neste episódio, o milagre de Jesus para a filha da mulher estrangeira é um sinal de que para Deus não há nem fronteiras nem raças. Ele convoca seu povo, dos quatro cantos da terra, e o único sinal que distinguirá os cidadãos desse povo é a liberdade, a vida e a justiça que escolhem os que o formam.



(Mt 15, 21-28; Mc 7, 24-30)



































66

PELO PODER DE BELZEBU







Depois de passarmos pelas cidades fenícias de Tiro e Sidon, demos uma volta por diversos povoados da Decápolis e chegamos novamente ao lago da Galiléia. Lembro-me que estávamos chegando a Corozaim quando nos deparamos com um tumulto de camponeses que corriam e gritavam furiosos... Diante de todos, à pouca distância, ia mancando e dando tropeções um homem baixinho e sujo, com uma túnica feita de retalhos. Atrás dele, encurralando-o como a um animal, corriam os homens com rastelos e pedras nas mãos...



Um morador: Suma daqui, Satanás...! suma, suma!

Uma moradora: Para o deserto! Os demônios para o deserto! Fora daqui!

Outro morador: És tu, Belzebu! És tu, Belzebu! És tu, Belzebu!



Uma pedra voou sobre nossas cabeças e acertou em cheio na nuca daquele infeliz. O homem caiu no chão contorcendo-se de dor. Dali a pouco não mais se mexeu.



Um morador: Anátema contra Serápio, anátema contra ele!

Uma moradora: Não se aproximem demais, esse homem tem o demônio dentro!

Morador: Anátema contra Serápio!



Jesus e eu fomos abrindo caminho por entre a multidão enfurecida e conseguimos ver o tal Serápio que choramingava no chão, com a cabeça entre as mãos e tremendo de medo...



Outro morador: Chamem o fariseu! Chamem o fariseu!

Fariseu: Aqui estou eu, caramba! E deixem-me passar, seus bagunceiros!



Um ancião alto, com o manto das orações sobre os ombros, apareceu no meio de todos...



Uma moradora: Reze o exorcismo, fariseu!

Morador: Um salmo especial para esse amaldiçoado!

Jesus: Ei, você, que confusão é esta aqui? Quem é esse homem?

Morador: Um endemoniado. Não está vendo?

Jesus: E o que lhe aconteceu?

Uma moradora: E o que deveria ter acontecido? O demônio entrou dentro dele! Como quem engole uma mosca, assim ele engoliu o próprio Satanás!

Morador: Esse grande desgraçado andou uma semana escondido e não sabíamos onde ele estava! Mas o velho Cleto o encontrou esta manhã. E sabe onde? Ali, dentro do poço, como uma ratazana metida no esgoto, emporcalhando a água que todos nós bebemos!

Moradora: Maldição, se não fosse o Cleto...! Ele o arrancou dali com uma corda!

Outro morador: Reze a oração, fariseu, de pressa, que esse sujeito é perigoso. Está endemoniado!

Jesus: E vocês têm certeza de que está endemoniado?...

Moradora: Claro que sim. Olhe você mesmo, é um demônio tão forte que não o deixa nem ouvir nem falar. Ele amarrou sua língua e tapou suas orelhas.



O fariseu já estava preparado e nos mandou ficar calados...



Fariseu: Silêncio, todos, para que Deus possa ouvir o que lhe pedimos! E se alguém vir o demônio sair deste homem, atire-se logo no chão para que não entre nesse alguém, e tenhamos um mal sobre o outro...



Todos nos pusemos nas pontas dos pés para ver melhor aquele infeliz Serápio que continuava acocorado no chão. Então o fariseu levantou as duas mãos e começou a oração para expulsar o demônio surdo e mudo.



Fariseu: Afaste-se deste homem, Satanás! Suma, suma daqui, saia do corpo de Serápio!... Eu lhe mando, por ordem de Deus.... Satanás, Serpente suja, Maligno de cascos partidos, Besta dos sete chifres, saia fora!... Afaste-se, Asqueroso, afaste-se, Lúcifer, saia, saia deste homem, Diabo impuro, Diabo surdo, Diabo mudo!... Belzebu!... Dominador do homem, Tentador da mulher, suma daqui, afunde-se no mar, queime-se no fogo, volte aos infernos!... Este homem não se mexe... Nem escuta nem fala. Está com o diabo metido no tutano! Mas eu vou tira-lo dali, sim senhor, eu tirarei o demônio de qualquer jeito!

Uma moradora: Ei, fariseu, porque não experimenta com a lamparina? Dizem que o demônio é como o escorpião, que se crava o próprio veneno quando sente o fogo perto dele.

Fariseu: Sim, vamos experimentar com fogo. Vocês quatro, agarrem-no bem pelos pés e mãos. Bem forte, para que não bata em ninguém. E tragam-me uma tocha... Vamos esquentar um pouco os pés dele, para ver se fala. O demônio mudo foge diante da chama...



O fariseu pegou a tocha ardendo e a aproximou diante da planta dos pés de Serápio, que nos olhava aterrorizado...



Serápio: Aaaagg...! Aaaagg...!



Deu para sentir no ar o cheiro de carne chamuscada. O surdo-mudo se retorcia sem poder escapar dos quatro forçudos que o sujeitavam no chão...



Serápio: Aaaagg...! Aaaagg...!

Fariseu: É um demônio muito poderoso. Mais poderoso que a chama... Amarrou a língua dele com quatro nós. Mas, não se preocupem, agora vamos destapar suas orelhas. A um demônio surdo se afugenta com água fervendo. Vamos lá, tragam-me um jarro para desentupir os ouvidos deste desgraçado...! Vocês, agarrem-no bem, e virem o rosto!...



O fariseu derramou água fervendo nos ouvidos de Serápio que se debatia enlouquecido...



Serápio: Aaaagg...! Aaaagg...!

Fariseu: Está me ouvindo?... Está me ouvindo?... Não está ouvindo nada, maldito?

Uma moradora: Pois eu estou achando, fariseu, que são sete demônios em vez de um e é por isso que os ouvidos não se abrem...

Fariseu: Esperem, vamos experimentar com as agulhas. Com essas mesmas agulhas, meu pai tirou não sete, mas setenta demônios do corpo de uma bruxa! Estes espetões na virilha não há diabo que agüente!...Agarrem-no bem...!



Jesus, que estava ao meu lado, perdeu a paciência e se lançou sobre o fariseu...



Jesus: Já chega, por Deus, já chega!... O que é que vocês querem? Mata-lo?

Fariseu: Este homem está endemoniado. É preciso tirar o demônio do corpo dele.

Jesus: Do jeito que vai, vão arrancar-lhe a alma. Deixem-no tranqüilo, caramba! Não vêem que é um pobre infeliz?

Fariseu: Um infeliz? Rá! Bem se vê que não o conhece! Tem o demônio surdo e, por cima, o demônio mudo. Você acha que é pouco? Não pude arranca-los nem com fogo, nem com água fervendo.

Jesus: Não me estranha que não tenha conseguido.

Fariseu: Por que diz isso?

Jesus: Você não se lembra do que o profeta Elias aprendeu lá na caverna do Sinai? Que Deus não estava nem no fogo nem no furacão, mas na brisa suave...

Fariseu: O que você quer dizer com isso...?

Jesus: Que este homem não precisa de uma tocha ardente, mas sim do calor de uma mão que o ajude. Não precisa de água fervendo. Basta um pouco de saliva...

Fariseu: Espere ai, forasteiro, o que vai fazer?... Espere...!



Mas Jesus já se havia inclinado sobre o surdo-mudo que continuava no chão, boca para cima, com a respiração entrecortada e um esgar de terror no rosto...



Serápio: Ahh... Ahh... Ai...

Jesus: Não tenha medo, não vou lhe fazer mal, irmão...



Jesus molhou os dedos com saliva... Em seguida, tocou a língua e os ouvidos de Sarápio e soprou sobre sua fronte com suavidade...



Jesus: Abre-te... Está vendo o que eu dizia, fariseu? O Espírito de Deus é como uma brisa leve... Este homem já está curado...

Fariseu: Mas, que artimanhas você utilizou? Vê lá se está curado! A única pessoa que entende de exorcismos sou eu, está entendendo? E este desgraçado tem pelo menos sete demônios dentro a lhe amarrarem a língua e taparem os ouvidos...

Serápio: Você... você... os sete demônios você...!



Quando Serápio, estendido no chão disse aquelas palavras, nos alvoroçamos mais. Uns subiam nas costas dos outros e todos queriam ver de perto aquele que havia sido surdo-mudo... Os homens mais fortes ameaçaram com os rastelos e conseguiram um pouco de ordem... Então o fariseu tomou a palavra...



Fariseu: Moradores de Corozaim, como vocês estão vendo, Satanás sempre apronta das suas. Queríamos nos livrar deste demônio surdo-mudo e acabou aparecendo outro demônio maior. Este forasteiro que ungiu com saliva está mais endemoniado que Serápio!

Uma moradora: Por que está dizendo isso, fariseu?

Fariseu: Por que estou dizendo? Porque só um prego tira outro prego. Se ele tirou o demônio deste infeliz, só pode tê-lo  feito com o poder do próprio Belzebu!

Outra moradora: Mas, como isso pode ser possível, fariseu? Se Belzebu expulsa Belzebu, então o demônio enlouqueceu, porque está brigando contra si mesmo, não acha?

Fariseu: Cale-se, você também deve estar endemoniada!... Vizinhos, este forasteiro que está diante de vocês expulsou o demônio com o poder do próprio demônio. Vamos, vamos, juntem pedras para atirar nele... Não me ouviram? Este homem está possuído pelo diabo!



Mas os camponeses de Corozaim não se agacharam para juntar pedras nem empunharam seus rastelos contra Jesus...



Fariseu: Eu digo e repito que o mesmíssimo Belzebu chegou à nossa cidade! Ele está diante de vocês!

Moradora: Pois eu não sabia que o demônio era um moço tão bonito!

Fariseu: Ah, então é assim? Não querem me obedecer? Vou agora mesmo informar o rabino chefe Josafá que todos vocês foram contagiados pelo demônio da rebeldia. Todos vocês estão sob o poder de Satanás. Estão todos possuídos pelo Maligno!



O fariseu, indignado, sacudiu o pó da túnica, deu meia volta e se foi... As pessoas estavam impacientes pelas palavras de Jesus.



Jesus: Não, amigos, não foi Belzebu que chegou. O Reino de Deus é que chegou. E quando chega o Reino de Deus, o demônio está vencido, não pode fazer nada! Não há porque ter medo de nenhum demônio!

Uma velha: Não diga isso, meu rapaz! Ninguém ganha do demônio porque ele tem costas largas, larguíssimas, com quarenta pés de largura. Dizem até que quando Deus o tranca na cadeia, ele pega o rabo e abre o cadeado com a ponta. O demônio sempre anda à solta!

Jesus: Penso que não, vovó, não mesmo. O demônio está bem amarrado. Deus já lhe cortou o rabo. O único que tem poder é Deus. O demônio não pula no cangote de ninguém, nem entra no corpo de ninguém. Não tenham medo. O Espírito de Deus é o único que entra na nossa alma. Entra e sai e tem as chaves. E como ele é o mais forte, o demônio não pode fazer nada.

Um morador: Veja só, forasteiro, o que acontece por aqui é que o fariseu Isaac passou a vida inteira caçando bruxas e perseguindo demônios. Eu bem que disse para ele outro dia, quando começou essa coisa com o Serápio. Eu disse: você tem mais fé no demônio do que em Deus. Porque de Deus você nunca fala, mas está sempre falando e falando de Satanás e do seu inferno.

Velha: Pois muito bem feito para você! Rá! É isso que o demônio está querendo, meu filho, que não falem dele para que continue aprontando as suas... Ah, eu bem que o conheço!

Jesus: Não me diga, vovó, que você já viu o rabo do diabo... Você o viu?

Velha: Bem, ver mesmo assim, eu não vi, mas...

Uma moradora: E você forasteiro, que vem de tão longe, nunca viu o diabo?



Jesus ficou um momento pensativo, cofiando a barba...



Jesus: Pois, de verdade, não. Nunca vi o diabo. O que eu tenho visto são muitas diabruras. Sim. Em Corozaim e em todos os povoados... Por isso eu digo que o diabo não deve ter muita coisa a fazer por aqui. Acho mesmo que ele anda de braços cruzados... Nós, com nossas maldades, fazemos todo o trabalho para ele... Você não acha, Serápio?

Serápio: Sim, sim...! Vocês me queimaram... vocês me atiraram pedras... vocês, os demônios... vocês!



E Serápio, o que havia sido surdo-mudo, apontava com o dedo todos os seus vizinhos que o haviam maltratado tanto... E com sua língua recém estreada, continuava repetindo sua acusação...



Serápio: Vocês, os demônios... vocês!







Os surdo-mudos deveriam ser abundantes em Israel, já que o livro do Levítico dá uma lei especial para esses doentes. É proibido lançar contra eles uma maldição; como não ouvem, ficariam sem defesa diante dela (Lv. 19,14). Como acontecia com muitas outras enfermidades, esta era atribuída ao demônio e a espíritos malignos. Acreditava-se que nos tempos messiânicos os ouvidos tapados se abririam e as línguas mudas se desatariam (Is 32, 1-4).



Todas as enfermidades diante das quais o homem se sentia especialmente impotente, aumentavam a crença no poder dos demônios. Para enfrentar estes espíritos, faziam-se exorcismos – orações, gestos, invocações – com os quais se conjurava o diabo a sair do corpo do enfermo. Muitas vezes, esses exorcismos eram cruéis, pois como se pensava que se estava lutando diretamente com o diabo, usavam-se métodos de grande violência. Na atualidade, muitas pessoas ainda atribuem ao diabo a conduta estranha de algumas pessoas. E também hoje continua-se a fazer exorcismos aparatosos, espetaculares, com a finalidade de ganhar a batalha contra o diabo. Esta mentalidade deve ser superada, e o evangelho de Jesus é uma ajuda para libertar-se dessas crenças.



No evangelho se fala de Satanás (Satan = o adversário), um dos nomes do diabo, a quem também se chama de Lúcifer, Belzebu... Mas os evangelistas usam dele precisamente quando se quer realçar fatos negativos que não podem ser queridos por Deus, mas que, tampouco, sabem bem como explicar. Ao escrever sobre o poder dos demônios, apresentam-se como homens daquela época – com todas as limitações que se tinha então em tantos campos do saber - , manifestando seu desconcerto, sua desorientação. Em seus textos, no entanto, tentam se expressar, vez por outra, usando uma linguagem simbólica, o que para eles é decisivo: Jesus tem todo o poder sobre o diabo e sua confiança ilimitada em Deus o fez ocupar-se muito pouco em combatê-lo. O evangelho vem libertar-nos do temor do demônio, desta falsa idéia, arraigada em tantas pessoas, de que há dois deuses: um bom – Deus – e outro mau – o Diabo - , com poderes parecidos, embora com intenções opostas. Toda a vida de Jesus é a alegre proclamação de que o único Deus é Pai e nos ama.



A “fé” tradicional no demônio tem sido nefasta. Semeou no coração do homem o terror, nos fez acreditar que somos um joguete que os anjos maus e bons disputam entre si, até que ganhe o mais forte. É fácil lançar sobre o diabo a culpa do mal. Daquele que nós mesmos provocamos – porque queremos – e que abunda no mundo, na forma das injustiças. Neste sentido, a fé no diabo é absolutamente contrária à mensagem de Jesus, que é palavra de libertação, que reafirma a bondade de Deus que envolve o homem e a história e que exige de cada um a tomada de consciência da responsabilidade de seus atos.



Outros horríveis frutos da “fé” no diabo foram as perseguições contra os endemoniados e bruxas. A caça e a queima de bruxas é um dos capítulos mais tenebrosos da Igreja européia. Desde o século XI até o XVI essas perseguições se espalharam como uma peste por todas as regiões das Europa e calcula-se que houve milhões de vítimas. A maioria eram pobres mulheres camponesas, seja porque eram as mais feias, ou por serem as mais bonitas, ou porque eram muito alegres ou por serem muito silenciosas, eram acusadas de estarem possuídas pelo demônio, torturadas e queimadas. Se, a bem da verdade, como disse Jesus, “pelos frutos se conhece a árvore”, a árvore da fé no diabo deu na história frutos tão podres e amargos, que só por isso merece ser arrancado pela raiz.



Jesus foi acusado de estar endemoniado, precisamente pela enorme liberdade que mostrava diante destas e outras falsas crenças e por sua oposição aos sacerdotes e demais autoridades que escravizavam o povo com elas. Os poderosos deste mundo  sempre transformam em inimigos aqueles que os denunciam como autênticos demônios. Quantas calúnias e suspeitas se acumulam sobre aqueles que lutam por um mundo diferente e melhor, apresentando-os como os próprios agentes das forças do mal. O mecanismo desta difamação sistemática é o mesmo que se usou contra Jesus. Um mecanismo que não pretende outra coisa que encobrir a verdade. O “demônio” está em outro lugar. O homem não-solidário, o homem cruel, o sanguinário e o injusto: esses são os demônios, ou na melhor das hipóteses, seus melhores cúmplices. É muito fácil recorrer ao diabo para explicar o mal deste mundo, havendo tantos e tantos homens injustos, criminosos e inimigos da vida.



(Mt 12, 22-29; Mc 3,20-26; Lc 11, 14-23)





















67

O BASTÃO DO MESSIAS







Por aqueles dias, viajamos para o Norte, para a região montanhosa de Cesaréia de Felipe, nas nascentes do Jordão. Os moradores que viviam por lá queriam ouvir falar do Reino de Deus que traz justiça e paz para a terra.



Jesus: ... E se seu filho lhe pede pão, você vai lhe dar uma pedra? É claro que não!... E se ele lhe pede um peixe, você vai lhe dar uma cobra? De jeito nenhum, porque ele é seu filho! Pois é bem isso que anunciamos, que Deus é nosso Pai e nos ama. E nós, seus filhos e filhas, lhe pedimos que nos dê uma mãozinha! E Deus não nos vai falhar!



Jesus, como sempre, logo ganhava a atenção das pessoas. Emendava uma história com outra e o povo de Cesaréia não se cansava de ouvi-lo...



Jesus: Amigos, o Reino de Deus já está chegando! Já está chegando a libertação! O Messias está à porta. E quando ele vier, trará em uma das mãos a balança para fazer justiça e na outra um bastão para governar sem privilégios.

Um homem: Muito bem falado! Que viva o Reino de Deus!

Uma mulher: E que nós o vejamos depressa!



Então, entre os aplausos e gritos das pessoas, apareceu um homem imenso, com a pele muito queimada pelo sol e uma barba longa, longuíssima, como a dos antigos patriarcas. Foi abrindo caminho entre todos e se aproximou de Jesus. Era um velho beduíno das estepes de Galaad...



Melquíades: Não fale mais, irmão. Já é suficiente... Sou Melquíades, pastor de ovelhas, neto de Ianodab, da tribo dos recabitas, todos pastores de ovelhas, como Deus nos mandou. Atravessando o deserto aprendemos a ler o céu e também os olhos dos homens. Você tem olhos negros como a noite e brilhantes como as estrelas. Sei olhar neles...



O velho beduíno se aproximou de Jesus e colocou uma mão sobre seu ombro...



Melquíades: Escute, irmão. Nossas tribos andam dispersas já faz muito tempo, muitos anos, muitas gerações de anos... Andamos como ovelhas sem pastor. Obrigado por ter vindo. Tome, isto é para você.



Melquíades, o recabita, levantou em sua mão direita um longo e nodoso bastão de oliveira...



Melquíades: Com este bastão pastoreei meu rebanho desde que era jovem. Com ele espantei os lobos e encaminhei minhas ovelhas pelas estepes. Era do meu avô. Olhe-o: é um cajado de pastor, como o que tinha Davi em suas mãos quando o velho Samuel o foi procurar e o pôs à frente de seu povo.

Jesus: E o que você quer que eu faça com este bastão...?

Melquíades: É seu. Pastoreie seu povo. Você é o homem que precisamos para que as coisas mudem.

Jesus: Mas o que você está dizendo, vovô...? Eu...

Melquíades: Tome o bastão. E aperte-o forte entre suas mãos para que o calor de seu sangue dê vida aos nervos mortos da madeira.



E o velho beduíno entregou a Jesus aquele bastão gasto e amarelo como um osso seco...



Jesus: Mas, vovô, eu...

Um homem: Muito bem, Melquíades. Bem falado e bem feito!

Uma mulher: Estamos com você, Jesus! Conte conosco!

Homem: E conosco também!



Nesta noite, os treze do grupo ficamos conversando até muito tarde. O céu logo se cobriu de estrelas. Ao fundo, iluminado por uma débil luz da lua, descansava o monte Hermon. Suas encostas nevadas já começavam a derreter com a primavera...



Jesus: Esse pastor recabita está maluco!

Pedro: O maluco é você, Jesus, se não aproveitar o momento. O povo está entusiasmado com você!

Jesus: Pedro, o povo está entusiasmado com o Reino de Deus.

Tiago: E com você, moreno, com você!

Jesus: Mas, Tiago, escute...

Tiago: Nada disso, Jesus, não queria tapar o sol com a peneira. Você tem o povo nas mãos, igual a esse bastão. A uma ordem sua, todos se porão em marcha.



Jesus fazia rabiscos na terra com o cajado longo e nodoso que o velho Melquíades lhe havia presenteado naquela tarde...



André: As pessoas esperam muito de você, Jesus. Não as decepcione.

Jesus: E o que é que as pessoas esperam de mim, André?

André: O que esperam? Muito. Que você continue abrindo os olhos delas, que você se ponha à sua frente para que este país se endireite e que se acabem de uma vez tantos abusos e possamos viver em paz... É isso que elas esperam.

Jesus: Mas, vocês estão loucos? Quem eles acham que eu sou?

Judas: Eles o têm como a um profeta, Jesus.

Felipe: Sabe o que uma mulher disse hoje? Que quando ela o olhava assim, meio de lado, se recordava muito de João o batizador. Que ela apostava cinco contra um que o profeta João havia ressuscitado e se colado a você pelo cabelo.

Tomé: Isso é uma pi-pi-piada. Vão lhe cor-cor-cortar a cabeça de novo!

André: Não, não, o que eu ouvi foi outra coisa. Dizem que o profeta Elias desceu do carro e lhe emprestou o chicote com que fustiga seus cavalos de fogo. Que sua língua tem o mesmo estalido que a do profeta do Carmelo!

Jesus: Bah, bobagens das pessoas...

Judas: Outro dia me perguntaram se você tinha mulher... E eu lhes disse que não.

Jesus: E para que queriam saber isso?

Judas: Bem, porque o profeta Jeremias também não se casou. Dizem que você se parece muito com ele.

Jesus: Sim, claro. E também me pareço com o profeta Amós porque sou camponês. E com o profeta Oséias, porque sou do Norte. E daqui a pouco vão dizer que uma baleia me engoliu e me vomitou como ao profeta Jonas. E não sei de onde as pessoas inventam tantas coisas...

Tiago: Não são as pessoas, Jesus, não são as pessoas...

Jesus: Ah, não? Quem é então?... Não vão me dizer que vocês também...

Pedro: Veja só, moreno. Já faz um bom tempo que estamos juntos... Muitos meses... Formamos um grupo... Podemos falar com confiança, não é mesmo?

Jesus: Claro que sim, Pedro, para isso somos amigos... O que acontece?

André: Jesus, você tem feito cada coisa diante de nós que... a bem da verdade... Bem, sem querer ir longe demais, aquela história do surdo-mudo de outro dia, lá em Corozaim.

Tiago: E aquela menina, filha de Jairo... estava morta, eu vi...

Felipe: E o empregado do capitão romano.

André: E Floro, o paralítico. E Caleb, o leproso. E o louco Trifon. E a ...

Jesus: Está bem, está bem... E daí? Deus é o único que tem o poder para curar. Deus toma minhas mãos, ou as suas ou as de quem quer que seja e faz o que bem entende. Há muita gente que faz coisas maiores ainda...

Judas: Mas... não é somente isso, Jesus. É... é sua maneira de falar. Reconheça: suas palavras são como as pedras que Davi lançava com sua funda.

Pedro: Você cheira a profeta, moreno. E nem com sabão se consegue tirar esse cheiro.

André: Você sabe como falar ao povo. As pessoas o escutam e o levam a sério...

Jesus: As pessoas, as pessoas!... Hoje dizem branco e amanhã, preto. Vocês... o que dizem vocês?... Estamos os treze reunidos agora. Falemos claramente então. O que vocês esperam de mim?

Pedro: O mesmo que todos esperam, Jesus. Que você levante o bastão e se ponha à frente do povo!

Jesus: Você não sabe o que diz, Pedro. Quem sou eu para fazer isso, hein? Quem sou eu?

Pedro: Você? Você é o Libertador que Israel espera!

Jesus: Pedro, Pedro, você está ficando louco? Como pode dizer isso?

Pedro: Eu digo porque acredito, caramba! E minha língua fica coçando para dizer isso. Já disse isso à Rufina e à minha sogra. E elas duas me disseram que pensam a mesma coisa.

Jesus: Pedro, Pedro, por favor...

Pedro: Sim, Jesus. Você se lembra daquela noite? Eu vi com toda a clareza.. Olhe, íamos na barca, na minha. De repente, começaram os raios e o vento do Grande Mar. Uma tormenta horrível. E você apareceu caminhando sobre as ondas. E o vento se acalmou. E você me deu a mão e eu também caminhei sobre o lado, não compreende?

Jesus: Sim, sim, compreendo. Continue sonhando com água, que um dia você amanhece afogado...

Pedro: Você é o Messias, Jesus. Você libertará nosso povo!



Quando Pedro disse aquelas palavras, fez-se um grande silêncio entre nós. Esperávamos a resposta de Jesus. Tínhamos os olhos cravados nele que agora apertava nervosamente o bastão do velho beduíno...



Tomé: Não se pr-pr-preocupe, moreno... Nós o apo-po-poiaremos.

Judas: Conte conosco. Foi para isso que formamos esse grupo, não é?

André: Decida-se, Jesus. Se a coisa vem de Deus, não poderá escapar dele.

Pedro: Não são as pessoas, nem nós. É Deus que lhe deu o bastão de mando.



Jesus foi nos olhando um a um, lentamente, como que pedindo licença para dizer aquelas palavras que lhe subiam pela garganta...



Jesus: Sim, é verdade. Aos homens a gente pode enganar, mas a Deus não. Faz dias e noites que isso que vocês acabaram de dizer fica dando voltas na minha cabeça. Desde que o profeta João morreu, senti que alguma coisa havia mudado. Como se Deus me dissesse: sua hora chegou, o caminho está pronto.

Pedro: Mas dizem que Deus não dá a um burro mais carga do que ele pode carregar. Vamos lá, moreno, tenha confiança! Deus não lhe faltará!

Judas: E nós, muito menos!

Tiago: Você não ouviu o que o velho Melquíades disse? Aperte o bastão e levante-o!... Com você iremos pra frente!



Então Jesus levantou o longo e nodoso cajado do recabita, o agarrou com as duas mãos... e, de um golpe só, o partiu ao meio.



Felipe: Ei, moreno, o que acontece? Por que você fez isso?

Jesus: Porque... porque perseguiram Elias, Jeremias foi atirado num buraco e a João cortaram a cabeça... Olhem todos... O bastão de mando está quebrado: assim acabam os profetas, partidos. Assim acabará também o Messias.

Pedro: Não fale assim, Jesus. Nós o defenderemos, caramba! Não é verdade, companheiros?... Pela boa estrela de Jacó, nada de mal acontecerá com você!

Jesus: Primeiro você me empurra pra frente, e agora quer me passar uma rasteira? Não, Pedro, vamos falar claramente. Vão me partir como a este bastão. E vocês também, se lutarem até o fim. Que cada um ponha desde agora no ombro sua cruz, para depois não sermos pegos de surpresa.

Pedro: Bom, Jesus, não fale mais sobre isso. Amarre firme a correia da sandália, e seja valente!

Jesus: Você também, Pedro. Você vem depois de mim.

Pedro: Como você disse, moreno?

Jesus: Pedro... pedrada... Agora eles vão atira-las sobre você. Mas não se preocupe. Você é uma boa pedra de cimento. Não o romperão nem a marteladas.

Judas: Bem, bem, não falemos de coisas tristes... O importante agora é que estamos juntos e estamos unidos!

Tiago: E que vamos para frente desse jeito, às duras penas, e às moles também!

André: E aconteça o que acontecer, este grupo não se esfacelará!

Felipe: Isso mesmo, André! Nem o diabo, com o seu tridente, poderá alguma coisa contra nós, não é mesmo?

Jesus: Claro que sim, Felipe. A amizade que nos amarrou aqui nesta terra, não iremos desamarrar nem no céu. De acordo?

Tomé: De acordo! Uma boa fechadura e treze chaves, uma para cada um!

Jesus: E você, Pedro, guarde o chaveiro para que as chaves não se percam!

Pedro: Então, mão com mão, para sempre!

Tiago: Mão com mão, companheiros!



Amanheceu em Cesaréia de Felipe. Passamos a noite conversando e agora tínhamos umas quantas milhas adiante... Esticamos as pernas e nos pusemos a caminho para o Sul, rumo a Cafarnaum... O monte Hermon brilhava branco às nossas costas...





A cidade de Cesaréia de Felipe foi fundada por Felipe, irmão do rei Herodes, uns três anos antes de Jesus nascer. Colocou o nome de Cesaréia em honra a César Augusto, o imperador que então governava em Roma. A cidade estava situada bem ao norte, na fronteira com a Síria. Em Cesaréia nasce o rio Jordão, que a partir dali desce e atravessa todo o país de Israel. O rio é formado por três mananciais de água, sendo um deles a fonte de Dan, que dá o nome ao rio: Jor-Dan (“o que desce de Dan”). Na linguagem bíblica, para precisar os limites geográficos da Terra Prometida por Deus a Israel, é freqüente a expressão: “De Dan até Bersheba”. Do norte, onde estava a fonte de Dan, até o ponto situado mais ao sul, a cidade beduína de Bersheba. Cesaréia de Felipe atualmente se chama Banias.



Os recabitas eram um grupo de israelitas que, desde séculos, e por fidelidade a seus princípios religiosos, viviam como pastores, rechaçando a vida de agricultores sedentários. Não tomavam vinho, eram muito zelosos de suas tradições e só entravam nas cidades de passagem e em momentos muito especiais. Representavam a oposição à civilização urbana e a lembrança da velha tradição religiosa do deserto, quando Israel era um povo errante (Jr, 35, 1-19).



Assim como o momento do batismo e o da proclamação da boa notícia na sinagoga de Nazaré, são momentos decisivos na consciência que Jesus vai tendo de sua missão profética, este episódio de Cesaréia de Felipe aponta também um marco em sua vida. Até este momento, Jesus, impulsionado pelo exemplo do Batista, apoiado por seus discípulos e continuamente interpelado pela dor e esperança de seu povo, se mostrou diante de seus compatriotas como um profeta. Como profeta falou e agiu. Sente-se herdeiro da tradição profética de Israel e opera com essa convicção. Em Cesaréia dá um passo a mais. De fato, a liberdade com que ele falava da Lei e a interpretava e a certeza com que se apresentava como emissário do Reino de Deus que ia mudar a história, o aproximaram cada vez mais da consciência de ser o Messias. Como é impossível determinar um lugar e um momento concreto, fixa-se em Cesaréia este “salto” da consciência de Jesus.



Jesus aceita sua missão messiânica em comunidade. Deus escolheu Jesus como Messias de Israel. Mas esta escolha não estava à margem do povo de quem foi o servidor. Igualmente na Igreja e na comunidade cristã, nenhuma vocação deve vir “de cima”, nem deve ser decidida “solitariamente”. Toda vocação, carisma e serviço, por se entender que são “para” a comunidade, devem ser avaliados pelos que integram a comunidade. Assim se continuará cumprindo na história o que foi o ministério de Jesus.



Quando nos evangelhos Jesus fala de sua futura paixão, de sua morte, não se deve entender isso como “profecia” no sentido mais limitado desta palavra, como se Jesus fosse um adivinho de seu próprio futuro. Se assim o entendêssemos, o final dramático que teve sua vida, não seria um fato histórico. Tudo teria estado predeterminado de fora e sabido desde o início. O que essas palavras indicam é que, a esta altura de sua atividade, Jesus já contava com uma morte violenta. Havia violado a lei do sábado – eixo do sistema – e isso era motivo suficiente para ser condenado à morte; havia sido acusado de estar endemoniado pelos poderosos sacerdotes e isto também era penalizado com a morte; havia enfrentado as autoridades, os latifundiários, havia se relacionado com pessoas que os poderosos desprezavam, e lhes havia aberto os olhos sobre sua condição de explorados, e com outros, temidos como subversivos – os zelotas - , estava levantando um autêntico movimento popular... Tanto os chefes religiosos como as autoridades políticas o consideravam cada vez mais como um elemento perigoso, um revoltoso... E isso Jesus também sabia. Por isso, tinha que considerar a possibilidade – quase a certeza – de que o matariam, como haviam matado os profetas. Sua fidelidade à missão que Deus e o povo lhe haviam confiado, fizeram-no seguir adiante apesar deste risco. E esta crescente consciência de sua importante missão não o afastou de seus amigos. Ao contrário, Jesus foi um líder que inspirava confiança, que tinha humor, que não se dava importância demasiada nem marcava “as distâncias”. Também nisto, sendo “um de muitos”, nos revelou a proximidade de Deus.



(Mt 16, 13-24; Mc 8, 27-33; Lc 9, 18-22)













































68

NO CUME DO TABOR







Por aqueles dias, Pedro, Tiago, Jesus e eu íamos a caminho de Nazaré, pela rota das caravanas que margeiam o lago de Tiberíades e atravessa o vale do Esdrelon. O sol de verão, como um globo de fogo, fazia brilhar os campos de trigo já maduros para a colheita...



Jesus: Vocês nunca subiram, Pedro?

Pedro: Aonde, Jesus?

Jesus: Ao monte... Eu, de menino, escapava às vezes da sinagoga... Nos juntávamos em três ou quatro do povoado e caminhávamos até aqui... E depois, pra cima! Chegávamos com a língua de fora, é verdade, e com as sandálias meio rotas, mas... valia a pena...



À nossa esquerda, redondo como uma cúpula, elevava-se o monte Tabor, separando os antigos territórios das tribos de Isacar, Zabulon e Neftali, guardião solitário da fértil planície galiléia...



João: Pedro, Tiago, amarrem as sandálias!

Tiago: O que você disse, João?

João: Que eu conheço esse moreno melhor que o quintal da minha casa... Não estão vendo que ele já está se aprontando para subir...?



Em seguida, começamos a andar encosta acima, até o cume do monte, serpenteando por entre os pinheiros e terebintos que crescem nas ladeiras...



Pedro: Pelas melenas de Sansão e pelas tesouras de Dalila... Estou sem forças... puff!... sem fôlego... Espere, Jesus...

Jesus: Você já está ficando velho, Pedro... Puff! Às vezes, quando era garoto subia correndo até... até lá em cima...

Pedro: Ei, João... Tiago... venham aqui...!

João: E essas ovelhas, de onde saíram?

Tiago: Se há rebanho, haverá também pastor, não acham...? Oh, oh, pastor... pastor!... Onde terá se metido...?

Pedro: Vamos continuar subindo!



Lá em cima, sobre a rocha, no cume do monte, estava o velho Jilel, com sua flauta de bambu e os olhos perdidos na linha do horizonte...



Jesus: Pastor!... Pastor!

Jilel: Estou aqui!... O que me pedem ou o que me dão?

Pedro: Só podemos dar-lhe bom dia, velho! E você?

Jilel: Eu posso brindar-lhe com um pedaço de queijo e todo o leite que quiserem!... Venham, rapazes, que o leite de minhas ovelhas é mais puro que a casta Susana!

Jesus: Escute, você não é o velho Jilel?

Jilel: Sim, é assim que me chamo. Mas como sabe meu nome? Algum corvo lhe disse pelo caminho?

Jesus: Não, é que quando era garoto subi várias vezes ao monte, e você já andava circulando por essas bandas...

Jilel: Claro, porque está é a minha casa. Muitos juntam tijolos e se trancam lá dentro. Eu não. Não tenho cabana. Prefiro o ar livre. Meu único teto é o céu... Vamos, provem este leite de cabra... Vai refrescar-lhes a garganta!

João: Obrigado, Jilel...

Tiago: Você não se aborrece por ficar aqui tão sozinho, velho?

Jilel: Aborrecer-me? Rá! A música é a amiga mais fiel do homem, não se esqueça... E olhe o vale... Nem Matusalém, com todos os seus anos, teve tempo para ver toda esta beleza... Vocês, que vivem lá em baixo, nas cidades e nos povoados, aprendem a ler e vão para a sinagoga e ouvem as santas escrituras... Eu não sei nada de letras. Mas tampouco me faz falta, sabiam? Este é o meu livro... e ele me basta...



O velho Jilel apontava com sua mão calosa o vale do Esdrelon que se abria imenso e verde a nossos pés...



Jilel: Olhem bem, rapazes... Esta é a terra que Deus jurou dar a nossos pais, a terra que mana leite e mel, a mais formosa de todas...!

Pedro: Escute, velho, não é por lá, bem no fundo, que fica o lago?

Jilel: Sim, o lago da Galiléia, redondo como um anel de noiva. Dizem que Deus o pôs no dedo de Eva quando a entregou como esposa a Adão... Mas olhem um pouco mais para lá, amigos: estão vendo?...

João: Onde, velho?

Jilel: Lá, por trás de tudo... É o monte Hermon, coberto de neve, tão branca como as barbas de Deus! É dali que o Senhor abençoa nossa terra... Olhem agora até a outra ponta... por lá estão as terras da Samaria... Lá, junto às nuvens, o monte Ebal e o monte Garizim... e entre os dois, como dizem, entre os peitos de uma mulher, a cidade de Siquém. Lá, nosso pai Josué se reuniu com todas as tribos de Israel e as fez jurar a aliança com Deus, bênção para quem a cumprisse, maldição para quem a rompesse...

João: Olhe, velho, e aqueles montes que a gente vê mais perto?

Jilel: Ah, essas são as alturas de Gelboé, onde os filisteus mataram o primeiro rei de nosso povo, Saul, e seu filho Jonatan, o amigo de Davi... E Davi, que também sabia música, pegou a flauta e cantou seu amigo morto... Olhem para lá, para o poente... Há como que uma espora verde que sai da terra e se funde com o mar Grande... É o monte Carmelo, a pátria de Elias, o primeiro profeta que deu as caras pelos pobres de Israel e defendeu seus direitos... Ah, Elias!... Sua língua foi como um chicote nas mãos de Deus. Fez tremer os reis e todos os que abusavam dos humildes. E, quando Deus o levou no carro de fogo, seu espírito se repartiu como faíscas entre os novos profetas... Estão vendo o que eu dizia, rapazes? Cada uma dessas montanhas que se vê daqui, é como a página de um livro: nelas está escrita a história do nosso povo.

Jesus: Mas esta história começa em outra montanha, velho, a maior de todas, a que não se vê daqui...

Jilel: É verdade, rapaz, o Sinai fica longe, muito longe, lá pelas bandas do sul, onde só o olho da águia alcança... E foi lá por aquelas solidões que Deus resolveu chamar Moisés no fogo de uma sarça. E dali o enviou ao Egito para libertar seus irmãos. E Moisés enfrentou o Faraó, libertou os escravos, e atravessou com eles o Mar Vermelho e o deserto, até leva-los ao Sinai, a montanha santa, que tem duas pontas no cume, como os joelhos abertos de uma parturiente: ali nasceu o povo livre, nosso povo de Israel...

João: Caramba, velho, ouvindo você falar, qualquer um se emociona...

Jilel: Ai, rapazes, é que vocês ainda são jovens e não sabem... Mas aconteceram tantas coisas... E as que ainda faltam, claro. Porque Deus nunca sossega. Podem crer que ele estará tramando mais alguma para esses tempos. Entendem o que quero dizer, amigos? Que Deus se parece com as cabras: ele gosta da montanha. Numa vez está com Elias no Carmelo, noutra com Moisés no Sinai. Mas sempre está brigando pela Justiça e defendendo os mais humildes. Vocês não se lembram como nossos avós chamavam a Deus? El Shadai, o Deus montanheiro. Porque quando Deus não gosta das coisas que acontecem aqui em baixo, na grande cidade dos homens, ele sobe às montanhas. E dali, ele ri... Sim, Deus ri dos reis e dos Faraós. As grandes nações fazem guerra e os poderosos abusam dos pobres. Mas não cantarão vitória. Deus porá um libertador no monte Sião. Ele será meu filho amado e eu derramarei sobre ele minha complacência.



Até hoje trago estampada nos olhos aquela cena: a linha azul do horizonte, o vale imenso cortado em jardins, como retalhos de um pano de cem cores, o sol meio escondido atrás das nuvens e a brisa do Hermon anunciando chuva no Tabor... Às palavras do pastor Jilel, como um abismo que chama outro abismo, seguiram as de Jesus...



Jesus: Sim, velho, você tem razão.

É nas montanhas que os olhos se limpam

e as orelhas se abrem para escutar a voz de Deus.

É aqui onde a voz de Deus falou em sussurros a Elias

e onde conversou cara a cara com Moisés.

Sim, Deus vive e se deixa sentir.

E a partir de cada uma destas montanhas ele foi entretecendo,

com dedos de mulher prendada,

os caminhos do homem sobre a terra.

Agora o trabalho está realizado,

Agora é o momento de Deus.

Ele vem colocar sua casa em um monte alto,

no cume dos montes,

para que a ela subam os filhos de Israel

e também os de todas as nações.

Porque Deus é Deus de todos, dos próximos e dos distantes.

Ele não se conforma em só reunir as tribos dispersas de Jacó.

Não, há libertação abundante.

Sobra perdão e misericórdia para todos os filhos dos homens.

E o ungido de Deus,

o Messias por quem tanto esperou nosso povo,

será posto no alto do monte,

como luz para os povos,

para que a salvação chegue até os confins da terra.

Pedro: Bravo, moreno! Bem que eu dizia que você tem as barbas de Moisés e a língua de Elias. Continue falando, não se cale, que esta libertação do mundo virá logo, que já não pode demorar!

Tiago: O que vem logo é a tempestade. Vamos, camaradas, deixemos a poesia para outro momento, e vamos descer se não quisermos nos ensopar.

Pedro: Mas, o que você está dizendo Tiago? Não, nunca!... Você não ouviu o que Jesus falou? Agora é que isso está ficando bom!

João: Mas, Pedro, está ficando louco? Não percebe que está vindo um dilúvio e aqui não há sequer uma cabana para refúgio?

Pedro: Pois então a gente as constrói, pombas! Construímos uma e três se for preciso!... Mas daqui ninguém se mexe!



Pedro, entusiasmado, olhava o céu. As nuvens cinzentas iam se juntando sobre nossas cabeças. Em poucos segundos, caíram as primeiras gotas...



Pedro: Que importa a água, companheiros? No Sinai não caíam raios e faíscas quando Deus apareceu? E no Carmelo, não aconteceu a mesma coisa? É que Deus anda solto pelas montanhas!... Sim, sim, agora descerá Elias em seu carro de fogo, e também virá Moisés com uma sarça ardente na mão!



As nuvens descarregaram com fúria sobre o monte Tabor, e nos ensopamos até os ossos. Os raios cruzavam o céu como flechas e seu resplendor iluminava os rostos do pastor Jilel, de meu irmão Tiago, de Pedro e de Jesus.



Pedro: Bem, e agora... heim? E agora?... Acabou-se tudo?

Jesus: Pelo contrário. Agora é que começa.

Pedro: Mas, o que vai acontecer agora, moreno?

Jesus: Nada, Pedro. Se não quisermos pegar um bom resfriado, é melhor começar a andar e continuar nosso caminho. O que você queria? Ficar aqui em cima vendo passar os relâmpagos?

Pedro: Não sei, esperava algo mais... Ver Deus... ainda que fosse só um pedacinho, mas...

Jesus: Escute, Pedro: Deus está nas montanhas, sim. Mas os homens estão lá em baixo, preste atenção...



E Jesus olhava o vale de Esdrelon, salpicado de povoados, onde os pobres de Israel amassavam o pão com suor e lágrimas...



Jesus: É para lá que temos que ir, Pedro. Deixe tranqüila a sarça ardendo e o carro de fogo e vamos para baixo. São as brasas desses fogareiros apagados que temos de soprar. Foi isso que fez Moisés e Elias também: ocupar-se de seus irmãos, trabalhar sem descanso para ajuda-los a seguir adiante. Vamos lá, andando!... Temos de acender de pressa um fogo em toda a terra, e que ela arda!



Pedro, meu irmão Tiago, Jesus e eu descemos pelas encostas do monte Tabor, escorregadias depois do aguaceiro. Lá em cima ficou o velho Jilel com seus rebanhos de ovelhas e sua flauta de bambu... Em baixo estavam os campos e as cidades da Galiléia, esperando uma mudança, uma renovação, uma transfiguração...





O monte Tabor é um monte isolado, ao nordeste da formosa e fértil planície do Esdrelon. Tem a forma arredondada e uns 580 metros de altura. Desde muito tempo, foi considerado, por seu enclave nos limites dos territórios das tribos de Isacar, Zalubon e Neftali, e por sua beleza, como um monte santo. E ainda que os evangelhos não digam o nome da montanha onde Jesus subiu com seus discípulos neste relato, a tradição sempre situou a transfiguração em cima do Tabor. O monte está a uns 30 quilômetros de Nazaré e tem uma vegetação abundante. Em 1921, foi edificada no alto monte a grandiosa Igreja da Transfiguração, que em sua construção exterior tenta recordar a silhueta das três tendas a que se refere Pedro no texto evangélico.



De cima do Tabor, contempla-se uma das vistas mais fascinantes da terra de Israel. Aos pés do monte se estende a planície do Esdrelon, ou do Yizreel (que significa “Deus o semeou”), como que querendo ressaltar a exuberante fertilidade dessa terra (Os 2, 23-25). Yizreel é um extenso vale em forma de triângulo, que flanqueia o monte Carmelo, os montes de Gelboé e as montanhas da Galiléia. Servia para comunicar a Palestina ocidental com a oriental e foi por isto freqüente cenário de guerras e batalhas de grande transcendência na história da nação.



O pastor Jilel, correndo a vista pelos montes que se contempla ou se adivinha da altura do Tabor, faz um resumo dos momentos-chave da história de Israel. Refere-se ao monte Hermon, limite norte da Terra prometida por Deus a seu povo, considerado como o guardião do país, sempre coberto de neve (Salmo 133). Aos montes Ebal e Garizim, em terras samaritanas, que foram cenários de um dos momentos mais solenes da história do povo (Js 8, 30-35). Aos montes de Gelboé, onde os israelitas foram vencidos pelos filisteus e onde morreu Saul, o primeiro rei de Israel, e seu filho Jonatam (1 Sm 31, 1-13; 2 Sm 1, 17-27).



Jilel faz uma referência especial ao monte Carmelo, a montanha do profeta Elias. O Carmelo (seu nome significa “jardim de Deus”) é uma montanha muito fértil, de uns 20 quilômetros de largura, situada entre o mar Mediterrâneo e a planície de Yizreel. Ali o profeta Elias realizou alguns dos  seus sinais mais espetaculares (1 Rs 18, 16-40). Na atualidade o Carmelo é chamado de Yebel-mar-Elyas, o “monte de santo Elias”, e multidões de peregrinos acodem para venerar o primeiro grande profeta de Israel em uma caverna cavada  na base do monte, a caverna de Elias. Ali rezam e se reúnem em romarias de festa, com cantos e comidas simbólicas.



Elias (seu nome significa “Javé é Deus”) viveu uns novecentos anos antes de Jesus. Foi o grande profeta do reino do norte de Israel, quando a nação se dividiu em duas monarquias. Sua popularidade foi imensa e o povo teceu ao redor de sua figura lendas de todo tipo, convertendo-o num mito inesquecível: fez grandes milagres, enfrentou reis, não morreu, mas subiu ao céu num carro de fogo e, o mais importante, voltaria de novo para abrir os caminhos para o Messias. Todas essas idéias estavam vivíssimas no tempo de Jesus. Elias foi sempre o profeta por excelência e o anunciador da chegada dos tempos messiânicos. É natural, portanto, que neste quadro cheio de símbolos, que é o relato da transfiguração, apareça Elias junto de Jesus. Está ao seu lado para garantir que seu espírito profético está em Jesus e, mais ainda, como testemunha de que ele é o Messias esperado. (A história de Elias aparece no Primeiro Livro dos Reis, nos capítulos 17, 18, 19, 21, e no capítulo 2 do Segundo Livro dos Reis. As referências a Elias são inumeráveis ao longo de toda a Escritura. Elias aparece como profeta da justiça, de um modo especial, no relato da vinha de Nabot – capítulo 21).



O pastor Jilel faz também uma referência especial ao Sinai, a montanha de Moisés. O Sinai, ao qual a Bíblia também chama de monte Horeb, é a montanha mais sagrada de Israel. Ali, Deus apareceu a Moisés em uma sarça ardente, ali lhe revelou seu nome – Yahweh – ,ali entregou os mandamentos e ali fez a aliança com o povo quando ele marchava pelo deserto. O Sinai está situado em território hoje pertencente ao Egito, na península do Sinai, em pleno deserto, em uma zona habitada unicamente por beduínos, de uma beleza selvagem e dificilmente comparável com a de outras paisagens. Moisés, que viveu mil e oitocentos anos antes de Jesus, foi para Israel uma figura excepcional. O pai e libertador do povo, aquele que o formou e o guiou até a Terra Prometida, o homem excepcional que falou com Deus cara a cara. E, sobretudo, o Legislador, que deu a Israel a Lei Santa. Nenhuma figura bíblica tinha tanto peso, nem tanta autoridade como Moisés. Por isso devia também aparecer junto a Jesus no quadro da transfiguração. No momento em que Deus começava com aquele camponês de Nazaré uma nova lei – a da liberdade – e, uma nova aliança – de justiça e de amor – Moisés estava ali, como garantia de que Jesus herdava as melhores tradições de seu povo. (Todo o livro do Êxodo é importante para conhecer a história de Moisés, especialmente do capítulo 1 ao 24).



Para a mentalidade israelita, o monte, por sua maior proximidade do céu, era o lugar onde Deus se manifestava. Outros povos vizinhos – os assírios, babilônios, os fenícios – pensavam da mesma maneira. O monte era, pois, o lugar santo por excelência. Mais adiante aparece uma outra idéia complementar: Deus escolhe alguns montes como sua especial morada. E assim, inumeráveis vezes se fala no Antigo Testamento do monte Sião (em Jerusalém), como lugar escolhido por Deus para viver, como lugar do banquete dos tempos messiânicos. Além disso, uma antiga tradição de Israel chamou Deus com o nome de El-Shadai. O próprio Deus teria revelado este nome aos velhos patriarcas (Gn 17, 1-2). El-Shadai significa “Deus das montanhas”. O livro de Jô é o que apresenta em mais ocasiões este formoso nome de Deus.



Com todos esses elementos – monte sagrado, Moisés (a Lei), Elias (os Profetas), a nuvem (que também aparece no Êxodo), a luz resplandecente – os evangelistas armaram um quadro simbólico para nos dizer até que ponto se cumpre em Jesus tudo o que foi anunciado ao povo de Israel pelos antigos escritos. Apresentam-nos, assim, o que se chama uma “teofania” (aparição de Deus), ao estilo de muitas das teofanias do Antigo Testamento: Êxodo 24, 9-11 (Deus aparece a Moisés e aos anciãos); 1 Reis 19, 9-14 (Deus aparece a Elias no vento); Ezequiel 1, 1-28 (Deus aparece a Ezequiel em um carro). Nestas descrições sempre há uma série de elementos simbólicos que têm seu ponto culminante no momento em que se escuta a voz de Deus. Na transfiguração Deus dirá as palavras do Salmo 2: “Tu és meu filho...” As idéias desse salmo servem de fundo à teofania da transfiguração, tal como aparece neste episódio.



Jesus se expressa aqui numa linguagem profética e poética, nascida do calor do clima criado pelo pastor com suas evocações bíblicas. Apresenta em suas palavras profecias nas quais se fala do monte santo, do Messias, do dia da salvação, do projeto de libertação que Deus traz em suas mãos (Is 60, 1-4; 61, 1; Mq 4, 1-8). O que Jesus anunciou não foi “sua” glória, “sua” transfiguração. A boa notícia que ele nos trouxe não foi uma reivindicação barata da sua grandeza, como uma superastro que buscasse com gestos maravilhosos deixar deslumbrado um público atônito. A boa notícia que ele proclamou e pela qual deu a vida, foi a transfiguração do mundo: um mundo novo onde a mensagem de justiça dos profetas fosse realidade. O que ele anuncia é a transfiguração da história. Essa história que por vezes nos pode parecer carente de sentido, absurda, regada com demasiado sangue, é uma história que Deus guia até a consumação final. Uma história que as mãos do Deus das montanhas resgatarão algum dia. Uma história que será transfigurada.



(Mt 17, 1-13; Mc 9, 2-13; Lc 9, 28-36)

























































































69

AS PERGUNTAS DE ISMAEL





Ao pé do monte Tabor há um povoado pequeno e rodeado de palmeiras chamado Deboria, em lembrança a Débora, aquela mulher valente que lutou ali pela liberdade de seu povo... Em Deboria vivia Ismael. Ele tinha uma oficina de peles e um único filho, Alexandre... Naquele dia havia festa na casa de Ismael. Seu filho havia se comprometido em casamento com Rute, uma vizinha jovem e bonita. E já pensavam em marcar a data do casamento...



Uma mulher: Pode crer, essa moça tem sorte. Alexandre é um excelente partido para ela.

Vizinha: É verdade! Bom moço, trabalhador e com um pai tão religioso, não é mesmo?

Mulher: Que Deus os abençoe e que sejam sempre muito felizes!



Alexandre dançava na roda dos homens. Seus companheiros o empurraram ao centro e começaram a aplaudir para que ele dedicasse uma trova à sua noiva... Era um rapaz muito alto e forte, cheio de vida...



Alexandre: “As estrelas no céu / não terão tanta alegria / como eu quando lhe canto / adorada... aaii!”



Então aconteceu aquilo. Alexandre, como que fulminado por um raio, despencou no chão debatendo-se e soltando espuma pela boca... Seus companheiros se lançaram sobre ele sem saber como ajuda-lo...



Um amigo: Ei, avisem logo o velho Ismael! Seu filho teve um ataque!

Uma mulher: Alexandre está passando mal!

Amigo: Mas, por Deus, deixem-no respirar!... Não empurrem!...

Uma vizinha: Já está mais tranqüilo. Vamos, Ismael, ajude-me a leva-lo para dentro... Pobre rapaz!

Ismael: Já aconteceu uma vez quando era menino... Eu pensei que estivesse curado e, veja só, justamente hoje quando ia anunciar seu casamento...

Vizinha: Não se preocupe, Ismael! Se Deus quiser, não haverá de acontecer de novo. Tenha confiança.

Ismael: É, assim espero. Que Deus te ouça, Sara, que Deus te ouça...



Mas a partir de então, a doença se agravou. Os ataques se repetiram uma e outra vez. Durante a refeição, ou na oficina de peles onde trabalhava com seu pai, ou caminhando pelo povoado, a qualquer momento, o mais inesperado, Alexandre ficava com os olhos em branco, pulava como que ferido por um chicote e caía no chão, rangendo os dentes e retorcendo-se com tanta força que quatro homens não conseguiam segura-lo... Depois, quando se levantava, muito cansado, o rapaz não se lembrava de nada do que aconteceu...



Ismael: Deus meu, ajude-me... É meu único filho, minha única alegria. Cura-o, Senhor... eu te peço, suplico-te com todas as minhas forças... Diga que ele nunca mais terá esses ataques!...



A cada noite a mesma oração. E depois, sempre, o mesmo desengano. A enfermidade de Alexandre ia de mal a pior...



Médico: Sinto muito, Ismael, mas o que lhe podemos dizer?

Ismael: Vocês estudaram, conhecerão algum remédio, alguma erva...

Médico: Esta é uma doença tão ruim que não sabemos nem como se chama. Tão ruim que deve ter sido inventada pelo próprio demônio.

Ismael: Mas vocês são médicos, caramba...

Médico: Ismael, a doença nasceu muito antes da medicina. Corre sempre com vantagem...

Uma vizinha: Conforme-se, Ismael. A vida é assim.

Ismael: Conforme-se, conforme-se! É fácil dizer isso, não é mesmo? Acontece que não é seu filho...

Vizinha: Está bem, mas o que se vai fazer? Continuar cutucando o aguilhão para que doa mais a espetada?... Você não é o único que sofre, Ismael... Veja minha pobre comadre Lia, com o filho que nasceu bobo. Está pior que você, não? E o Rubinho. Da pedrada que lhe deram, ficou cego. E a Rebeca, essa pobre infeliz, com mais corcundas que um camelo...

Ismael: Está bem, está bem, não precisa fazer a lista dos doentes do povoado. Eu já a conheço: Rebeca, aleijada, o neto do meu compare com o rosto queimado, o filho da Anita, sem pernas, o outro sem braços... E daí? É esse o consolo que me dá?

Vizinha: Bom, dizem que mal de muitos, consolo de...

Ismael: De tontos, sim. De tontos! Que há outros piores que meu filho Alexandre, que sofrem mais que eu? E o que isso me resolve? Nem a minha alivia a deles, nem a deles alivia a minha.

Vizinha: Mas é preciso se conformar, Ismael.

Ismael: Pois eu não me conformo! Não! Não posso ver meu filho, de dezoito anos, transformado num trapo qualquer. Seus amigos já não se aproximam dele. Têm pena. A noiva o deixou plantado. Tem medo dele... Resignar-me a ver meu filho jogado ao chão como um cão raivoso?

Vizinha: Conforme-se com a vontade de Deus.

Ismael: A vontade de Deus! Então foi Deus quem mandou esta doença para meu filho? E por que, pode-se saber, por que?

Um amigo: Porque você é um pecador, Ismael. E Deus o castigou do jeito que lhe dói mais. É isso que acontece.

Ismael: Ah, é mesmo? É essa então a justiça de Deus? Os pais comem uvas verdes e os dentes dos filhos ficam cariados. Que ele castigue a mim, se quiser. Mas meu filho não fez nada de mal!

Amigo: Isso é o que você não sabe. Ninguém é inocente diante dos olhos de Deus.

Ismael: Pois se ninguém é inocente que ele nos castigue todos juntos. Mas por que meu filho e não o seu? Por que, diga-me, por que?

Amigo: Porque Deus faz o que quer. O que ele faz está bem feito. Quem é você para pedir contas a Deus?

Ismael: E a quem vou pedir, se não a ele? Quem tem a culpa por meu filho estar doente? Vamos, diga-me, quem?

Rabino: Deus não tem a culpa, filho. Como pode falar assim de Deus. Deus é bom... É nosso pai e quer nossa felicidade.

Ismael: Se ele é tão bom, por que não cura o Alexandre? Eu já pedi a ele, supliquei dia e noite. E ele não me ouve.

Rabino: Sim, ele ouve, Ismael, mas...

Ismael: Mas, o que? Ele não é Deus? Não pode tudo? Por que não cura meu filho, se pode fazê-lo?

Rabino: Às vezes, de um mal, Deus tira um bem.

Ismael: E não seria mais fácil tirar o mal? Assim acabaria mais de pressa.

Rabino: Muitos males e muitos sofrimentos são causados por nós mesmos. Veja o louco Saul, se apodreceu as tripas de tanto beber. E agora a viúva vem jogar a culpa em Deus!

Ismael: Meu filho se chama Alexandre e não Saul! Meu filho não fez nada de mal para ficar doente!

Rabino: Quem sabe o que Deus estará planejando! Os caminhos de Deus são misteriosos.

Ismael: Claro, e com tantos mistérios você quer me tapar a boca. Mas não, escute bem, não me calarei. Pois Deus não tem direito de fazer isso com meu filho. Você diz que Deus é Pai. Será que o coração dele não fica apertado vendo sofrer tantos filhos seus? Que Pai é esse então? Será que não sofre vendo meu filho se debatendo no chão?

Rabino: Deus não pode sofrer, Ismael, porque... porque é Deus.

Ismael: Então não é pai coisa nenhuma! Que vá cantar em outra freguesia!

Rabino: Você não sabe o que está dizendo, Ismael. Tranqüilize-se...

Ismael: Não, eu sei muito bem o que estou dizendo. Tenho rezado dia e noite e Deus não me responde. Levantei meu rosto ao céu e disse: por que? Por que maltratas meu filho? O que ele fez?... Se ele é mau, faça sofrer a mim e não a ele. Se é bom, por que não o curas? O que custaria a ti que tudo podes?... Mas Deus não me responde nada. Ele se faz de surdo. Ele se tapa os ouvidos.

Rabino: Vamos, Ismael, vai para casa. Descanse um pouco. Esse momento ruim vai passar.

Ismael: Sim, este meu momento ruim vai passar. Mas meu filho Alexandre continuará doente. Você voltará ao seu trabalho e à sua vida. Mas Alexandre continuará doente. E Deus continuará ouvindo os anjos cantarem lá em cima. Mas meu filho, doente e amargurado aqui em baixo! Por que, por que, por que?...

Rabino: Tenha paciência, Ismael. Só isso eu posso lhe dizer: paciência e mais paciência.

Ismael: Não. Guarde sua paciência para você mesmo, pois ela não me serve de nada. Não se preocupe, já não vou perguntar mais. Eu já sei a resposta. Sabe por que Deus não cura meu filho? Sabe por que?... Por que ele não existe!... E não me olhe com essa cara. Esta é a única desculpa que ele pode dar a nós homens, que não existe. Esta é a verdade. O céu está vazio. E quando rezamos, a oração volta e cai na nossa cara, como quem cospe para cima.



Aquele dia era dia de feira no povoado de Deboria. Pedro e Tiago, Jesus e eu, passamos por lá quando descemos do monte... Em uma barraca, um homem já de idade, com umas olheiras muito grandes, como quem havia chorado muito, nos mostrava umas sandálias de couro...



Ismael: É de couro bom, forasteiros, reparem bem...



Ao seu lado, um rapaz alto, de olhos assustados, nos fazia sinais para mostrar-nos outras mercadorias...



Ismael: Dois denários e você as leva já calçadas. Animem-se...

Alexandre: Aiii...!

Ismael: Alexandre, filho... filho...!

Alexandre: Aggg...! Aggg...!



O rapaz havia dado um pulo caindo sobre uma barraca de frutas ao lado. Retorcia-se entre espasmos. Ismael, o pai, tentava separar-lhe os dentes e colocar um pano em sua boca para que não mordesse a língua...



Um amigo: Para que você o traz à feira, caramba? Deixe-o em casa ou tranque-o. É perigo, maldição!

Ismael: Não, não amaldiçoe meu filho que não fez nada. Amaldiçoe a Deus que tem culpa dele estar assim!



Então Jesus se aproximou do pai do rapaz...



Jesus: Há quanto tempo ele tem esta doença?

Ismael: Desde criança. Passou uns anos bem, mas agora...

Uma mulher: Ismael, este homem que está lhe perguntando é o nazareno do qual tanto se fala. Dizem que é um profeta de Deus e que já curou muita gente...

Ismael: Profeta? Você é profeta? Você fala com Deus? Pois vai e pergunte isto da minha parte: por que meu filho sofre, por que, porque...? Perdoe-me forasteiro, é que... é que eu já não agüento mais... estou cansado. Cansado de rezar. Mas Deus não faz caso de mim... Se você é um profeta... talvez possa fazer alguma coisa por meu filho.

Jesus: Você tem fé? Acredita em Deus?

Ismael: Eu já nem sei mais em que acredito...



Jesus se agachou, pôs-se junto ao rapaz que respirava entrecortadamente e lhe enxugou o rosto banhado de suor...



Jesus: Apesar de tudo, há esperança...

Ismael: Não vai me dizer mais nada?



Jesus olhou longamente o pai do rapaz. Estava, como ele, com os olhos marejados...



Jesus: Se lhe dissesse que Deus também sofre por seu filho, você acreditaria?... E que de seus olhos também saltam lágrimas, vendo a dor de tantos doentes... Não, você não está só, irmão. Deus está com você. Ele se põe ao seu lado e o sustenta... Que mais posso lhe dizer?... Venha, vamos leva-lo para casa. E deita-lo para que descanse. Vamos, ele já está mais tranqüilo...

Ismael: Ele voltará a ter outro ataque?

Jesus: Embora possa acontecer, a esperança é possível...



Jesus ajudou o velho Ismael a levantar seu filho do chão para acompanha-lo até sua casa. Depois, colocou um braço nos ombros de Alexandre e foi caminhando em silêncio com ele e com seu pai pelo caminho empoeirado que atravessa o pequeno povoado de Deboria, junto ao monte Tabor...





Ao pé do monte Tabor estava situada Deboria, uma cidade pertencente aos israelitas da tribo de Zabulon. Tinha esse nome em memória de Débora, profetiza e “mãe de Israel”, que atuou como juíza nos primeiros tempos da história do povo e ganhou batalhas para sua pátria. Seu canto de Vitória (Juizes 5, 1-31) é uma das obras primas da literatura hebraica. Atualmente Deboria é uma pequena aldeia habitada só por árabes.



Pela descrição que o evangelho faz dos sintomas deste moço doente, pode-se deduzir que o mal de que padecia era a epilepsia. Hoje sabemos que a causa destes ataques e convulsões repentinos é geralmente uma lesão em uma parte do cérebro e que, sem poder cura-la totalmente, a epilepsia é uma enfermidade que se pode controlar. Nos tempos de Jesus nada disso era conhecido e os doentes desse tipo eram especialmente temidos. Por não conhecer de onde podia vir a doença ou o que fazer diante dela, tornava a situação angustiosa. O mais freqüente era atribuir a causa ao demônio. Também se falava do castigo de Deus por algum pecado oculto do doente ou de sua família.



Diante da dor de seu filho, Ismael, o pai, reza, busca, pergunta. Não se resigna. Acaba rebelando-se, pedindo aos gritos uma resposta a Deus, que é o único que crê poder dá-la. Sua atitude, suas perguntas, são as mesmas que as de Jó. Uns quinhentos anos antes de Jesus, um autor anônimo escreveu um dos livros mais importantes e bonitos da Bíblia: o Livro de Jó. Nele se conta a história de um homem bom, que sofreu toda sorte de calamidades. As páginas do livro recolhem suas reflexões diante da dor, que considera absurda, injusta, imerecida. Confronta-se com três amigos que lhe fazem considerações piedosas, buscando as razões de sua desgraça. E, sobretudo, confronta-se com Deus, a quem torna o responsável último por seus males. Este Jó rebelde diante do sofrimento e que interpela o próprio Deus, significou uma autêntica revolução no pensamento religioso de Israel. Até então acreditava-se que já na terra o homem recebia o prêmio ou o castigo por seus atos. Ao bom, tudo ia bem, era feliz, prosperava. Ao mal, lhe tocava cedo ou tarde, fracassos e sofrimentos. O Livro de Jó vinha contradizer radicalmente essas idéias. Seu tema pode ser reduzido a um só pergunta-chave: porque os bons sofrem, que sentido tem a dor dos inocentes? Ao longo de 38 capítulos, e de todas as maneiras possíveis, Jó coloca diversas vezes a mesma questão. A partir deste livro, a reflexão do povo de Israel sobre a dor, a responsabilidade individual e os projetos de Deus, variaria substancialmente. O caso de Jó abriu caminho teórico para se começar a compreender uma possível imortalidade, a transcendência da vida humana para além desta terra.



As razões de seus amigos não convencem nem Jó, nem Ismael. Diante da dor dos inocentes, não houve então, nem há hoje “razões” válidas. Nem Deus as dá. É um simplismo dizer que no sofrimento Deus sempre consola quem sofre, pois há muitas pessoas que não sentem esse consolo, que se desesperam e se amarguram, incapazes de superar a dor que padecem em si mesmas ou naqueles que amam. A dor dos inocentes é um mistério. Jesus não dá a Ismael nenhuma “razão”, não busca nem motivos nem culpados. Só lhe dá sua presença. Fica ali, junto do pai dolorido e do filho doente. Nada mais. A fé cristã não dá respostas “convincentes” para tudo e menos ainda para a dor “absurda”. E não porque proponha uma aceitação resignada, mas porque, sempre, a dor se tornará um terreno misterioso, onde talvez a única coisa que podemos fazer por nossos irmãos seja acompanha-los, compartilhando seu sofrimento (Rm. 12, 15). Evidentemente, há dores e sofrimentos diante dos quais podemos sim “fazer alguma coisa”. A morte por fome, o sofrimento das pessoas sem emprego, a dor de tantas mulheres exploradas por seus maridos, a falta de cultura de tantas crianças, a falta de moradia, de atenção médica etc., são dor e geram dores. Diante deste tipo de sofrimento não basta a presença nem a companhia. A fé cristã nos empurra a fazer muito mais. Tentar eliminar esse sofrimento, combate-lo, lutar contra ele.



São outras as dores que nos deixam impotentes e reclamam do cristão uma fé e uma esperança nada fáceis. Há doenças que não se podem vencer por mais meios sanitários que se tenha. Há acidentes nos quais morrem pessoas boas, cuja previsão escapa ao controle humano. Há crianças e jovens que morrem antes de terem vivido e a causa de sua morte nos surpreende, por inesperada. Acontece o mesmo com a dor do coração humano (sentimentos não correspondidos, traições de amigos, incompreensões, fracassos, solidão). Ao final de tudo está a morte que, embora chegue “no tempo certo” sempre se torna dolorosa... São dores que nos confrontam com nossa limitação e impotência. A fé então não é um consolo, como se fosse uma aspirina. Talvez sirva unicamente como uma frágil bengala saber que Deus sofre ao nos ver sofrer, que seu coração de Pai se comove com a dor de seus filhos, que ele resgatará também nossos sofrimentos e um dia enxugará todas as lágrimas de nossos olhos (Apocalipse 21, 1-5).



(Mateus 17, 14-21; Marcos 9, 14-29; Lucas 9, 37-43)













































70

COM AS LÂMPADAS ACESAS







Rabino: ... Foi o próprio Senhor quem disse: não é bom que o homem fique só. E lhe deu a mulher por companheira. Rafael, recebe a Lulina. Recebe-a pois ela se entrega como esposa segundo a lei e a sentença escrita no Livro de Moisés. Tome-a e leve-a carinhosamente para a casa de seu pai. E que Deus do Alto os guie sempre pelo caminho da paz!



Naquela noite, o bairro dos pescadores de Cafarnaum estava em festa. Rafael, um dos gêmeos da casa grande, estava se cansando com Lulina, a filha do velho barqueiro. As cítaras e os tamboretes já soavam convidando a todos para o baile em honra dos noivos...



Mulheres: A noiva é uma rosa bonita / o noivo um cravo garboso / e sempre que a noiva pode / dá nele um beijo gostoso.



As mulheres dançavam ao redor de Lulina e os homens faziam a roda com Rafael. Depois de um bom tempo, começou a refeição que o pai do noivo nos oferecia... Sentamo-nos no chão, junto às bandejas cheias de pastéis e jarras de vinho. Os músicos continuavam tocando... Os rostos de todos, muito saudáveis, resplandeciam de alegria...



Tiago: Morrer, morrer num casamento, camaradas! Que minha hora chegue dançando! E comendo!

João: E bebendo! Eu brindo Rafael e Lulina, que hoje estão se casando!

Pedro: Pois eu brindo aqueles que já têm a metade de sua laranja há uns tantos anos!

Um homem: E pelos que estão na fila para casar-se mas não se decidem!

Pedro: Ei, Jesus, essa última foi para você! Puxa vida, moreno, você já esteve em tantos casamentos e... por que não se anima, heim?

Jesus: Deixe disso, Pedro, não estou a fim de beliscar nenhum anzol...

João: Eu digo que este casamento está melhor que o do compadre Rubem...

Tiago: Eu sei o porque. Não foi nele que queimaram sua túnica, João?

João: Foi, homem. É que demoraram tanto para chegar que logo se armou aquele alvoroço com as lâmpadas de azeite. Está lembrado, Jesus?

Jesus: Claro que me lembro, eu estava com o noivo e os amigos da casa. E então saímos juntos para um parreiral que havia perto dali até que aparecesse a noiva...



Um amigo: Está tremendo, rapaz? Esta é a noite mais importante da sua vida!

Rubem: Não, não estou tremendo... Brrr... É que... estou com frio e...

Outro amigo: Aqui não se deve falar de tremores e sim de amores, caramba! E os amores entram melhor com vinho! À sua saúde, grande sem-vergonha!

Amigo: Viva o noivo!

Amigo: E viva mais ainda a noiva!



Jesus: Do lugar onde estávamos reunidos, vimos passar o grupo de moças, iluminando a noite com suas lamparinas de azeite...



Moças: ... Me roubaste o coração, esposo meu, me roubaste o coração, com seu olhar tão caloroso, com palavrinhas de amor...



Jesus: As moças acompanharam a noiva até a casa do noivo. E voltaram a sair para fora, junto à porta, esperando nossa chegada...



Rubem: Iremos para lá, quando todas as estrelas estiverem brilhando no céu!

Um amigo: Pois ainda temos tempo! Até agora só saiu o luzeiro da tarde.

Outro amigo: Não tenham pressa, companheiros. As mulheres que esperem! Antes temos de acabar com esse barril!



Jesus: À porta da casa, as dez amigas da noiva esperavam com as lâmpadas acesas...



Uma moça: Se você se sentar no chão, vai manchar o vestido, Anita. Lembre-se de que ele é emprestado...

Anita: Mas é que até que chegue a noite... Não vamos ficar de pé esse tempo todo... Minhas pernas estão doendo de tanto dançar...

Outra moça: Pois eu estou com sono... Hummm... Tomamos muito vinho...

Moça: Ai, mas como vocês são bobas! Uma dorminhoca, outra cansada... Esses pães estão sem sal. Venham, vamos cantar, pois quem canta o sono espanta! Vamos!

Anita: Sim, vamos cantar trovinhas... Ei, vejam, minha lâmpada está se apagando... e eu não trouxe mais azeite...

Moça: E nem eu, mas não se preocupem que este aqui deve dar...

Moça: Ei, parem de discutir e vamos às trovas!



Jesus: As amigas da noiva se puseram a cantar para passar o tempo. Suas vozes jovens e alegres chegavam até nós...



Moças: ... Já vem o meu amor, pelo campo ele já vem / pelo campo ele já vem, já escuto sua voz...



Jesus: Quando o céu já estava salpicado de estrelas, a cantoria da moças, cansadas pela espera, tornou-se mais lenta... De longe, vimos que algumas das lamparinas haviam deixado de brilhar...



Uma moça: Ei, Anita, veja só essas aqui, dormiram e suas lâmpadas se apagaram...

Outra moça: Elas disseram que não tinham mais azeite...

Moça: Pois deixem-nas pra lá... Que continuem sonhando com os anjinhos!

Anita: Hummm...! Ui, Miriam, estou com tanto sono que meus olhos estão fechando...! Hummm...!

           

            Rubem: Bem, companheiros, acabou-se o barril e acabou-se a despedida de solteiro!

Um amigo: Chegou o momento, Rubem. Firme bem os joelhos, que agora você é o rei da festa!

Outro amigo: Hip! O último brinde por este homem que até que enfim vai encontrar a costela que lhe faltava!



Jesus: Então, quando já era meia-noite, nos pusemos a caminho para a casa onde se ia celebrar a grande festa, o encontro dos dois noivos... As moças estavam adormecidas, junto à porta, recostadas umas sobre as outras...



Amigo: Ei, vocês, o noivo já está chegando!... Não vão recebe-lo?

Moça: Ah... ai, o noivo está chegando!... Acorde, Anita!... Você também, Miriam!

Anita: Ui, minha lâmpada se apagou!

Moça: E a minha também!

Outra moça: E também a minha! E agora, o que vamos fazer? Ai, meu Deus!

Moça: Arrumem-se como puderem! Eu não tenho nem mais uma gota de azeite!

Outra moça: É isso que dá serem descuidadas! Corram, vão comprar mais na barraca de dom Sabas, quem sabe ele lhes vende um pouco!

Moça: E vejam se chegam a tempo para entrar na festa!

Outra moça: Corre, Anita, corre!... Ai, Deus santo!



Jesus: As cinco moças que não haviam levado azeite suficiente saíram correndo à toda para compra-lo na praça. Enquanto ainda estavam longe, nós chegamos à casa, cantando e aplaudindo o noivo...



Moças: Abre a porta, amada, que o noivo pede entrada!

Rapazes: Abre a porta, amor, que chegou o seu senhor!

Moças: Abre a porta, donzela, entre todas a mais bela!

Rapazes: Abre a porta, amor meu, que aqui fora está um breu!



Jesus: As outras cinco moças, com suas lâmpadas acesas, nos abriram a porta e nos acompanharam até dentro de casa, onde a noiva esperava ansiosa, vestida de azul, com uma coroa de flores de laranjeira na fronte...



Um homem: Vamos lá, que comece a grande festa!



Jesus: A porta da casa foi trancada. E começou o baile, o jantar e a alegria de todos os convidados... poucos minutos depois, chegaram correndo as cinco moças descuidadas que haviam ido comprar azeite na barraca...



Anita: Ei, vocês, abram a porta!... Já estamos aqui!

Moça: Abram a porta, por favor!... Deixem-nos entrar!

Empregado: Quem está esmurrando a porta, heim?

Moça: São as outras cinco companheiras. Não trouxeram azeite suficiente e agora chegaram atrasadas!

Anita: Abram a porta, por favor, queremos entrar!

Empregado: Fora, fora, a porta já está trancada!

Anita: Por favor, deixem-nos entrar, por favor!

Empregado: Não amolem, caramba! Caiam fora daqui! A culpa foi de vocês! Quem mandou vocês dormirem e chagar tarde?



Pedro: E o que aconteceu então, Jesus? Depois de tanto esperar tiveram que ficar do lado de fora sem entrar na festa?

Jesus: Bem, Pedro, acontece que essas moças não souberam ficar alertas. É como se diz: Deus só ajuda, quem cedo madruga.

Tiago: Bem feito para elas. Por serem tontas e dorminhocas.

Pedro: Sim, está bem, está bem, as moças não foram lá essas coisas. Mas... e o noivo... o que o noivo fez, Jesus? Afinal, não abriu a porta?

Jesus: O noivo fez o que fazem todos os noivos, Pedro. Quando ficou sabendo do que estava acontecendo lá fora...

Rafael: Ei, rapazes, como estão passando esta noite? Os pastéis estão bons? E o vinho?

João: Está tudo muito gostoso, Rafael. Brindamos por você e por Lulina!

Rafael: E eu brindo por vocês, meus amigos! Brindo por todos!



Rafael, o noivo, se aproximou de onde estávamos comendo... Vinha radiante de alegria...



Rafael: E aí? Já estão preparando o casamento de algum de vocês?

Jesus: Não, de verdade, não. Estamos aqui contando histórias de casamento, que dá menos trabalho. Escute, Rafael, a propósito, suponha você que nesta noite, cinco das moças, das amigas de Lulina, tivessem chegado tarde à festa porque não tinham azeite. E quando voltaram da compra, encontraram a porta trancada. O que você faria, Rafael? Deixaria entrar ou não?

Rafael: Mas, é claro que sim, Jesus! Como poderia deixa-las ali fora, com esse frio? As portas da minha casa estão abertas e não se fecham a noite toda. Hoje é o dia mais feliz da minha vida e não quero que ninguém fique de fora! Bem, continuem se divertindo, amigos!

Tiago: Até daqui a pouco, Rafael!

Jesus: Está vendo, Pedro? Foi isso mesmo que o outro fez. Todos os noivos fazem o mesmo...



Anita: Por favor, deixem-nos entrar, por favor!

Empregado: Não amolem mais, caramba! Sumam daqui! A culpa é de vocês. Quem as mandou dormir e chegar tarde?

Rubem: Mas, o que está acontecendo aqui, Teodoro? Com quem você está brigando, com os fantasmas?

Empregado: Com fantasmas, não, meu senhor. Com cinco mulheres irresponsáveis que não chegaram a tempo. Pior para elas. Que se agüentem lá fora. Porque é isto que foi ordenado: trancar a porta.

Rubem: Pois vai abrindo, ande!

Empregado: Como disse, meu senhor?

Rubem: Para abrir as portas de par em par! E que entrem essas cinco moças, que devem estar muito cansadas! Já esperaram muito tempo! Vamos, apresse-se, abre a porta e que entrem todos os que quiserem entrar! Hoje é um dia alegre e quero que todos estejam comigo! Isto é um casamento, sim senhor, e a festa é para todos.



Jesus: Sim, todos os noivos fazem a mesma coisa. Porque a alegria do casamento torna seu coração deste tamanho... E eu penso que Deus fará a mesma coisa, ao final, à meia-noite, quando chegarmos à sua casa com pouco azeite em nossas lâmpadas...



As cítaras e os tamboretes da festa continuaram tocando até de madrugada. E até de madrugada continuamos dançando e celebrando a alegria grande daquele casamento, com as portas abertas, de par em par...





As bodas eram festa de grande alegria em Israel. Ordinariamente, duravam sete dias, em que se passava comendo, cantando, dançando. Embora os costumes variassem em muitos detalhes de região para região, havia sempre um momento culminante: o encontro dos noivos. Na tarde do primeiro dia da festa levavam a noiva para a casa dos pais do noivo, onde ordinariamente se celebrava o banquete e onde se preparava o quarto dos novos esposos. O noivo saía ao encontro de sua mulher com um turbante especial que sua mãe lhe havia confeccionado: a “coroa”. Seus amigos o acompanhavam e era costume que um grupo de moças, com cânticos e tochas, saíssem ao seu encontro, para todos se reunirem depois na casa onde se celebrava a festa. A noiva aparecia diante de seu futuro esposo coberta com véus e muito enfeitada. Na celebração, era costume que homens e mulheres dançassem e comessem separados.



A chamada “parábola das dez virgens” só é contada no evangelho de Mateus. Com ela o evangelista quer fazer uma catequese à comunidade sobre a vigilância. Correm tempos difíceis e quando chegar a hora do julgamento definitivo de Deus, ninguém deve se sentir seguro. É preciso ter azeite para reposição, é preciso estar preparados, que ninguém durma em seus lauréis mas que vele alerta. Mateus quis dizer tudo isso nesta parábola, que termina dramaticamente com a porta trancada, para indicar a seriedade do tema de que está falando.



Neste episódio, sem contrariar o sentido catequético da parábola, ao final a porta fica aberta. Dos muitos elementos simbólicos que entram em jogo nesta história, mais que reforçar os do azeite ou o da noite de vigília, coloca-se a tônica em outros: o noivo, o casamento. Do ponto de vista de uma catequese cara aos cristãos, deve-se insistir nos primeiros. Mas do ponto de vista missionário, para mostrar como Deus é, que seu modo de agir a respeito de nossas categorias humanas é sempre surpreendente, é válido destacar outros. O homem deve vigiar e levar isso muito a sério, mas Deus, seu amor, sua misericórdia, sempre superarão nosso coração (1 João 3, 20).



Certamente, nesta parábola, se está falando do final dos tempos, do dia do juízo e do acerto de contas. É uma parábola escatológica. Durante muito tempo, uma pregação unilateral aterrorizou o povo frente a este dia final. O medo do inferno, o fogo e seus castigos, foram constante tema dos pregadores para pressionar as pessoas a mudar de vida, a “converter-se”. Esta crosta pesa ainda sobre os cristãos. A partir destas idéias tenebrosas, a imagem que muitos fazem de Deus é bem mesquinha: um policial que leva em conta os atos bons e os atos maus e que, para nos amolar, nos enviará a morte quando menos esperarmos, quase que gozando por pegar-nos em falta nesse dia e mandar-nos de cabeça para as caldeiras de azeite fervendo. A vigilância cristã se reduz assim ao temor e à necessidade de acumular méritos para quando chegar a hora má (morrer com o escapulário pendurado, fazer as nove primeiras sextas-feiras, ganhar indulgências, podem nos salvar no último momento dos caprichos de um deus vingativo). Diante de tudo isso, precisamos nos abrir para a realidade do Deus de Jesus. Um Deus alegre, que prepara um banquete de casamento para nos receber na outra vida, capaz de compreender nossas fraquezas, que quer nossa felicidade, “sempre maior que nosso coração”.



(Mateus 25, 1-13)













































































71

O QUE DEUS UNIU







Tiago: Diga que não, ande, atreva-se a negar agora!

Ester: Mas, de onde você tirou essa história, Tiago? Quem lhe encheu a cabeça de fofocas?

Tiago: Fofocas, não é mesmo? Quem me contou foi o compadre Zabulon! E Zabulon não mente!

Ester: E será que eu posso saber o que o compadre Zabulon lhe contou?

Tiago: Você esteve no mercado, não é mesmo?

Ester: Sim, claro, como em todos os dias.

Tiago: Você foi comprar frutas, não é isso?

Ester: Sim, fui comprar frutas. O que há de errado em comprar frutas?

Tiago: Comprar frutas, tudo bem! Mas piscar para o fruteiro, aí é demais!

Ester: Era só o que faltava! Ciúmes de novo! Deus do céu, que marido o Senhor me deu!

Tiago: Você estava paquerando Rupio, o fruteiro. Confesse.

Ester: Rupio, o fruteiro, tem mais de sessenta anos e não tem sequer um dente na boca.

Tiago: Para isso, dentes não fazem falta!

Ester: Ah, é mesmo? Então você acha que esse velho e eu...?

Tiago: Eu não acho nada. Eu estou certo. Meu compadre Zabulon me disse. Olhe aqui, escute bem, não torne a pôr um pé nesse mercado!

Ester: Ah, é? Para mim tudo bem. A partir de hoje, você vai fazer as compras.

Tiago: Não torne a sair de casa!

Ester: Arranje um cachorro para garantir isso!

Tiago: Não estou disposto a virar motivo de gozação em Cafarnaum, está entendendo? Isso nenhum filho de Zebedeu agüenta!

Ester: Claro, mas essa pobre coitada aqui tem de agüentar que seu marido entre e saia na hora em que bem quiser...

Tiago: Eu sou o homem, pombas!

Ester: E eu não valho nada?

Tiago: Você, cale a boca, desavergonhada! E não me levante a voz!

Ester: Ai, meu Deus...!

Tiago: Acabou-se, está me ouvindo? Acabou-se. Recolhe seus trapos, e some para a casa da sua mãe!... Não preciso de você para coisa nenhuma, está ouvindo? Para coisa nenhuma!

Ester: Você acordou a menina com seus gritos!... Vai lá e dê de mamar para ela, ande, vamos ver como fica...!



Meu irmão Tiago era casado com Ester, uma moça de Betsaida, já fazia cinco anos. Durante este tempo, tiveram três meninas. E tiveram também muitas brigas...



Salomé: Mas, Tiago, filho, como é que você foi fazer isso? Ester é uma boa moça...

Tiago: Ester é uma boa raposa, isso sim é que ela é.

Salomé: Não fale assim da mãe de suas filhas. Ester é sua esposa.

Tiago: Esta corda já se rompeu. Não tenho mais mulher. E lhe disse para pegar suas coisas e se mandar.

Zebedeu: Espere, espere, Tiago, vamos por partes. O que aconteceu. Ela o enganou com outro?

Tiago: Se ela me enganar com outro, eu lhe dou uma surra de vara que os vergões vão ficar até o dia do juízo final!

Zebedeu: E o que ela lhe fez, então?

Tiago: Ela tem os cascos ligeiros, só isso. E pisca o olho para todo homem que vê.

Salomé: Pois não serão muitos os que ela vê, porque você a mantém fechada em casa como se fosse uma leprosa. Pobre infeliz! Nem aqui você a traz.

Tiago: Pobre infeliz... Olhe, mamãe não a defenda.

Zebedeu: Mas, afinal de contas, o que aconteceu?

Tiago: Meu compadre Zabulon a viu sorrindo para o Rupio, o fruteiro, é isso!

Salomé: Mas, Tiago, pelas cãs da minha avó, o que você quer que a pobre faça? Que cuspa na cara dele?

Tiago: Não seja ingênua, mamãe. Todas começam com um sorrizinho. Você se vira e zás! Saltou a lebre.

Jesus: Que lebre saltou por aqui, heim?... Como está, Zebedeu?

Zebedeu: Estamos vivos, Jesus, o que neste país não é pouca coisa!

Jesus ... Epa, o que está havendo?... O que houve, Salomé? Cabelo-de-fogo, você está com uma cara de vinagre!

Tiago: E com razão, Jesus.

Jesus: Ah, é? E o que aconteceu?

Tiago: Que me divorciei de minha mulher. Se casa e descasa, cada um para sua casa, como diz a canção.

Jesus: Mas, por que?

Salomé: Por nada, Jesus, esse meu filho meteu uma cisma na cabeça de que sua mulher piscou um olho para o fruteiro...

Tiago: Não é cisma, mamãe. Foi o compadre Zabulon quem me disse.

Zebedeu: E em toda Cafarnaum não há um fofoqueiro maior que ele...

Tiago: E não é só isso. Zabulon também a viu na praça, e na rua dos curtidores, e a viu outro dia lá no cais...

Jesus: Escute, será que não é o tal Zabulon que “anda atrás” da sua mulher? Ele a segue por onde quer que ela vá...

Tiago: Não me amole, moreno...

Jesus: Afinal de contas, por causa de uma piscada, cinco anos de casamento vão pro buraco?

Tiago: Isso mesmo, pro buraco. Melhor só do que mal acompanhado. Esta corda já se rompeu.

Ester: É claro que se rompeu!

Tiago: Chegou quem faltava...

Salomé: Ester, filha, Tiago nos contou que...

Ester: Eu sei, eu sei, a história do Zabulon. Por que você não vai dormir com ele esta noite, já que o ama tanto!

Tiago: Olhe aqui, mulher do diabo, não comece outra vez. Já lhe disse para juntar os trapos e cair fora!

Ester: Foi para isso que vim aqui... para dizer-lhes adeus...

Zebedeu: Ester, minha menina, fique calma... Venha, sente-se aqui... vamos conversar um pouco...

Ester: Conversar? Conversar sobre o quê? Este seu filho só sabe gritar e dar ordens como se fosse um sargento... Não, não, eu não agüento mais esse energúmeno... Já me cansei. Estou indo...

Tiago: O que você disse? Que se cansou? Se cansou de quê, se você já nasceu cansada? Eu dando o maior duro na barca e você sentada em casa, tranqüila da silva?! E ainda está cansada!

Ester: Ah, é mesmo? Sentada, não é? Cuidar de três meninas não é trabalho, certo? E a cozinha, e comprar tomates, e lavar a roupa e sair correndo porque a Mila caiu e varrer a casa e essas coisas que não acabam nunca... Isso não é trabalho, certo?

Tiago: Sim, sim, e andar choramingando com todo mundo que passa em frente à porta!

Ester: E depois chega o dono da casa e se senta e cruza os braços e é preciso servir-lhe o jantar como a um grande rei porque ele não se presta nem mesmo a pegar seu prato!

Tiago: Era só o que me faltava ouvir! Passo o dia trabalhando como um burro por você e pelas crianças e não tenho direito a um prato de lentilhas?

Ester: Sim, a um prato de lentilhas e a quatro jarras de vinho, que para onde se vai todo o dinheiro, nesta maldita taberna!

Tiago: Com meu dinheiro eu faço o que bem quiser e você não tem nada com isso!

Ester: Sim, é claro, e essa escrava aqui servindo você calada. Em cinco anos de casada, você nunca me deu um centavo para comprar um lenço sequer!

Tiago: O que vou lhe dar é um pescoção, se continuar me faltando com o respeito!

Ester: O que acontece é que...

Tiago: O que acontece é que já chega! Mulher só deve falar quando a galinha mijar!... Você ouviu, Jesus? Diga-me, tenho ou não tenho direito de me divorciar deste tribufu?... Responda, não fique calado...

Jesus: Bem, Tiago, eu creio que... que ela é quem tem o direito de mandar você para o lixo.

Tiago: O que você disse?

Jesus: O que você ouviu. O que eu não entendo é como Ester agüentou tanto tempo.

Tiago: Ah, é...? Até você está contra mim...? Tudo bem, não há de ser nada. Vai pro diabo, você e o resto do mundo! E você é a primeira, Ester: vamos, some daqui, vai piscar o olho para aquele maldito fruteiro!

Jesus: Pra ver como são as coisas... Nós homens coamos até o último mosquito do que nos fazem as mulheres e elas têm de engolir nossos camelos deste tamanho...

Tiago: Por que está dizendo isso agora?

Jesus: Por que estou dizendo? Olhe, Tiago, a gente já se conhece... É melhor não falar, certo?

Tiago: Bem, é isso aí. É por isso que sou homem, não é?

Jesus: Sim, claro... estava esquecendo que Deus deu os mandamentos não a Moisés, mas à sua senhora...

Tiago: Olhe, Jesus, não comece...! Foi Moisés quem deu a nós, os varões, o direito de abandonar a mulher e nos divorciarmos. Algum motivo deve ter, não é?

Jesus: Sim, deve haver uma razão. Talvez pela brutalidade e dureza dos homens. Moisés deve ter pensado: é melhor que o marido a mande embora de casa; assim, pelo menos, não a moerá de pauladas... Mas no começo não era assim, está ouvindo? Porque Deus quis que o homem e a mulher vivessem unidos com os mesmos direitos e as mesmas obrigações para os dois. E o que Deus uniu, nem você nem qualquer outro homem pode separar assim sem mais nem menos, só porque dá vontade.

Salomé: Bem crianças, porque em vez de discutir não conversamos um pouco. Conversando é que a gente se entende, não é mesmo?... O que você acha, Ester?

Ester: Conversar!... Com esse seu filho não se pode conversar, Salomé. Ele grita e eu tenho de abaixar a cabeça: é só desse jeito que ele sabe conversar.

Tiago: Ora, é o marido quem deve ter a última palavra, não é?... Ou isso também já mudou?

Ester: Sim, sim, e você tem a última, a primeira e a do meio também.

Jesus: A primeira palavra foi Deus quem disse quando tirou a mulher da costela de Adão. Não a tirou da sola do pé nem de outro barro diferente, certo? Tirou-a daqui, de perto do coração... Porque Deus não queria dar a Adão uma escrava, mas uma companheira...

Uma menina: A bênção, vozinha!

Outra menina: Vovó! Vovó!



Nesse momento, entraram na casa as três filhas de Tiago e Ester. A primeira, Mila, de quatro anos, tinha umas tranças bem compridas. Terina, a segunda, dava a mão a Noemi, a menorzinha, que apenas sabia andar...



Tiago: Para que você trouxe as meninas, Ester?

Ester: Como para que? Elas vão comigo.

Tiago: Vão para onde?

Ester: Ora, vão comigo para Betsaida. São minhas filhas, não? Fui eu quem as pari!

Tiago: Ah, claro, e eu não fiz nada, certo? Foi um anjinho que veio e entrou pela janela... Olhe só os cabelos delas, são vermelhos como os meus... A meninas ficam comigo. Minha mãe, Salomé, cuidará delas.

Ester: As meninas são minhas e elas vão comigo!

Tiago: As meninas ficam aqui, está entendendo? Aqui, aqui e aqui!!!

Jesus: Está bem, Tiago, já chega de gritos!... Você diz que elas têm os cabelos vermelhos como os seus... Não se fixe nos cabelos. Olhe os olhos delas... Olhe-os... Venha, Mila, venha cá... Olhe os olhos, Tiago. Eles o olham com medo. Porque desde que nasceram só ouviram você gritar e dar porradas. Você mesmo disse antes: antes só do que mal acompanhado. E é verdade. É melhor ficar órfão do que ter um pai que mais parece um centurião do exército. Vai, Ester, leve suas filhas. E que Deus a ajude a ser mãe e pai ao mesmo tempo.

Tiago: Calma aí, o que você está dizendo, Jesus...? Isso... isso não pode acabar assim... Espere, Ester, espere...

Ester: E agora, o que é?

Tiago: Eu... bem, eu...

Ester: Você, sim, você que enche a boca protestando contra os abusos dos que governam, contra o rei Herodes, é um tirano pior que eles com sua família. Tiago, o filho de Zebedeu, o que fala de justiça e de repartir as riquezas do mundo entre todos os homens... Sim, sim, e com sua mulher não é capaz sequer de repartir o salário do dia...! É essa a justiça que você prega, não é mesmo? A justiça do funil: o cano mais largo para você e o mais estreito para os outros...

Jesus: Ester tem razão, cabelo-de-fogo. Estamos dizendo que as coisas têm de mudar em nosso país. Então vamos varrer primeiro nossa própria casa, não acha?

Tiago: Mas, eu... Eu... O que tenho que fazer para...? Na verdade, eu... eu...

Jesus: Esquecer-se do eu-eu-eu! É isso que você tem de fazer, Tiago! Esquecer-se de si e pensar um pouco nela, faze-la feliz!

Tiago: Bem, Ester... Então eu... digo, você... Puff... Se você quiser, nós podemos... Caramba, como é difícil a gente pedir perdão... Veja só, você está me entendendo, é isso que eu quero pedir-lhe... pois até o rei Davi meteu os pés pelas mãos e, veja só, depois acabou até cantando salmos...

Salomé: Bem, o resto vocês conversam em casa, porque estas três criaturinhas estão com fome e já está na hora da sopa!



Ester foi alegrando o rosto e, logo depois as meninas saíram correndo para a casa, bagunçando como sempre. A verdade é que meu irmão Tiago era um homem difícil e custava bastante dar o braço a torcer. Mas naquele dia ele conseguiu. E, pouco a pouco, ele e todos nós fomos compreendendo que é preciso tratar os outros como a gente gosta de ser tratado.







Os evangelhos não nos contam quase nada da vida cotidiana dos discípulos de Jesus. Mas como acontece em outras vidas, eles também viveram suas alegrias e suas tristezas, e passaram por momentos difíceis, mais ou menos grandes. Como todo ser humano, teriam momentos de mau humor, discutiriam, cairiam no ridículo. E, como todo ser humano, lutariam para ser melhores, para superarem-se. Tiago, discutindo com sua mulher – brigas tão corriqueiras entre esposos – dará oportunidade para que Jesus possa compartilhar com ele e com o resto de sua família suas idéias sobre o matrimônio, idéias que foram imensamente novas para o seu tempo.



As leis e costumes israelitas com relação à mulher eram marcadamente machistas. Até os doze anos, a menina ficava sob o poder do pai. A partir desta idade já podia se casar – o pai determinava muitas vezes com quem – e o matrimônio se tornava algo como a transposição da mulher do poder do pai, para o poder do marido. Uma vez casada, a mulher tinha direito de ser sustentada pelo seu marido, mas os direitos do esposo eram muito superiores. A mulher se via obrigada aos trabalhos domésticos e a obedecer ao esposo com uma obediência que era entendida como dever religioso. Era praticamente sua empregada. O marido tinha, sobretudo, os direitos que desnivelavam totalmente a inexistente igualdade conjugal: o direito de ter tantas amantes quantas quisesse, se pudesse sustenta-las, e o direito ao divórcio, que dependia exclusivamente de sua vontade.



Em Israel existia a prática do divórcio. E o “mal” que existia nesta prática vinha basicamente do fato de depender unilateralmente do homem, tornando a situação totalmente injusta para com a mulher. A lei de Moisés permitia o repúdio da esposa (Deuteronômio 24, 1). Mas no tempo de Jesus o que estava em questão eram as razões para repudia-la, os motivos legais para o divórcio. E havia duas correntes na interpretação desta antiga lei. Para uns, só causas graves (o adultério principalmente) justificavam que um homem se divorciasse de sua mulher. Mas para outros, bastavam bem poucas razões: o fato de a mulher ter deixado queimar a comida, ou que passasse muito tempo na rua conversando com as vizinhas etc. Na prática, e pelo fato de a sociedade ser fortemente machista,  esta corrente é que se havia imposto. Deste modo, havia divórcios motivados por quaisquer razões. A mulher repudiada ficava numa situação de abandono muito séria, por causa da má fama com que retornava à sociedade, já que de saída, iria viver sem depender de um homem.



O que fundamentalmente Jesus ensina sobre o matrimônio, tem muito a ver com esses costumes de seu país. A famosa frase “o que Deus uniu o homem não separe”, não enuncia um princípio abstrato sobre o matrimônio. “O homem” deve ser lido como “o varão”. Jesus está fazendo uma denúncia concreta contra a arbitrariedade machista: que “o varão” não separe o que Deus uniu. Que a família não fique sob o capricho do varão, que a mulher não fique desamparada por causa da intransigência do marido. Diante do emaranhado de interpretações legais sobre o divórcio, que favoreciam sempre o esposo, Jesus volta às origens, e ao recordar a história da criação, tal como é contada no Gênesis, ressalta que Deus fez, tanto o homem como a mulher à sua imagem e que por isso, o macho e a fêmea são iguais em dignidade, direitos e oportunidades. Isso não para dizer que se a mulher também pode decidir  o divórcio, a separação é válida. Não, o ideal cristão é, evidentemente, o matrimônio “para toda a vida”, uma vez que isso supõe responsabilidade e amor entre os que se casam, o que é o desejável. E isso não só do ponto de vista cristão, mas a partir do ponto de vista da maturidade humana. A separação dos esposos nunca deixará de ser um remédio para uma doença. Mas como todo remédio, deve ser usado com precaução, só quando realmente seja necessário e não haja outra saída. É uma decisão dolorosa e com muitas conseqüências sociais – principalmente para os filhos – que não pode ser tomada levianamente. Acontece a mesma coisa com os remédios: se se abusa deles, podem destruir o organismo.



(Mateus 19, 1-9; Marcos 10, 1-12)















































72

POR CAMINHOS DIFERENTES







Junto à grande praça de Cafarnaum, o bairro dos pescadores, encontra-se o poço que chamam “dos murmúrios”. À cada manhã, quando o sol assoma pelo horizonte, as mulheres se reúnem ali para apanhar água...



Uma moradora: Mas, comadre, você já reparou na cara daquela moça? Que olheiras mais fundas!... E a língua calada. Nem uma palavrinha durante todo o tempo em que esteve aqui... Justo ela que é sempre tão faladeira!

Velha: “Mal de amor, comadre, mal de amor”... Essa moça é jovem demais para ter alguma doença... Deve estar apaixonada... Não reparou como suspirava, quando foi embora?

Salomé: Bom dia para todas! Acordaram bem, vizinhas?

Outra moradora: Com vontade de trabalhar, dona Salomé, enquanto tiver saúde...

Moradora: E além disso estamos aqui comentando a respeito da Raquelzinha...

Salomé: E o que acontece com a Raquel?

Velha: Mas, será possível, Salomé que você não reparou nada naquela cara, já faz algum tempo? Parece que nem tem sangue no corpo e fica assim abobada, olhando as moscas...

Vizinha: Você fala com ela e ela não está nem aí... Entra por um ouvido e sai pelo outro...

Salomé: Vai ver, está doente...

Vizinha: Doença coisa nenhuma. É o amor. Essa menina anda apaixonada... E você mais do que ninguém devia saber...

Salomé: Mas, por que você está dizendo isso? O que eu deveria saber dos amores dessa moça?

Vizinha: Dona Salomé, é sério que você não reparou em nada? Raquel está caidinha por Jesus, o nazareno... Não me diga que você não percebeu como ela fica olhando para ele quando ele fala...?

Outra vizinha: E diga se não é verdade que nesta semana ela tem ido à sua casa um dia sim e outro também... a troco de que...?

Salomé: A menina precisava de um pouco de sal e veio me pedir...

Velha: E no dia seguinte queria um tomate...

Vizinha: E no outro um pouco de farinha...

Salomé: É, foi isso mesmo...

Vizinha: Mas, Salomé, será que você não enxerga? Não percebe que ela sempre aparece por lá para ver se topa com Jesus, em sua casa?

Vizinha: E também fica andando lá pelo cais, como uma tonta, pra cima e pra baixo só para ver se ele não está com seus filhos... Está apaixonada por ele. E não consegue esconder.

Salomé: Mas, será possível que isso é verdade?

Vizinha: Claro que é possível. Comece a prestar atenção e verá que temos razão... E depois, conte tudo pra gente, está bem?



Raquel: Bom dia, dona Salomé!

Salomé: Bom dia... Ah, é você...Entre, entre... O que houve?... Está querendo alguma coisa, Raquel?

Raquel: Dona Salomé, estou precisando de um pouco de azeite...

Salomé: Ah, é? O seu acabou?

Raquel: Bem, ainda tenho um pouquinho, mas não dará até amanhã... A senhora sabe que é melhor prevenir do que remediar...

Salomé: Claro, claro... Bem, mas entre um pouco, não fique aí parada na porta...

Raquel: A senhora... a senhora está sozinha?

Salomé: Estou, filha, os rapazes e o velho Zebedeu estão pescando, como sempre.

Raquel: Sim, claro, trabalhando...

Salomé: Tem que trabalhar pra poder comer, minha querida... Assim disse Deus desde o princípio: ganhar o pão com o suor do rosto...

Raquel: E... e não há mais ninguém por aqui, não é?... Então vou indo...

Salomé: Mas, filha, e o azeite que você pediu?

Raquel: Ui, que cabeça... Com tanto trabalho que tenho em casa, fico toda esquecida... Dez irmãos pequenos dão muito que fazer...

Salomé: Mas, não tenha tanta pressa, minha filha... Por que não se senta um momento para conversarmos um pouco...? Assim você descansa um bocadinho...

Raquel: Bem, mas...

Salomé: Nada de mas... Sente-se aqui...  É, eu também vou me sentar... Ai, Raquel, menina, como eu gostaria de ter uma filha como você para poder conversar com ela... Mas, os dois foram homens, você sabe. Quando você tiver filhos, menina, peça a Deus que lhe dê as duas coisas: machos e fêmeas. São os homens que ganham o pão, mas somos nós que o amassamos...

Raquel: Ui, dona Salomé, até que eu tenha filhos... Tem que chover muito até que isso aconteça...

Salomé: Não, menina, você já está na hora de casar... E... e tenho certeza de que você pensa nisso muitas vezes, não é mesmo?...



Raquel ficou mais vermelha do que o lenço que tinha na cabeça, e ficou calada. O coração saltava-lhe dentro do peito.



Salomé: Olhe aqui, minha filha, eu... eu quero ajuda-la. Conte-me tudo. Você não tem mãe e por isso precisa contar a alguém o que vai dentro de você...

Raquel: Dona Salomé... ai, dona Salomé... já faz um mês que não consigo dormir e...

Salomé: E de noite, quando não dorme... fica pensando nele... Em Jesus, não é mesmo?

Raquel: Mas, como a senhora ficou sabendo?

Salomé: Ai, filha, o amor é como um sino. Faz barulho demais para que os outros não percebam.

Raquel: E a senhora acha, dona Salomé, que isso é alguma coisa errada?

Salomé: Não, Raquelzinha, errada por que? Você está é apaixonada. Eu ficaria tão contente se esse rapaz se interessasse por alguma mulher e se casasse de uma vez... Esse moreno carrega tanta vida dentro de si, e no entanto está sozinho... Eu acho que isso não está certo...

Raquel: A senhora acha, dona Salomé, que ele está interessado por mim...?

Salomé: Bem, filha, esse Jesus é meio estranho, e isso eu não saberia dizer... Mas, fique tranqüila. Eu vou ajudar você. Eu sei como provocar uns comichões nesse moreno, para saber o que ele pensa... Já está vivendo com a gente uma boa temporada e cada vez eu o conheço mais... Sim, deixe isso comigo...



Salomé: Velho, você tem que falar com Jesus. E bem claro...

Zebedeu: Está bem, vou falar. Se você está dizendo que esta moça vale a pena...

Salomé: Raquel é boa, trabalhadora e carinhosa... E, além disso, é muito bonita. E parece que gosta muito dele. O que mais o moreno vai querer?

Zebedeu: Ah, velha, Jesus é Jesus, a gente nunca sabe... Mas está bem, eu vou falar com ele. De homem pra homem. Vamos saber por que esse camarada não se casa. Esta é uma pergunta que me faço todas as manhãs quando o vejo ir para a praça a procura de trabalho... E ao chegar a noite, volto a faze-la e nada!... Bah, acho que ele é meio maluco!



Zebedeu: E aí, Jesus?

Jesus: Como está Zebedeu?

Zebedeu: Já faz uns dias que estou procurando um momento para falar com você. Devagar e claramente...

Jesus: Mas, o que está havendo?

Zebedeu: Jesus, quero falar com você, como um pai, como um amigo... Eu gosto muito de você, rapaz, e, para ser sincero, de homem pra homem, não entendo por que... por que você não teve mulher e continua não tendo, caramba!

Jesus: Ah, era isso...?

Zebedeu: Sim, era isso. O que você me responde?

Jesus: Pois, eu não sei... Pensava que você ia dizer para deixar de me meter em tanta confusão, e você me vem com essa... Não esperava...

Zebedeu: Escute bem, rapaz, a vida passa voando e as energias de um homem se esgotam mais depressa do que você imagina... Você está sempre falando de Deus, do que Deus quer... Pois bem, se Deus pôs no homem a semente da vida, foi para semeá-la na mulher, e não para que ela ficasse estéril. Não é mesmo?

Jesus: Sim, você está certo. Deus gosta de ver árvores cheias de frutos.

Zebedeu: Então, por que diabos você continua sozinho...?

Jesus: Mas eu nunca estou sozinho, Zebedeu. Desde que começamos com o grupo a trabalhar nesta história de Reino de Deus, o que mais me sobra é gente ao redor...

Zebedeu: Não, não, não pense que vai escapar como um desses peixes voadores, condenado... Eu digo “sozinho”. Sozinho de noite. Sozinho, mulher, sem filhos... Você sempre andará rodeado de gente, mas uma coisa não exclui a outra... Não venha querer me enrolar agora... Sabe o que é, Jesus, é que quando um homem não tem mulher, todo seu vigor sobe aqui para os miolos e... tururu... louco! Tome cuidado, tomara que não esteja acontecendo algo parecido com você...

Jesus: Você me acha com cara de louco?

Zebedeu: Não, não estou dizendo por isso, mas...

Jesus: Olhe, Zebedeu, agora estou me lembrando de uma coisa que uma vez ouvi na sinagoga: que o solteiro não é uma árvore seca, que também os solteiros têm um lugar na casa de Deus.

Zebedeu: Bah, lá vem você com as suas tiradas... Olhe, Jesus, deixemos de lado as palavras bonitas e vamos ao que interessa... Será que... Você não gosta de mulher? Será isso?... Será que você é um maricão?... Não, não diga nada! Não me entra na cabeça que você não queira casar  porque é uma dessas bichinhas asquerosas!

Jesus: Não fale assim, Zebedeu. Eles não são bichinhas asquerosas.

Zebedeu: Ah, não? E o que são então?

Jesus: São homens que Deus ama. E eles também não são árvores secas.

Zebedeu: Ah, Jesus não queira defender esse tipo de gente...!

Jesus: Então também não os ataque, Zebedeu. O que você sabe deles e de seus problemas?

Zebedeu: Bem, bem, vamos ao que interessa... Você não é desse tipo... Então, por que não se casa? Não vai me dizer que nunca encontrou uma mulher que gostasse...

Jesus: Bem, eu conheci uma moça... já faz alguns anos... Mas não enxergava claro...

Zebedeu: Solteirão toda a vida! É isso que você quer ser, não é mesmo?

Jesus: Calma aí, Zebedeu. Ser solteiro é uma coisa. E ser solteirão é outra bem diferente, pode crer!

Zebedeu: Bah, um solteiro é metade de homem. E uma solteira também. A filha que fica virgem é a vergonha de seus pais!

Jesus: Uma metade de homem é um homem egoísta. E egoístas existem tanto entre solteiros como entre casados.

Zebedeu: Jesus, escute, há uma moça no bairro está apaixonada por você...

Jesus: Ah, é...? Então era aí que você queria chegar, não é, Zebedeu?

Zebedeu: Sim, isto porque você não tem olhos para enxergar que uma mulher o ama, e eu digo isso para ver se lhe esquenta o sangue, caramba!

Jesus: E quem é ela?

Zabedeu: Raquel, a filha da falecida Agar, aquela que tem um monte de irmãozinhos.

Jesus: Ah, já sei. Parece uma boa moça.

Zebedeu: Ponha boa moça nisso! E seria uma boa mulher para você!

Jesus: Sim, é provável, Zebedeu, mas...

Zebedeu: Nada de mas... Hoje você vai se encontrar com ela, conversa, e já podem ir planejando as coisas...

Jesus: Espere aí, Zebedeu. Não corra tanto.

Zebedeu: O que acontece? Você não a ama? Você ama outra?... É isso, não é? Muito bem. Pode dizer pra mim, rapaz. Fica tudo entre nós.

Jesus: Eu amo todas, Zebedeu.

Zebedeu: Conversa fiada! Quando alguém diz que ama todas, não ama nenhuma!

Jesus: Pode crer, eu amo todas. E por isso preciso ter as mãos livres para poder ajuda-las.

Zebedeu: Mas, quem você pensa que é? O protetor das mulheres abandonadas?

Jesus: Não é isso, Zebedeu. O que acontece é que eu quero trabalhar para meu povo. E você sabe que as coisas estão difíceis. Veja só o profeta João, como lhe cortaram a cabeça. E então, como ter uma mulher e mantê-la em toda essa confusão? E as crianças, então? Se ficam sem pai, quem lhes dará pão, heim?...Pode crer, Zebedeu, eu preciso ter as mãos livres. E ainda mais nesses tempos em que Deus anda com pressa, e até para dormir é preciso ter as sandálias calçadas.

Zebedeu: Você torna as coisas muito tenebrosas, Jesus. Eu não digo para você cruzar os braços. Mas, acho que se pode lutar e estar casado, demônios!

Jesus: Sim, você está certo, é claro que se pode. Veja Pedro, tem sua Rufina, quatro moleques e agora mais um que acabou de nascer. Tiago, a mesma coisa. João está solteiro, mas André já tem sua noiva e qualquer dia acaba casando... No Reino de Deus há lugar para todos e, nele, todo mundo vale a mesma coisa, os casados, os viúvos, os solteiros.

Zebedeu: Mas você... você...!

Jesus: Eu, o que, Zebedeu?

Zebedeu: Você não fez nada para se casar, caramba!

Jesus: Tampouco não fiz nada para não me casar, caramba!

Zebedeu: E então, como fica?

Jesus: Então não fica nada, Zebedeu. Que cada um faça seu caminho e veja o que Deus vai lhe pedindo. Veja você, Deus chamou Abraão lá do norte e Moisés lá do sul, por caminhos diferentes, mas os dois chegaram à terra prometida...







Só o evangelho de Mateus registra a frase de Jesus sobre “os eunucos, os castrados, os celibatários pelo reino”, que dão azo a este episódio. Para os especialistas, estão entre as palavras mais “enigmáticas” de Jesus, no sentido de que é difícil para nós hoje compreender seu significado exato  e sua exata ocasião histórica. Enigmáticas também porque deveriam soar estranhas para seus contemporâneos. Tudo parece indicar que Jesus tentou explicar com essas frases sua situação pessoal aos que lhe perguntaram sobre ela.



Em Israel, nem a virgindade nem a vida de solteiro, nem o celibato, entendidos como situações estáveis, representavam algum valor. Pelo contrário, eram um antivalor, uma desgraça, algo negativo. A virgindade de uma mulher era, sim, muito apreciada, mas somente antes do casamento. A virgindade da moça antes do casamento era defendida por ela e por sua família e era um troféu que levava ao casamento. Mas era um opróbrio, uma mancha familiar, se uma mulher não chegasse a se casar e ter os próprios filhos. Da mesma forma, o homem. Um não casado, seja por qualquer razão, era visto como algo estranho, incompreensível, preocupante, a não ser que tivesse feito um voto especial (alguns dos monges essênios, por exemplo). O valor era a relação sexual e a fecundidade. O restante não entrava na escala de valores daquele povo e, portanto, era entendido como contrário à vontade do Deus da vida. Todas as escrituras exaltam o matrimônio, a união sexual do homem e da mulher como algo positivo, bonito e como expressão maior da relação humana, a mais exata imagem do amor que Deus sente pelo ser humano e pelo seu povo. Qualquer desprezo, rechaço ou menosprezo à sexualidade humana não tem nada a ver com a mensagem bíblica; está em contradição com ela.



Jesus não se casou. Embora isso não seja dito expressamente por nenhum texto do Novo Testamento, tudo nos leva a crer este não casar-se como histórico. O mesmo se pode dizer de João Batista, e pelos mesmos dados. No entanto, o fato de Jesus não se casar, não significa que foi um ser assexuado, que o sexual não significasse nada para ele. Jesus foi um homem, não uma mulher. E como homem, teve uma dimensão sexual masculina. Neste sentido, não é descabido pensar que houvesse mulheres que sentissem atração por ele. Nada disso aparece no evangelho, mas não tanto porque não existisse em sua vida, mas precisamente porque na mentalidade de seus contemporâneos, era algo tão natural, que não era considerado tema que devesse ser escrito. Tampouco nunca se diz que Jesus espirrasse ou tivesse dor de estômago ou que assobiasse uma canção. E é praticamente certo que isso aconteceu.



Textualmente, Jesus se refere a três tipos de eunucos (não casados, impotentes, homens sem mulher). Os primeiros são “s que nasceram assim do ventre de sua mãe”. Sempre houve meninos homens que, por algum defeito físico – geralmente congênito – não podem ter relações sexuais com uma mulher. Dentro desse grupo se incluiria o homossexual, por apresentar algum transtorno – físico ou psíquico – que obstaculiza sua atração física para uma mulher. O outro grupo de que Jesus falou foi daqueles que “foram feitos eunucos pelos homens”. Está se referindo a meninos e homens que foram castrados. Ao longo da história – inclusive ainda hoje – a castração do homem era institucionalizada. Nas cortes orientais, os reis castravam os homens que eram colocados como guardiões de seus haréns. Asseguravam assim que não teriam relações sexuais com suas mulheres. Em outros países se castrava com a finalidade de conseguir uma maior inteligência, por exemplo, nos professores. Considerava-se que eram feitos para o homem, a guerra, o prazer e o poder. E para a mulher – e para os “efeminados” transformados em não-varões – os trabalhos delicados, uma certa sabedoria etc. Em Israel, a Lei religiosa proibia  castrar tanto os homens quanto o gado. O castrado não podia entrar no templo nem na sinagoga e a rês castrada não podia ser oferecida em sacrifício, Entretanto houve muitos castrados nas cortes dos reis de Israel, por influência de outros países orientais ou por terem sido levados ao país como escravos. Finalmente, Jesus fala textualmente de uma terceira classe de homens: “Aqueles que se fazem eunucos pelo Reino de Deus”.



Este tipo de vida solteira, ou virgindade – o celibato “pelo reino” – na nova categoria que Jesus acrescenta e, depois dele, o cristianismo, ao panorama da sexualidade, tal como era entendido até então no Antigo Testamento, trata-se de um celibato relacional. Isto é, não é um valor em si mesmo, mas em relação ao Reino, pelo Reino. Esta foi a opção de Jesus. Não se casou, não porque fosse anormal em sua sexualidade ou porque fosse castrado, ou porque fosse impotente nem tampouco porque fosse de tipo de homens “solteirões” que temem a mulher e fogem dela ou buscam a vida solitária por rechaço à vida de comunidade ou de convivência. Mas que não se casou, renunciou ao matrimônio “pelo reino”.



Jesus viveu profundamente a “urgência” do Reino de Deus. Concebeu sua missão como algo tremendamente importante, que devia além disse ser realizado em pouco tempo, pois o prazo era curto, o tempo de Deus estava se cumprindo, não havia tempo a perder. No episódio, este modo de entender sua vocação está na base de sua opção de não se casar. Servir o Reino é em essência a justificação do celibato cristão. Quando o compromisso com o Reino é vivido radicalmente, pode-se estar em situações dificilmente compatíveis com uma vida familiar normal. O celibato permite uma mobilidade, uma pobreza e uma liberdade, que em princípio não se dá no casamento.



Qualquer postura frente à sexualidade é válida diante de Deus. Não cabe, nem do ponto de vista bíblico nem cristão dividir virgens e casados em “melhores” ou “piores”, em cristão de primeira e segunda categoria, em perfeitos e imperfeitos. Menos ainda cabem as condenações. Com relação à homossexualidade, o evangelho – que não diz nada explicitamente – diz tudo no conjunto de sua mensagem, ao proclamar com tanta força a liberdade e o respeito à pessoa. Em todo caso, no Reino eles são os privilegiados do amor de Deus quando a sociedade os rechaça, zomba e os marginaliza. É importante relembrar a bela frase que o profeta Isaias lhes dedica e que Jesus recorda neste episódio (Is 56, 3-5). Eles são amados por Deus e herdeiros de sua promessa (Sab 3,14). Israel esperava para os tempos do Messias esta acolhida generosa da parte de Deus, dos eunucos e castrados como cidadãos do Reino em pé de igualdade com todos.



Tudo o que Jesus falou no texto de Mateus faz referência explícita aos varões. A sexualidade feminina, suas características, sua problemática, são uma conquista bastante recente da ciência e da sociologia. Até muito pouco tempo atrás se pensava que o único valor da sexualidade da mulher estava na fecundidade. O prazer da mulher na relação sexual era visto como algo suspeito, senão mau. Por outro lado, como a mulher não “decidia” casar-se ou não, porque seus pais tomavam a decisão por ela, tampouco se podia colocar o problema do celibato feminino. No entanto, hoje, em outra sociedade e com idéias mais evoluídas, podemos dizer que o característico do celibato cristão – maior liberdade para viver e morrer pelo Reino – aplica-se por igual, tanto para o homem como para a mulher. Os dois são igualmente capazes desta opção e, tanto um como o outro, podem se realizar nela plenamente.



(Mateus 19, 10-12)
















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