sábado, 30 de abril de 2011

PAPO JOVEM

Não esqueça de deixar sua pergunta para a Psicóloga!!!
Tua pergunta pode ser em português ou español. 

Crisma dos jovens: parabéns!!!

O 1 de maio às 10h00 na comunidade São Pedro será realizada a Crisma dos jovens das comunidades que vem se preparando faz dois anos. Desde já queremos parabenizar aos jovens que receberão o sacramento da maturidade cristã e aos catequistas que os prepararam. 

Reunião do Setor Juventude

O 6 de maio, sexta feira às 19h30, teremos uma reunião para preparar o dia mundial de oração pelas vocações. Esse dia de oração será no dia 21 de maio às 19h30 após a missa da comunidade São Pedro. 

Capítulo 25 a 30: cobrador de impostos; na casa do publicano; ovelha perdida; Deus está de nosso lado; o trigo dos pobres; as mãos secas.

25
O COBRADOR DE IMPOSTOS



À saída de Cafarnaum, no caminho que vem de Damasco, havia um posto da alfândega onde Mateus, o publicano, filho de Alfeu, cobrava os impostos. Todas as mercadorias dos comerciantes que entravam por esta rota na Galiléia pagavam ali sua taxa...

Mateus: Ei, você de turbante vermelho!... Sim, você mesmo, não adianta disfarçar. Pode soltar sete denários!
Um mercador: Sete denários?...  Sete denários por duas caixas de pimenta? Isso é demais!
Mateus: Essa é a taxa. E sem discutir, amigo, senão chamo um dos soldados...
Mercador: Desgraçado!... Ladrão!... O imposto não é tão alto assim!
Mateus: Já disse para soltar as moedas e ir embora! Tem muita gente esperando...
Mercador: Tome!... E que você apodreça!
Mateus: Outro... Vamos ver... Quantos sacos de lã você está levando?
Outro mercador: Estou levando dez, senhor.
Mateus: Dez, não é mesmo?... Mentiroso!... E aqueles outros quatro que você escondeu lá atrás dos camelos, heim?
Mercador: Mas é que esses não são de...
Mateus: Cale a boca, safado. Agora você vai pagar mais quatro para que aprenda a respeitar a lei. A mim você não engana, amigo...
Mercador: Mas eu não queria...
Mateus: Dez e quatro são catorze e mais quatro dezoito. Vamos, pode escorregar dezoito denários. E vai contar mentiras para a sua avó!

Mateus molhou a pena num frasco de tinta e rabiscou alguns números. Inclinado sobre a mesa dos impostos parecia mais corcunda do que era. Sua barba e suas mãos estavam manchadas de tinta. Junto a seus papéis havia sempre uma jarra de vinho. Quando Mateus via de longe alguma caravana ou os comerciantes de passagem se aproximando, esfregava as mãos, metia na goela um par de goles e se preparava para arrancar-lhes uma boa porção de dinheiro... Em toda Cafarnaum não havia sujeito que fosse mais odiado. Nós, homens, cuspíamos ao passar diante de sua banca. As mulheres o amaldiçoavam e nunca vimos um menino sequer que se aproximasse dele.

Outro mercador: Mas não me cobre tanto, senhor... Entenda que com esse azeite não ganho nem para dar de comer aos meus filhos...
Mateus: E é para mim que você vem dizer isso? Eu não dou esmolas.
Mercador: Mas não podia abaixar um pouco?... Eu preciso...
Mateus: Vai choramingar em outro lugar, e tire as moedas da bolsa. Eu faço o que me é ordenado...
Outro mercador: Você se aproveita de nós porque não sabemos ler, seu filho da mãe! Estas contas não estão claras!
Mateus: Escute aqui, maldito zarolho, quem mandou você meter o focinho nisto? Vamos, são vinte moedas, e vai andando!

Os impostos eram o pesadelo de nós, pobres. Roma cobrava impostos em toda a Judéia. Em nossa terra, na Galiléia, tínhamos de pagá-los ao rei Herodes, um vendido aos romanos. Seus funcionários, os cobradores de impostos, a quem chamávamos publicanos, estavam nas entradas de todas as cidades galiléias cobrando os direitos de alfândega que o rei ordenava. Os publicanos, no entanto, salgavam ainda mais os impostos e ficavam com a diferença. Eles se enriqueciam depressa. E mais depressa ainda ganhavam o ódio e a antipatia de todos.

Mateus: Muito bem, vamos lá, o último... O que tem a declarar?
Outro mercador: Dois sacos de trigo e três barris de azeitona.
Mateus: Abre esse saco, vamos ver se tem alguma coisa escondida...


Ao meio da manhã, Mateus havia acabado com as caravanas da primeira hora. Era o momento que aproveitava para contar as moedas. Separava o que tinha de entregar aos soldados de Herodes e o que guardava para si. Então se sentava à mesa com sua jarra de vinho e seu livro de contas. Não sabia viver sem nenhum dos dois. Perto da guarita, os soldados que vigiavam a alfândega, jogavam dados, esperando que chegassem novos mercadores. Foi nesta hora que Jesus passou diante da banca de coleta de impostos de Mateus...

Mateus: Ei, você, venha cá...
Jesus: O que foi?
Mateus: O que está levando neste saco?
Jesus: Ferraduras.
Mateus: Ah! Não me diga, são ferraduras? E aonde você vai se se pode saber?
Jesus: Vou a Coroazim.
Mateus: Fazer o que?
Jesus: Vou ferrar umas mulas. Estive fazendo as ferraduras e agora vou vendê-las. Consegui esse trabalhinho.
Mateus: Três denários. Pague e pode ir embora. Está surdo? Eu disse três denários.
Jesus: Mas como três denários se não vou sair fora da Galiléia? Estou dizendo que vou a Coroazim.
Mateus: Eu não acredito. Não sou idiota. Você é um daqueles que anda metido no contrabando com os sírios!
Jesus: Que contrabando? Vou a Coroazim ferrar umas mulas, estou dizendo!
Mateus: E eu lhe digo que você vai para fora da Galiléia e está no contrabando!... Pode se meter na confusão que quiser. Mas tem de soltar aqui os três denários...
Jesus: Mas o que é que você está falando? ... Além disso, não posso lhe pagar. Não tenho nada no bolso.
Mateus: Pois então me dê as ferraduras e com isso me paga.
Jesus: Mas, como vou deixar as ferraduras? Se não as levo, não há trabalho e se não há trabalho para que eu vou a Coroazim?
Mateus: Ah, amigo, isso é problema seu! Os três denários ou o saco de ferraduras.
Jesus: Mas, que negócio é esse?
Mateus: Esta é a lei, amigo. E a lei agarra pelo cangote contrabandistas como você. Do mesmo jeito que eu gostaria de pegar você.
Jesus: Sinto muito, Mateus, mas não faço contrabando com os sírios, não tenho três denários e nem posso deixar as ferraduras. Tenho de trabalhar. Por favor, deixe-me ir embora.
Mateus: Não me fale de favores quando estou lhe falando de lei. E além do mais, não quero gastar saliva com você... Puah!... Estou com a garganta seca... Você é um contrabandista. Não pense que me engana. Essas ferraduras não saem da alfândega. E está falado. Agora faça o que quiser...
Jesus: Puff!...Não é possível! Pois terei de esperar, para ver se com a fresca da manhã se lhe aclara a cabeça e comece a raciocinar... Posso me sentar por aqui?
Mateus: Por mim, ponha o trazeiro onde lhe der vontade. E não me amole mais. Pros diabos esses contrabandistas.

Jesus se sentou no chão, apoiou as costas em uma das paredes da guarita de Mateus e ficou olhando o caminho que se perdia ao longe como uma fita. O sol começava a esquentar com força a terra e em pouco tempo adormeceu. Enquanto isso, Mateus continuou contando suas moedas e borrando papéis com números e mais números... Quando Jesus despertou, a jarra de vinho do cobrador de impostos estava seca e os olhos do publicano, vermelhos e brilhantes. Como todo dia, antes que o sol chegasse à metade do céu, Mateus já estava bêbado...

Jesus: Hummm... acabei dormindo. Bem, Mateus, já resolveu meu assunto?... E então, vai me deixar continuar o caminho para Coroazim com as ferraduras?
Mateus: Daqui você não sai! Escutou? Hip! E deixe-me trabalhar em paz!

Jesus se levantou e esticou os braços, bocejando. Depois, inclinado sobre a mesa dos impostos, se pôs a seguir com atenção os movimentos da pena que Mateus manejava com suas mãos manchadas de tinta...

Jesus: Isso... isso deve ser difícil, não, Mateus?
Mateus: Hummm...
Jesus: Digo, isso de escrever. Eu sei escrever algumas letras somente... Gostaria de aprender mais. Você escreve bem depressa.
Mateus: Para isso tive um professor... E no meu ofício, sem escrever, não se serve para nada...
Jesus: Se ficar mais tempo em Cafarnaum, você não poderia me ensinar...?
Mateus: Hummm... Eu sei escrever, mas não sei ensinar, caramba!
Jesus: Escute, Mateus, há quanto anos você faz isso?
Mateus: Bah, muitos. Já nem me lembro mais. Um, dois, três, quatro... Não me lembro.
Jesus: E você gosta deste trabalho?
Mateus: Mas é claro que gosto, amigo. Quem não gosta de ter sempre dinheiro para comprar o que quiser? Para mim não falta nada. Claro que eu gosto disso... Hip! Porcaria, você está me fazendo confundir as contas... Cale a boca de uma vez e deixe-me trabalhar!
Jesus: Mas, isso lhe custou um pouco caro, não é mesmo?
Mateus: Caro, como?
Jesus: Digo que para ter tudo o que quer, você ficou sem nenhum amigo.
Mateus: E para que eu quero amigos, heim?  Ninguém é amigo de ninguém. Se alguém vai atrás de você, pode ficar desconfiado, porque alguma coisa ele quer lhe tirar. Eu já não acredito nisso!
Jesus: Bem, mas... não vai me dizer que já está acostumado a que as pessoas cuspam quando passam por aqui.
Mateus: Por mim, que cuspam o quanto quiserem. E se quiserem assoar o nariz, que o façam também. Eles cospem e eu os amaldiçôo. Eles me insultam, mas não  podem fazer nada comigo. Eu sim. Eu tiro o dinheiro deles. Isso é o mais importante. Eu posso mais que eles! Entendeu? Não acha que eu tenho razão?... Pois para mim tanto faz...

Mateus deixou por um momento os números e a tinta, e virou-se para Jesus com os olhos inchados pelo álcool...

Mateus: Escute, quem é você, e o que você quer com tanta pergunta?  Não vai pensar que não o conheço... Eu sei muito bem com que tipos você anda por aqui desde que chegou a Cafarnaum. Aquele magrão, o cabelo de fogo e...
Jesus: ... e João e Pedro...
Mateus: Sim, uma cambada de bandidos. Contrabandistas, isso é o que eles são. E você que é forasteiro, deve ser o chefe...
Jesus: Que história é essa de contrabandistas!... Somos um grupo de amigos, Mateus. Eu os conheci no Jordão quando fomos ver o profeta João...
Mateus: Outro agitador!... Vai saber que conspirações vocês estão tramando! Mas eu vou dar um jeito de ficar sabendo... Tenho meus meios.
Jesus: Se quiser ficar sabendo, a melhor maneira é vir você mesmo um dia com a gente.
Mateus: Sim, sim, tudo isso é para disfarçar... Conheço bem os tipos como você. São como camaleões, mudam a cor da pele, zaz!... assim rápido.
Jesus: Estou falando sério, Mateus. Venha um dia à casa de dona Salomé e podemos conversar sobre...
Mateus: E por que você não vem à minha casa, heim? É que você e seus amigos não se atreveriam a pôr um pé na minha casa, não é?
Jesus: A mim não importaria nada. Se você me convida, aceito agora mesmo. E direi aos outros...
Mateus: Você viria comer na minha casa?
Jesus: Sim, Mateus. Vou lá quando quiser.
Mateus: Reconheço que você sabe disfarçar muito bem, forasteiro. Mas... faz muito tempo que não tenho convidados...
Jesus: Pois aqui está o primeiro. Quando vamos comer em sua casa?... No sábado?... Ou nesta noite mesmo, se quiser...
Mateus: Você está falando sério?
Jesus: Mas é claro que sim, Mateus. Depois do tempo que passei detido nessa maravilhosa alfândega, estou com uma fome que não me agüento. Vou avisar os outros. Iremos à sua casa hoje à noite. De acordo?
Mateus: De acordo. Hip! Mas... será preciso mais vinho para tanta gente. Eu não posso comer sem vinho!
Jesus: É, estou vendo mesmo...
Mateus: Então venha comigo para comprá-lo...
Jesus: Negócio fechado. Vamos!

Jesus deixou as ferraduras junto à mesa dos impostos e caminhou até a taverna do Joaquim, o caolho, que ficava à saída de Cafarnaum. Mateus, cabaleando, se levantou e o seguiu.


De Mateus, um dos doze apóstolos de Jesus, sabemos pelos dados que nos dá o Evangelho, que era filho de um tal Alfeu e que sua profissão era a de cobrador de impostos no posto da alfândega de Cafarnaum - cidade de passagem das caravanas que vinham de Damasco. O evangelho de Lucas e o de Marcos o chamam também de Levi. Desde o século II ele é considerado o autor de um dos quatro evangelhos. No relato se apresenta Mateus como um homem de personalidade fraca, pessimista, cético, que busca na bebida uma espécie de refúgio diante da solidão e do desprezo a que seu ofício o condenava.

Desde a época da dominação persa, Israel conheceu o pagamento de impostos a uma potência estrangeira. Mas até os tempos do império romano não se cobrava de forma sistemática. Toda província romana devia contribuir com seus impostos ao fisco de Roma, embora algumas cidades e príncipes aliados ao império pudessem cobrá-los para seu próprio proveito. Este era o caso do tetrarca galileu Herodes Antipas, que os recolhia em diferentes cidades da Galiléia, entre elas Cafarnaum. Mateus era, pois, um funcionário do rei Herodes, grande colaboracionista do imperialismo romano. Os impostos eram uma dura carga para o povo e uma importante arma de controle político nas mãos dos governantes. Às somas já estabelecidas se acrescentavam quantidades de todo tipo de presentes e subornos que era preciso dar às autoridades e aos serviços administrativos. A corrupção se estendia desde os mais baixos até os mais altos postos do poder.

Os cobradores, ou coletores dos impostos (= publicanos) formavam parte da categoria social mais desprezível do país, junto com os agiotas, cambistas, jogadores de azar e pastores. Neste ofício, além da estrita cobrança do tributo - já suficiente motivo para o ódio do povo - se realizava todo tipo de trapaça. Por estar baseado na fraude e por ser impossível conhecer o número de todos os fraudados ou enganados, ser publicano era uma mancha social que supunha a perda de todos os direitos civis e políticos. Na linguagem popular, os cobradores de impostos se associam sempre aos ladrões, aos pagãos, às prostitutas, aos assassinos, aos adúlteros. Eram realmente a escória da sociedade. Tudo isso põe em relevo o grande escândalo que constituiu o fato de Jesus chamar um publicano para tomar parte em seu grupo e de repetir em várias ocasiões que a Boa Notícia que trazia era destinada prioritariamente aos “publicanos e pecadores”.

Mateus seria, com muita probabilidade, um homem rico, à custa das fraudes habituais de seu ofício. Mas não pertenceria a nenhuma família de prestígio, porque os cobradores da alfândega não eram mais que sub-arrendatários dos ricos contratantes deste ofício, que costumavam ser de classe social elevada. A vocação de Mateus foi interpretada muitas vezes como prova de que Jesus convocou para seu grupo homens de diferentes classes  para significar assim a harmonia social que busca o evangelho. Não é correta esta idéia. A mensagem evangélica, evidentemente, se dirige a todos. Mas não a todos da mesma maneira. Aos pobres se anuncia uma boa notícia: vão deixar se sê-lo. Aos ricos se lhes exige que renunciem às suas riquezas se quiserem entrar no Reino. A mensagem evidencia sempre que Deus toma partido,  que não fica neutro. Que Jesus se relacione com Mateus e o chame para seu grupo significa que ele rompe as barreiras religiosas esociais dos homens “decentes” de seu tempo, fazendo-se amigo de indesejáveis e pecadores.

Nos tempos de Jesus se escrevia usualmente em papiros. O papiro era um arbusto aquático, que crescia próximo aos pântanos. Era colhido ao norte do lago de Tiberíades. Com suas fibras se faziam cestas, barcos e uma espécie de papel que se enrolava facilmente. A tinta com que se escrevia sobre ele era um corante negro, bastante espesso, feito principalmente de fuligem. Muitos escreventes levavam os tinteiros pendurados na cintura. Um coletor de impostos tinha de dominar, naturalmente, a escrita. E, ordinariamente, devia ter também noções de grego, porque em seu ofício devia relacionar-se com comerciantes e traficantes de outros países. Diante desses conhecimentos que teria Mateus, a cultura de Jesus era notavelmente inferior, a de um “semi-alfabetizado”. Naquela sociedade, como em qualquer outra com elevado grau de analfabetismo, quem sabia escrever era um privilegiado e, de alguma maneira, tinha um certo poder sobre seus conterrâneos incultos, que dependiam de seu saber e a quem se podia, naturalmente, ajudar ou enganar.

(Mateus 9, 9; Marcos 2, 13-14; Lucas  5, 27-28)



























26
NA CASA DO PUBLICANO



Jesus: Mas, e então? Vocês não vêm?
Tiago: Prefiro morrer a ter que entrar naquela casa, Jesus! Você está ficando maluco? Como vamos comer com aquele safado!

Os gritos de Tiago ressoaram no embarcadouro de Cafarnaum. Jesus havia ido até lá para falar-nos de Mateus e para perguntar se queríamos acompanhá-lo para comer em sua casa. Mas odiávamos o cobrador de impostos já há muitos anos e nenhum de nós quis ir.

Mila: E ele vem comer, você está dizendo?
Mateus: Sim, mulher. É um forasteiro de Nazaré. E eu estou desconfiado que é um sujeito meio especial. Suspeito de algo, mas...
Mila: E esse homem não é perigoso, Mateus? Quem vai vir comer aqui sem mais nem menos...?
Mateus: Já lhe disse que é um tipo meio estranho. Na verdade não me parece má pessoa, mas deve ser...
Mila: Faz tanto tempo que não vem ninguém do povoado comer com a gente... De vez em quando esses capitães romanos... mas eu já estou com eles por aqui, ó...!
Mateus: Não se queixe, mulher. É deles que vivemos.

A mulher de Mateus era uma pobre mulher. O ofício de seu marido, um dos mais desprezados do nosso país, a foi afastando de todos em Cafarnaum. Vivia fechada em sua casa. Não gostava de sair. Quando ia ao mercado, as outras mulheres cochichavam às suas costas e mexiam com ela. Não tinha amigos. Tampouco tivera filhos. E quase nunca preparava comida para algum convidado. Por isso, naquela noite, por mais suspeitas que Mateus tivesse, sua mulher estava contente.

Uma vizinha: Ei, Salomé... Salomé!
Salomé: O que foi, Ana?
Vizinha: É verdade o que me disseram que esse forasteiro está vivendo aqui na sua casa?
Salomé: Diga o que lhe disseram e eu direi se é verdade.
Vizinha: Passou por aqui a Mila, a mulher do sem-vergonha do Mateus, que o inferno o engula, e contou para a Noemi que o nazareno vai jantar esta noite na casa deles...
Salomé: O que você está dizendo? Que Jesus vai comer na casa do publicano?... Ah, não me amole! Essa mentira é maior do que os elefantes de Salomão. O que é isso?!...
Vizinha: Não está acreditando? Pois pergunte pelo mercado, pergunte... Essa história está na boca de todo mundo... Me contaram que esse tal Jesus era um sujeito decente... Então, como é que vai comer com um publicano?

Ao entardecer, quando o luzeiro maior já se havia acendido no céu, Jesus foi até a casa de Mateus. Foi sozinho. O publicano vivia na saída do bairro dos fruteiros. Em sete metros ao redor, não havia nenhuma outra casa. Ninguém queria viver  perto dele. Tanto era o ódio que sentíamos em Israel pelos cobradores de impostos.

Mateus: Entre, entre, forasteiro. Esta que vem vindo aí é Mila, minha mulher.
Jesus: Boa noite, Mila...
Mila: Bem vindo à nossa casa, senhor... É ... Bem, meu marido me disse que viria, e que ... Nós também convidamos o capitão Cornélio para estar conosco esta noite... Suponho que não se importará... sabe, é que já o conhecemos...
Mateus: Deixe de tanta conversa, mulher! Para a cozinha! Termine de preparar aquelas berinjelas de uma vez!
Mila: Já vou, já vou...
Mateus: E então? Veio sozinho, não?... Seus amigos não quiseram sujar as sandálias pisando em minha casa...
Jesus: Sim, a verdade é que... não quiseram vir. Eu falei com eles, mas... mas...
Mateus: Mas nada. Está bem. Pior para eles. Menos bocas, sobra mais para nós. Venha, vamos para dentro...

Enquanto isso, nós nos havíamos reunido para discutir na casa do velho Zebedeu. Estávamos todos furiosos. Minha mãe Salomé, que tinha uma voz estridente, nem sequer tinha preparado a sopa naquela noite...

Salomé: Até o rabino já está sabendo!... É uma vergonha! Estamos na boca de todos!... Ah, Jesus, quando eu o agarrar...!
Tiago: Não houve jeito de tirar essa idéia da cabeça dele, de ir comer com esse cachorro do Mateus.
Pedro: Isso não entra na minha cabeça!... O que Jesus está querendo com esse publicano pestilento?
Tiago: O que este publicano está querendo de Jesus? Isso é que não está claro. Aqui tem algo esquisito.
Salomé: Isso sim é verdade! Isso está cheirando  mal. É que nem queijo quando apodrece.
Tiago: Mas e aí, não vamos fazer nada? Jesus comendo na casa de Mateus e nós aqui, de braços cruzados...?
Pedro: Por que não vamos até lá e quando sair dizemos umas quantas verdades a esse moreno? Ele vai ter de se explicar! Heim? O que vocês acham?  Vamos até a casa de Mateus?

Mateus: E então, Jesus, vem a mulher e diz ao sujeito: era assim que eu queria te agarrar, gostosão! Rá, rá, rá... E o sujeito se assustou e saiu correndo. Rá, rá, rá... O que você achou, heim? Rá, rá, rá...
Mila: Ai, pelo amor de Deus, Mateus, não conte mais essas histórias...
Mateus: Vamos, mulher, sirva mais carne a Jesus. E mais beringelas também. Está com o prato vazio... Você veio aqui para comer bem, entendeu? Na minha casa não se passa fome!...
Jesus: Bem, mais uma, mas é a última. Estou satisfeito. A senhora cozinha muito bem, dona Mila...
Mateus: É uma grande cozinheira, sim senhor. O Cornélio sempre diz isso, mas ela nunca acredita muito. Também, quem está acostumado a que lhe cuspam quando passa na rua... como vai acreditar que faça alguma coisa de bom...? Esta minha mulher está mais trancada em casa do que um caracol. Tem medo das pessoas ... Eu já lhe disse para não querer carregar o mundo nas costas... Deixe que digam o que quiserem, não é mesmo, amigo? Cada um na sua... Mas ela tem a cabeça mais dura do que uma pedra de moinho... Rá, rá, rá...
Mila: Não é isso Mateus, é que...
Mateus: Fique quieta! Olhe, Jesus, nesse tipo de profissão como a minha, acontece que nem com a tinta. Se você faz um borrão no papel quando está fazendo contas, ele fica aí. Não há quem o tire. A mancha fica para sempre. Com a gente, os cobradores de impostos, acontece a mesma coisa. Você se mete nisso e cai uma mancha sobre você. E não sai nunca mais. Por isso que eu digo, que é preciso se acostumar e não sofrer tanto como essa mulher!... Se ela não solta umas vinte lágrimas por dia não está contente! Ui, que choradeira...! Bem, mas aqui não é lugar de chorar. Aqui é lugar de rir. Sirva mais a Jesus, mulher. Venha cá, Jesus, vou lhe contar outra: Conhece aquela da mulher muito alta que estava namorando um anão?...

André, Pedro, Tiago e eu, nos aproximamos da casa de Mateus. Sentados na rua, ouvíamos de longe as risadas do publicano e víamos com raiva as luzes acesas lá dentro. Não podíamos suportar a idéia de que Jesus estivesse atrás daquelas paredes comendo com aquele lambe-botas de Herodes... Quando já estávamos um tempo por ali, passou o rabino Eliab e nos viu...

Rabino: Ahhá!, Olhem só a praga que anda por aqui!...
Pedro: Hummmm...
Rabino: Então esse amiguinho de vocês está andando agora com o publicano? Como é essa história? Ele foi visto essa manhã bebendo com esse sujeito na taberna e agora veio comer em sua casa... Eh, o que vocês dizem disso? Ou também estão esperando para entrar?

Aquilo era o que faltava. Então Pedro se levantou de um salto e agarrou umas pedras da rua. Sem pensar duas vezes, começou a atirá-las contra a janela da casa de Mateus...

Pedro: Maldição para este publicano do inferno e para Jesus e para todo mundo!
Mila: Ai, Deus santo, que barulho é esse? Mateus, corre aqui!
Mateus: Mas, quem está ai? Desgraçados!
Jesus: Espere, Mateus, não saia você. Vamos Cornélio...

Jesus saiu ao portal da casa. Atrás dele vimos o capitão romano. E nesse momento uma pedra passou zumbindo entre os dois...

Jesus: O que vocês estão fazendo aqui?
Pedro: Isso nós é que perguntamos: o que você está fazendo aí, comendo com esse traidor chupatinta?

O rabino Eliab, envolto em seu manto negro, se aproximou desafiante de Jesus...

Rabino: Como se atreve a partir o pão com os pecadores? Toda a Cafarnaum está murmurando sobre você, forasteiro.
Jesus: Ah, sim? Pois que continuem gastando saliva, se quiserem.
Rabino: Você não pode se sentar à mesa com um homem que está manchado.
Jesus: E quem me proíbe disso?
Rabino: A Lei de Moisés e os santos costumes de nosso povo. Você não sabe que quem se junta a um homem impuro se torna impuro como ele?
Jesus: E você, rabino, está limpo?
Rabino: Como disse?
Jesus: Perguntei se você está limpo. Você levantou o dedo contra Mateus. Tome cuidado para que Deus não levante o dedo contra você.
Rabino: E você tome cuidado com o que diz, maldito! Está chamando de pecador a mim que sou  quem ensina a Lei?
Jesus: Não, foi você quem primeiro chamou Mateus de pecador e a todos os que estamos sentados à sua mesa. Mateus é um pecador? Pois bem. Deus não precisa converter os justos mas os pecadores. E que eu saiba, não são os sadios que precisam de médico. São os doentes. Mateus está doente e sabe disso. Precisa que entre todos o curemos.
Rabino: Que bobagens você está dizendo, camponês ignorante! Assim, que você é o médico, não? E que veio aqui curar o “pobrezinho” do Mateus...! Você está tão doente como ele! Escute o que lhe digo: quem se encosta num porco, lhe pega a fedentina! Você entrou nessa pocilga. Agora está manchado igual ao nojento publicano que vive nela. Não sabe o que diz a Escritura para esses casos? Não se aproxime da sinagoga sem antes oferecer um sacrifício de purificação pelos seus pecados.
Jesus: E você não sabe o que diz uma outra parte da mesma Escritura: “Quero amor e não sacrifícios”. Deus prefere o amor às penitências.
Rabino: Insolente! Maldito sem lei! Algum dia você vai engolir as palavras que acaba de dizer!

O rabino cuspiu no rosto de Jesus. Tinha as veias do pescoço tão saltadas que parecia que iam explodir. Sacudiu com raiva as sandálias diante dele e se afastou pela escura viela...

Pedro: Jesus, você nos traiu. Não esperávamos isso de você.
Tiago: Fale claro de uma vez: De que lado você está?
Pedro: Muito palavrório: “as coisas vão mudar, as coisas vão mudar”. E agora vem você comer com esse vende-pátria e com um capitão romano. Como fica isso, então?
Jesus: Então é como a gente vem conversando há muito tempo. Para que as coisas mudem, a gente tem de mudar. Mateus é o homem mais odiado em Cafarnaum. Todos nós podemos dar-lhe uma mão.
Tiago: Vai pros diabos, Jesus! Está bem, faça o que quiser. Mas tome cuidado com esse sujeito. Ele pode levar todo mundo para a cadeia.
Pedro: Eia, vamos embora daqui. E você continue comendo, continue comendo... oxalá todos se engasguem, maldição!

Jesus e o capitão Cornélio entraram de novo na casa de Mateus. E continuaram comendo com ele. Nós voltamos para o bairro, sem dizer mais uma palavra. Que eu me lembre aquela foi a primeira vez que tivemos uma briga feia com Jesus. Não compreendemos porque ele havia feito aquilo. Não entendíamos então que no Reino de Deus haveria lugar para um homem tão desprezível como Mateus, o publicano.



O publicano, além de ser desprezado pelo povo, era um cidadão proscrito civilmente. Seu testemunho não tinha nenhum valor jurídico e, de alguma forma, se equiparava ao escravo, pela inferioridade em que se encontrava diante do resto de seus compatriotas. Como “pecador”, era rechaçado moralmente e isso se extremava a tal ponto que o dinheiro proveniente das caixas dos cobradores de impostos não podia ser aceito como esmola para os pobres porque era dinheiro injusto. Esse desprezo popular se estendia também à família dos publicanos. Que Jesus não só se relacionasse com um desses homens, mas que também compartilhasse a mesa com ele era um escândalo insuportável para os habitantes de Cafarnaum. Ao escândalo de tipo moral se une, para os amigos de Jesus, um escândalo de tipo político, por ser Mateus um colaboracionista dos romanos.

Para medir exatamente o que Jesus fez ao comer com “pecadores”, é preciso saber que entre os orientais, acolher uma pessoa, comer com ela na mesma mesa, é uma mostra de respeito, de paz, de confiança, de fraternidade e de perdão. Compartilhar a mesa é um sinal de compartilhar a vida. Que Jesus coma com Mateus - como suas outras refeições com publicanos e pecadores - não é somente um acontecimento social através do qual expressava sua extraordinária humanidade ou sua simpatia pelos desprezados. Essas refeições têm uma profunda significação teológica. Nelas se dão a expressão mais significativa do amor de Deus que privilegia os perdidos. São refeições nas quais se antecipa o final da história, em que Deus sentará à sua mesa, nos primeiros lugares, aqueles que os “decentes” rechaçaram como os últimos.

O rabino, guardião da moral da cidade, é um dos mais fortemente escandalizados pela conduta de Jesus. Não é de estranhar. Um profeta que falava de Deus como Jesus e que, por outro lado, contradizia as regras religiosas, era intolerável. O separar-se dos “pecadores” era o máximo dever de um homem piedoso, que quisesse agradar a Deus. E isso porque se pensava que  o próprio Deus rechaçava o pecador e só o acolhia se este se arrependesse e mudasse de conduta. Então, e só então, o pecador era objeto do amor de Deus. Quando se transformava em justo. Jesus revoluciona esta falsa idéia religiosa: para Deus não conta a moral. Mais ainda: o processo se inverte e é Deus quem se aproxima dos imorais, demonstrando-lhes um amor especial, de preferência. Aquilo foi então - e é ainda hoje - um escândalo, a dissolução de toda “moral”. Até o final de sua vida, Jesus será acusado por pessoas decentes de uma conduta imoral, porque bebia e comia com “publicanos e pecadores”.

A mensagem do evangelho é sempre anúncio de uma mudança. Exige um reajuste das relações entre os  homens apontando para uma verdadeira igualdade entre eles. E também pede de cada um uma mudança de suas atitudes, uma revisão profunda de sua escala de valores, de suas opções, etc. Entre a conversão estrutural e a conversão pessoal não se deve criar nenhuma oposição, privilegiando uma à custa da outra. Ambos os aspectos da mudança-conversão se complementam e se necessitam mutuamente. O ideal evangélico fala de um homem e uma mulher novos em uma nova sociedade.


(Mateus 9, 10-13; Marcos 2,15-17; Lucas 5, 28-32)


















































27
A OVELHA PERDIDA



Pedro: Mas, Jesus, por favor, abre os olhos! Você não percebe?... Mateus é um vendido aos romanos, um puxa-saco de Herodes!
Jesus: Mateus é um homem, Pedro. Um homem como você e como eu.
Tiago: Que se dane esse homem e você também! Mateus é um traidor. Os publicanos são traidores. E aos traidores tem de se esmagar a cabeça como a cobras!

Pedro, Tiago e eu estávamos com Jesus na taverna do embarcadouro, junto ao lago. Na noite anterior, Jesus havia entrado na casa de Mateus, o cobrador de impostos de Cafarnaum e havia jantado com ele.

João: Você nunca reparou que esse Mateus sempre vai sozinho, como um leproso? Ninguém da cidade quer se aproximar dele. Ninguém chega perto.
Pedro: E sabe por que? Porque ele empestea. O bafo dos traidores a gente sente a sete léguas de distância.
João: E um tipo desse você convida para o grupo, Jesus? Mas o que é que você está querendo? Que ele vá nos denunciar ao capitão romano?
Tiago: Eu digo o mesmo que André. Se essa carniça vier com a gente, eu vou embora. Eu não me junto a traidores.
Pedro: E eu muito menos. Que aquele que está no céu me arrebente as tripas se algum dia eu renegar os meus!
Jesus: Eu não diria que é um traidor, Pedro. Mas, tudo bem, é um traidor. É um vende-pátria, quem não sabe disso? Mas eu acho que todos juntos podemos conseguir que Mateus mude.
João: “Eu acho... eu acho...” E se ele der com a língua nos dentes e todos nós cairmos na arapuca por causa da sua imprudência?... Sinto muito, Jesus. Você não tem estofo político. Não tem olfato. Ninguém cai na besteira de colocar um lobo no meio das ovelhas.
Jesus: E quem disse que Mateus é um lobo? Os lobos são outros João. Mateus era um dos nossos. Agora ele está fazendo o jogo dos de cima sim, está certo. Mas os dentes de Mateus não são de lobo.
Pedro: Ah, não? E são de quê então?
Jesus: Não sei, mas quando vi Mateus sentado naquela guarita, sozinho, manchado de tinta, me lembrei de uma história que o velho Joaquim me contou, lá em Nazaré, quando eu era menino...

Joaquim: Era uma vez um pastor que tinha cem ovelhas. Pela manhã, ao nascer do sol, se levantava também o pastor e saía com seu rebanho para o monte, onde o capim era mais verde e a água mais fresca... Todas as ovelhas estavam sadias e fortes, limpas e cuidadas. Todas, menos uma. A de sempre.A que nasceu doente, com uma pata mais curta que as outras. A ovelha que sempre ia atrás, mancando. Desde pequenina as outras a desprezavam. Ninguém fazia caso dela. Nem brincavam, nem comiam com ela. Nenhuma se aproximava dela. Sempre ia sozinha aquela ovelha... Aconteceu que um dia iam pelo monte o pastor e seu rebanho. E começou a chover... O pastor saiu correndo e as ovelhas atrás dele, de volta para o curral.

A ovelha doente tentou imitar suas companheiras mas não podia alcançá-las. Tropeçava, se levantava, e tornava a cair... O rebanho e o pastor se perderam numa curva do caminho. A névoa e os raios lhe fecharam a estrada. E a ovelha doente se perdeu. Arrastava sua perna coxa procurando as pegadas de suas companheiras. Mas a água apagou os rastros do caminho e não soube mais onde estava nem para onde seguir. Deu muitas voltas, andou daqui para lá no meio da chuva. Mas cada vez se afastava mais das outras. E começou a escurecer...

Enquanto isso, o pastor havia chegado ao curral seguido de seu rebanho. Como sempre, fez as ovelhas passarem pela porta de agulha para contá-las uma a uma...

Pastor: “... 94 ... 95 ... 96 ... 97 ... 98 ... 99 ... O que aconteceu? Me falta uma. Não pode ser. Seguramente contei errado.”

Joaquim: E começou a contar outra vez...

Pastor: “... 95 ... 96 ... 97 ... 98 ... 99 apenas! Eu perdi uma ovelha! Seguramente é aquela doente, da pata coxa. Puxa vida, onde terá se metido essa desgraçada?” ...

Joaquim: “Bah, não se preocupe com ela. Está doente mesmo. Não sabe andar. Não serve para nada. Que durma no pasto. E que os lobos a comam”... disseram-lhe os outros pastores.

E se fez noite fechada. A ovelha da pata coxa continuava dando voltas pelo monte, sozinha e perdida. Gritou, mas ninguém respondia. Gritou mais forte, mas escutou apenas, lá longe, sobre as montanhas, os uivos dos lobos famintos...A ovelha perdida sentiu medo. Um medo muito grande. Então saiu correndo às cegas e caiu num barranco... Rolou sobre as pedras afiadas, deu mil cambalhotas sobre os espinhos, escorregou até lá em baixo, até o fundo onde a terra é lamacenta. E começou a se afundar... O pastor estava deitado em sua esteira de palha, bem quente. Tentava dormir, mas não conseguia. Pensava na ovelha que havia perdido.

Pastor: Mmmm... Puxa, perder-se assim, numa noite tão feia!... Por que tem de ser sempre a última? Por que tem de andar sempre sozinha? Uff... Bom, o que se vai fazer. Ela procurou. Que se arranje como pode. Eu vou dormir.

Joaquim: A ovelha da pata coxa, tinha ainda uma chispa de vida. Fez um último esforço para sair daquele barranco, mas se afundou ainda mais. O lodo a ia engolindo pouco a pouco... O pastor lá em sua cabana bem quente, por fim conseguiu dormir... E enquanto dormia tranquilamente, a ovelha perdida se afundou mais e mais no barranco escuro. O lodo foi cobrindo toda sua lã, subiu até a boca, entrou pelo seu focinho... Já não podia gritar nem mover-se. Estava morta.

Pedro: E o que aconteceu depois?
Jesus: Nada. Acabou-se a história.
João: Como acabou-se a história?!
Jesus: Sim, acabou.
Pedro: Mas, como vai acabar assim, Jesus?... E o pastor, não fez nada?... Deixou-a morrer?
Jesus: Bem, o pastor fez o que pôde...
Pedro: O que pôde!... Por que não saiu para procurá-la, vamos, diga?
Jesus: Isso é fácil falar, Pedro, mas já pensou, sair à meia noite e chovendo daquele jeito...
João: Mas era só se jogar um manto em cima, caramba!
Jesus: E as outras? Como ficariam? Ele preferiu ficar vigiando o rebanho...
Pedro: Ele ficou foi dormindo, grande safado!...
Jesus: Ele tinha de cuidar das noventa e nove ovelhas...
João: Bah, essas se cuidam sozinhas. Você não disse que elas estavam sadias e fortes? A outra porém era uma infeliz...
Jesus: Bem, João, também não precisa exagerar. Afinal, uma a mais, uma a menos...
João: Não, não, não, isso não está certo, Jesus. Essa história me deixou com um tarugo entalado na garganta. Eu não gosto nem um pouco deste final.
Pedro: Muito menos eu.
Jesus: Pois eu não entendo vocês porque ... esse é o final que vocês mesmos quiseram pôr...
Pedro: Nós? Mas essa história quem contou foi você, caramba!
Jesus: Não, vocês o puseram. Você, João, e você, Pedro, e você cabelo de fogo. Mas por sorte, Deus coloca um outro final. Sim, Deus conta a história de outra maneira. Escutem, aconteceu que quando o pastor chegou ao curral e se pôs a contar as ovelhas...

Pastor: ... 95 ... 96 ... 97 ... 98 ... 99 ... Caramba, rapaz, perdi uma. Vou procurá-la agora mesmo!

Joaquim: Mas seus companheiros lhe diziam: “Como você vai sair assim?... Está chovendo muito. Já é noite. Não poderá encontrá-la. Ela é uma só. Vai deixar as noventa e nove?...” Mas o pastor não fez conta, pegou o bastão, jogou-se um manto em cima e saiu com pressa, no meio daquela escuridão para procurar a ovelha doente que havia se perdido...

Pastor: Estrelinha!... Estrelinha!... Onde você está?... Estrelinhaaaa!...

Joaquim: Chamou-a pelo nome, correu de um lado para o outro, subiu e desceu a colina, gritou até ficar rouco... Não lhe importava a chuva, nem o frio, nem a noite, nem o cansaço... Só sua ovelha que estava em perigo. Tinha de encontrá-la antes que fosse tarde demais...

Pastor: Estrelinha! Estrelinha!

Joaquim: Era sua ovelha. E ainda estava com vida!... O pastor saiu correndo para o barranco, desceu até o fundo e a tirou dali... Estava salva! Depois carregou-a sobre os ombros, cobriu-a com seu manto e, mais do que depressa voltou ao curral. Quando chegou, fez curativos nas feridas e a deitou junto com suas irmãs, sobre a palha quente. E o pastor estava tão contente naquela noite que saiu para despertar seus vizinhos...

Pastor: Amigos, eu a encontrei, eu a encontrei!... Estava perdida, estava quase morta... e eu a encontrei!... Alegrem-se comigo, camaradas! Venham, vamos beber um par de jarras de vinho...Eu convido. Quero que todo mundo esteja alegre nesta noite!

João: Bom, assim está bem melhor, caramba, mas...
Tiago: ... mas, afinal de contas, a troco de que você contou essa história, heim?...
Jesus: Não sei, Tiago... às vezes ... às vezes penso que Deus fica mais contente vendo um perdido como Mateus que volta e quer mudar de vida, do que quando vê os noventa e nove que se crêem bons e justos.

Seis séculos antes, o profeta Ezequiel havia escrito em seu livro: “Assim diz Deus: meu rebanho anda solto, e não há quem se ocupe dele. Por isso, aqui estou eu. Eu mesmo cuidarei do rebanho e velarei por ele. Eu  trarei as ovelhas de todos os lugares por onde se dispersaram no dia das nuvens e da bruma. Buscarei a ovelha perdida, farei voltar a desgarrada, cuidarei da ferida e sararei a enferma. E a todas elas encaminharei na justiça”.


A amizade de Jesus com o publicano Mateus, cria no grupo apostólico o primeiro conflito sério. Os outros discípulos não sabem interpretar esse gesto e sua intolerância acaba prevalecendo. Se o evangelho chama a uma radical igualdade entre os homens, provocará necessariamente conflitos na sociedade e também no interior da própria comunidade cristã. Eliminar preconceitos, aceitar o outro como irmão, superar toda discriminação é difícil. É um processo longo e às vezes, doloroso. Porém, bem canalizadas, essas tensões podem dar lugar a uma autêntica crise de crescimento e maturidade dentro da comunidade.

A parábola da ovelha perdida é do tipo de parábolas nas quais Jesus quer explicar como Deus é. Torna-se surpreendente, já de entrada, que Jesus compare o sentimento e atitude de Deus com os de um pastor. Junto com os publicanos e outros ofícios desprezíveis  (agiotas, cambistas...), os pastores haviam chegado a ser nos tempos de Jesus, gente de muito má fama, contados, sem discussão, entre os “pecadores”. Eram suspeitos de levar seus rebanhos a campo alheio e de andar misturados com todo tipo de trapaças e roubos.

Na Palestina, os pastores têm até hoje o costume de contar seu rebanho ao entardecer, antes de guardá-los no redil, para terem a segurança de não haver perdido nenhum animal. O pastor da história de Jesus tem 100 ovelhas. Para quem era daquele tempo, isso era considerado um rebanho de média importância. Entre os beduínos, os rebanhos tinham ordinariamente, entre 20 e 200 animais, tratando-se de ovelhas ou cabras. Um rebanho de 100 ovelhas era cuidado exclusivo de um só pastor que, por sua posição econômica, não podia permitir-se contratar nenhum assalariado para ajudá-lo.

Os dados do texto evangélico em seu conjunto, e principalmente o detalhe do pastor, ao encontrar sua ovelha, ter tido que levá-la aos ombros, fazem pensar que este era um animal especialmente fraco. Isso é básico na narração para o retrato que Jesus faz de Deus. Não é o valor do animal que impulsiona o pastor a procurá-lo. Basta que a ovelha seja sua e a quer com carinho de predileção, por sabê-la tão desvalida. Também a conhece: sabe que sozinha, não encontrará nunca o caminho de volta. O bom pastor - dirá Jesus em outra ocasião - conhece cada uma de suas ovelhas e as chama pelo nome (Jo 10, 1-22). Esta parábola fala essencialmente de um sentimento de Deus: sua alegria ao encontrar o perdido. É uma alegria que se manifesta plenamente no final da história. Quando chegar a hora de prestar contas, Deus se alegrará mais anunciando o resgate de “um dos pequenos” do que comprovando a salvação de muitos justos. Deus quer a salvação dos que se dão por perdidos. Dói-lhe muito vê-los errantes, solitários, desprezados durante sua vida. E se alegrará imensamente quando os trouxer definitivamente para junto de si. Jesus fala de uma alegria que define Deus: A alegria de poder resgatar, de perdoar. Em seu modo de agir, Jesus faz o mesmo que Deus: os fracos, os desprezados, têm sua preferência. Nas palavras e nas obras de Jesus vemos como é Deus. Nisso se resume toda a teologia cristã.

Jesus compara Deus com um pastor. E diz outro tanto de si mesmo: no Evangelho de João, Jesus aparece como o Bom Pastor. Estas comparações têm vários precedentes no Antigo Testamento. O texto do Profeta Ezequiel (34, 1-31) no qual se anunciavam os tempos messiânicos, é a fonte mais direta em que Jesus se inspirou para esta parábola. E tanto impressionou os discípulos esta imagem, que o pastor com a ovelha perdida sobre seus ombros é, junto com o peixe e os pães, o símbolo mais freqüentemente usado na arte dos primeiros cristãos. Encontramos a imagem do bom pastor em esculturas, em sepulcros, em altares, nas paredes das catacumbas nas quais os cristãos perseguidos se reuniam para orar e celebrar sua fé.

(Mateus 18,12-14; Lucas 15, 3-7)

















28
DEUS ESTÁ DO NOSSO LADO



Amanheceu chovendo sobre a Galiléia. As nuvens negras avançavam desde o Líbano e cobriam a planície de Esdrelom. Como flechas de fogo, os raios cruzavam o céu e estalavam nas copas das palmeiras. Eram as tempestades de verão... Trancados em nossas casas, e tapando as goteiras do teto, esperávamos o final daquele interminável dilúvio...
A manhã toda esteve chovendo. A terra empapada não podia beber mais água. Mas as nuvens arrebentavam cada vez com mais fúria...

Um homem: Maldição! É granizo! Chuva de granizo!

Era meio dia quando parou de chover. As gaivotas saíram de seus esconderijos e voltaram a voejar sobre o lago que agora tinha a cor de cinza...Nós pescadores fomos depressa sacudir as velas molhadas de nossas barcas e esticar as redes que gotejavam água. Ao sair, escutamos um rumor de vozes estridentes no campo... As mulheres corriam aloucadamente, chorando e arrancando os cabelos. Os homens iam atrás, com a cabeça encurvada, silenciosos...

Homem: O que aconteceu? Por que as mulheres estão chorando?... Quem morreu?
Uma mulher: O trigo! O trigo morreu!

Os camponeses saiam de suas casas correndo para os campos onde tinham suas roças. A chuva de granizo havia destroçado o trigo que estava a ponto de colher. As espigas quase maduras estavam agora partidas no chão, maceradas pela violência da tempestade!

Mulher: Morreu o trigo! Morreu o trigo!
Outra mulher: Não haverá pão este ano para os pobres!

Cafarnaum inteira saiu a chorar o trigo perdido como se fosse um filho morto. Os artesãos, os mercadores, os pescadores do lago e até as prostitutas da rua dos jasmins, fomos todos às plantações lamentar-nos com os camponeses. Se eles não colhiam o trigo, ninguém comeria pão...

Um homem: Maldito aguaceiro! O que vai ser de nós agora?
Uma mulher: Vamos passar fome outra vez e de novo bater à porta dos agiotas e sair pelos caminhos pedindo esmola!
Outro homem: E vender a alma para o diabo para ver se ele nos dá quatro cêntimos por ela!

Pedro, Tiago, Jesus e eu íamos juntos no meio daquela gritaria, chapinhando entre as espigas destroçadas... Pouco a pouco fomos nos afastando da cidade. Os camponeses subiam pela colina das Sete Fontes. Daquela altura podia-se ver todo o campo inundado, confundido com o lago Tiberíades...

Uma mulher: Ai, vizinha, mas que pecado cometemos para merecer esta desgraça?
Outra mulher: Tem que ser muitos pecados juntos, comadre, porque quando não é o granizo é a seca, e quando não, o aumento dos impostos ou uma das crianças que fica doente em casa... Final da história, nós sempre perdemos!
Um homem: Olhem só, olhem meu trabalho de todos esses meses... tudo perdido, tudo arruinado... maldição, e nem sequer esta terra é minha para poder enterrar-me nela!
Uma velha: Morreu o trigo, e morremos nós também... Caramba, por que Deus não faz nada?...
Outro homem: Deus? Pra que falar em  Deus agora?... Deixe que ele fique tranqüilo lá em cima pois deve ter muito trabalho contando as estrelas... Deus não se lembra de nós!
Mulher: Paciência, patrício! Que outro remédio nos resta?
Homem: Paciência, sim, mas amanhã quando minhas crianças começarem a chorar pedindo um pão, o que vou dizer a elas, que comam paciência?!
Velha: Assim é a vida, meu filho. Para nós pobres não há mais que isso: abaixar a cabeça e agüentar o que vier...
Homem: Pois eu não agüento mais, faz tempo que  levo a vida agüentando, me entende? Um ano e outro e outro mais e é sempre a mesma coisa... Até quando querem que eu agüente, até quando...?
Jesus: Ei, patrícios, olhem lá para cima!... Levantem a cabeça, olhem!

Naquele momento apareceu no céu, num esbajamento de cores, o arco-iris... Jesus foi o primeiro a vê-lo...

Jesus: Olhem o arco de Deus!... É o sinal da paz, depois do dilúvio!
Mulher: Deixe de histórias, forasteiro!... No céu pode haver paz, mas aqui na terra, há fome e onde há fome, há maldição e pranto!
Jesus: Não, mulher, acabou-se a chuva e acabaram-se também as lágrimas. O que vamos resolver chorando e arrancando os cabelos?
Velha: E que outra coisa podemos fazer, heim? Tínhamos pouco, agora não temos nada. Só nos restam dois olhos para chorar!
Jesus: Não, vovó, nos restam os olhos para ver o Messias!
Homem: O que você disse? O Messias? Rá! E onde está esse senhorito tão escondido que nunca mostra os bigodes? O Messias!... Ele que se apresse em vir, porque do jeito que as coisas vão  indo não haverá ninguém para recebê-lo...
Jesus: Mas ele chegará, sim, ele chegará logo!... Olhem o arco, patrícios, Deus vem descendo por ele!... Nossa libertação já se aproxima!

As pessoas foram se juntando ao nosso redor. Jesus estava ao meu lado, com os pés descalços afundados na lama e a barba pingando as últimas gotas de chuva... Lá em cima, atravessando o ar lavado, o arco-íris unia o céu com a terra...

Jesus: Vizinhos, escutem-me!... A chuva foi forte. Choveu de noite e de manhã e parecia que o dilúvio não ia terminar nunca. Foi isso mesmo que Noé pensou depois de quarenta dias suportando o aguaceiro. Mas acabou saindo da arca. Era isso que acreditavam nossos avós no Egito, depois de quatrocentos anos suportando o chicote dos capatazes. Mas passaram pelo Mar Vermelho e saíram livres. Nós também já estamos há quatrocentos anos agüentando e baixando a cabeça. Os faraós de sempre nos mantém esmagados como estas espigas de trigo. Nos moeram. Nos trituraram, fizeram farinha de nós e o pão foram eles que comeram. Mas isso acabou, patrícios. Deus já não espera mais! E nós, muito menos!
Homem: Escutem só o que esse sujeito está dizendo!... Ei, você, seu juízo amoleceu com tanta água, ou o quê?
Jesus: Vizinhos: Apesar do que aconteceu, apesar do trigo perdido, podemos nos alegrar!
Velha: Mas, você está maluco, rapaz? De que demônios vamos nos alegrar se perdemos tudo e se ficamos com uma mão na frente e outra atrás?
Jesus: Temos Deus, vovó, nos resta Deus. E Deus está do nosso lado! Deus deu de presente o seu Reino para nós, compreende?  Para nós, os mortos de fome, os derrotados, os perdedores, para nós!

Cada vez se apertava mais gente para ouvir Jesus. As mulheres pararam de chorar e torceram os vestidos ensopados de água e lama. Os homens meneavam a cabeça, desconfiados e zombeteiros, mas também se aproximavam para escutar...

Jesus: Sim, de fato podemos nos alegrar! Felizes nós os pobres, porque nosso é o Reino de Deus!

Um velho apoiou o queixo em seu bastão com ar triste...

Velho: Me parece que você está gozando da gente, rapaz. Ser pobre é uma desgraça, não uma felicidade. Quem entra num velório para felicitar o morto?
Jesus: Mas, velho, escute-me. Deus não o felicita por ser pobre, mas porque você vai deixar de sê-lo. Você e todos nós. Começa um mundo novo! Chegou o Reino de Deus! Para nós que choramos vendo nossos filhos magros e doentes, para nós que inundamos a terra com nossas lágrimas... para nós será a Alegria de Deus! Agora temos fome. Mas quando chegar o dia da nossa Libertação, a ninguém faltará o trigo e o vinho. Logo comeremos e beberemos no Reino de Deus, logo mesmo!... para nós famintos, a justiça de Deus!
Mulher: “Logo, logo”... Quando será isso?... Lá no céu? Na outra vida, quando já tenhamos morrido de fome nesta?
Jesus: Não, patrícia, na outra vida não fará falta o pão nem as lentilhas. Isto é para agora, para aqui embaixo!... É o Reino de Deus que chega à terra!...

Jesus se agachou e pegou do chão uns torrões molhados... Seus olhos brilhavam como se tivesse nas mãos um tesouro....

Jesus: Esta terra será nossa!... Para os humildes é a herança de Deus, a terra, o trigo e o vinho!
Velha: Você pode dizer o que quiser, meu filho, mas eu tenho oitenta anos, e ainda estou para ver uma rã criar pêlos e um pobre ganhar de um rico.
Jesus: Nós veremos, vovó, com esses mesmos olhos, nós veremos! Tenha confiança. Felizes os que têm olhos limpos para ver a chegada do Reino de Deus na terra!

Alguns homens se puseram de cócoras para escutar melhor. O sol começava a aparecer entre as nuvens e se refletia nas poças d’água que a tempestade havia deixado sobre o solo... Apesar do trigo morto, pareceu-nos que nem tudo estava perdido...

Jesus: O Messias vem para nivelar a terra. Nem colinas nem barrancos. Ninguém em cima, ninguém em baixo. Todos iguais. Todos irmãos. Que a nenhum homem lhe sobre e que a ninguém lhe falte... Felizes os que repartem o que têm com seus irmãos: Deus repartirá seu Reino com eles!
Mulher: É isso que eu sempre tenho dito, que se fôssemos menos mesquinhos, todos poderíamos viver tranqüilos, sem tanta aflição, caramba!  O problema é esse grupinho que pensa que o mundo é só para eles, e assim, estamos como estamos, brigando por quatro espigas de trigo e eles com o celeiro repleto. Você acha isso direito, forasteiro, diga-me?
Jesus: Por isso nunca há paz, nem poderá haver enquanto não se abrirem as portas de todos os celeiros para que ninguém passe necessidade.  Há muitos que falam de paz, e enchem a boca com belas palavras, mas com suas mãos roubam e matam. Falam de paz, mas são filhos da guerra! Não, a esses não! Deus felicita os verdadeiros artesãos da paz, os que trabalham pela justiça. Esses são os filhos de Deus!
Todos: Muito bem! Muito bem!...
Jesus: Os ricos são cegos. O cego não pode ver as cores do arco-íris e eles tampouco vêem o nosso sofrimento. Não querem vê-lo. Ambiciosos!!... Eles sim é que vão arruinar-se quando chegar o momento. Eles logo irão dar gritos, os mesmos gritos que nós damos agora. Agora eles riem, mas bem depressa irão chorar, sim, chorar e gritar quando Deus lhes esvaziar os baús, quando o Messias lhes arrancar a roupa e os anéis e os deixar sem pão e sem dinheiro para comprá-lo, igual ao que fizeram com os seus empregados... Sim, patrícios, as coisas vão mudar e os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos.
Todos: Muito bem, é assim que se fala!...
João: Jesus, tome cuidado. Há muita gente aqui. Sempre aparece um delator. Depois vão dizer que estávamos agitando e...
Jesus: Que digam o que quiserem, João. Vizinhos!  Quando os grandes nos odiarem, quando nos perseguirem de povoado em povoado e nos arrastarem diante dos tribunais.... alegrem-se também! Foi sempre isso que aconteceu com aqueles que reclamaram por justiça. Assim perseguiram Elias e todos os profetas. E por isso o profeta João está agora no cárcere. Mas não importa. Deus felicita os que falam claro e arriscam sua vida para defender a dos outros. Sim, amigos, é preciso gritar no descampado para que essas palavras sejam ouvidas também pelos camponeses de Coroazim e pelos artesãos de Betsaida e pelos pescadores de Tiberíades e pelas prostitutas de Magdala. Para que esta notícia corra como uma lebre solta pelo vale e todos a ouçam, desde a fonte de Dan até a terra seca de Bercheba. Deus se pôs do nosso lado. Deus está conosco, os pobres, e luta ao nosso lado!

Tudo isso disse Jesus na colina das Sete Fontes, a que olha para o lago, perto de Cafarnaum.



O texto das bem-aventuranças - um dos mais conhecidos e usados de todo o evangelho - condensa como nenhum outro o essencial da pregação e da atividade de Jesus: o anúncio da boa notícia aos pobres. As bem-aventuranças não são uma coleção de normas de conduta (“devemos” ser pobres, “devemos” ser misericordiosos...). São uma alegre notícia, que têm por destinatários os pobres, os oprimidos, os que sempre perdem. No relato, para ressaltar esse aspecto de boa notícia - bem concreta - e evitar que as bem-aventuranças se reduzam a um discurso moralizante e abstrato, Jesus as pronuncia numa situação bem concreta de desesperança e de dor: quando os camponeses de Cafarnaum perderam toda a sua colheita.

O chamado “monte das bem-aventuranças”, ou “colina das sete fontes” está situado a uns três quilômetros de Cafarnaum. Embora seja de pouca altura -  uns 100 metros - do seu cimo se abarca todo o lago da Galiléia, numa vista realmente formosa. Em 1937 construiu-se ali a igreja das bem-aventuranças, com oito lados, recordando as oito bem-aventuranças, que cita o texto do evangelho de Mateus.

Em demasiadas ocasiões, as bem-aventuranças foram usadas como uma fórmula de consolo. Os que choram, os famintos, não devem se desesperar. Deus secará suas lágrimas, acalmará sua fome, os fará felizes... no mais além. Embora na terra tudo seja sombrio para eles, depois da morte sua sorte mudará. Essa adulteração do evangelho parte da falsa interpretação de que o Reino de Deus que Jesus anunciou aos pobres é equivalente ao reino “dos céus” no sentido de uma promessa para a outra vida. Mas o evangelho é uma mensagem histórica. Se Jesus chama de felizes os pobres, se diz para eles se alegrarem, é porque vão deixar de sê-lo, porque chegará o reino da justiça aqui na terra. As bem-aventuranças são um anúncio de que Deus intervém já: proclama-se  uma esperança que porá em marcha uma mudança da história em favor dos oprimidos. O evangelho não é uma forma de resignação ou de consolo para os desgraçados, mas um dinamizador de compromissos, uma chamada a “levantar a cabeça porque a libertação se aproxima”(Lc 21,28).

Em vez de dizer: “Felizes vocês os pobres”, Jesus diz: “Felizes nós os pobres”. “Nós que choramos, nós que temos fome...”.  Jesus foi pobre, tão pobre, tão oprimido como seus vizinhos de Cafarnaum a quem proclamou as bem-aventuranças. Isso é esquecido com demasiada facilidade. E se faz de Jesus uma espécie de mestre religioso que se “faz pobre”, se disfarça de pobre para que os pobres o entendam melhor. O faz por apostolado, como sinal de condescendência divina com os miseráveis. Ao pensar assim, falseamos não uma parte, mas a essência mesma do evangelho. E desvirtuamos o projeto de Deus, que quis revelar-se de forma definitiva em um camponês pobre de Nazaré, e que até o dia de hoje se revela na vida e nas lutas dos pobres.

Também se especulou muito sobre quem são os pobres aos quais se referem as bem-aventuranças. E se falou talvez em excesso dos “pobres de espírito”. O texto de Lucas diz: felizes os pobres. O de Mateus: Os pobres de espírito. (Em outras traduções: os que sabem ser pobres, os que escolhem ser pobres). Seguramente a tradição de Lucas é mais primitiva. Os pobres aos quais se dirige Jesus são os que realmente não têm nada, os que têm fome, os que não comem. E esse “espírito” que mais tarde acrescentou Mateus está na linha das fórmulas dos profetas do Antigo Testamento, que falam com freqüência do “espírito humilde”, do “espírito abatido” dos “anawim” (pobres). Esta palavra - anawim - chave nos textos bíblicos, é o equivalente de: desgraçados, oprimidos, indefesos, desesperançados, homens e mulheres que sabem que estão à mercê de Deus, porque são rechaçados pelos poderosos. Lucas acentua do pobre o aspecto da opressão exterior, Mateus o aspecto de necessidade interior (sempre típico dos que padecem opressão exterior). Mateus e Lucas escreveram para públicos diferentes. A Igreja à qual se dirige Lucas estava composta majoritariamente por homens oprimidos dentro da poderosa estrutura do império romano: escravos, habitantes das cidades nas quais existiam enormes diferenças sociais, explorados por duras condições de vida... Mateus escreve para uma Igreja judaica, que tinha ainda a tentação do farisaísmo: consideram bons os “decentes”, os que cumpriam as leis morais, etc.  Seus “pobres de espírito” são os imorais, os pecadores, os de má fama... Apesar de toda essa diferença de matiz, Lucas e Mateus deixam bem claro o sentido profético das palavras de Jesus: Deus presenteia seu Reino para os pobres do mundo.

Embora Mateus recolha oito bem-aventuranças - Lucas só quatro (com seus correspondentes “ais”  contra os ricos) - não se deve entender os textos como um catálogo que apresenta diferentes tipos de pessoas. Tanto em um como em outro evangelista, trata-se de um modo  de falar de uma só realidade: “Feliz o pobre”. Assim se resumem todas as bem-aventuranças. Todas podem ser reduzidas a uma única fórmula. Feliz o pobre porque Deus se põe do seu lado e vai deixar de sê-lo. E não feliz porque se “porta bem”, mas porque “é pobre”. Sua situação de oprimido e explorado é que ganha a simpatia de Deus. Deus não prefere o pobre porque seja “bom”, mas porque é pobre. Esta mensagem de Jesus é absolutamente revolucionária: Além de dizer que a norma moral como critério da benevolência de Deus não conta para nada, anuncia de que lado está Deus no conflito histórico: do lado dos de baixo.

O significado de “pobreza” pode ser equívoco. A pobreza como situação de opressão, é na Bíblia, um estado escandaloso que vai contra a vida e portanto, contra a vontade de Deus. A pobreza deve ser rechaçada, combatida, eliminada. Não é uma fatalidade, é a conseqüência do abuso de alguns homens sobre outros. Diante dessa pobreza, a atitude cristã não pode ser outra que a do próprio Deus: rechaço desta situação, opção pelos pobres. Uma opção que não se esgota na simples denúncia, nas palavras de condenação. As antigas leis mosaicas não ficavam em palavras. Eram leis sociais que tratavam precisamente de evitar a pobreza e de defender o pobre. Toda tentativa de combater a pobreza, de suprimi-la, é, pois,  um passo que faz avançar o Reino de Deus, embora muitos  dos que assim atuem não creiam nem em Deus nem em Jesus. A pobreza não deve ser apresentada, então, como um ideal cristão. Escolher a pobreza - nas atuais situações de injustiça que padecem nossos países - é um gesto cristão unicamente quando é solidariedade com os pobres para lutar contra a pobreza. Numa outra ordem de coisas estaria a pobreza entendida como “infância” diante de Deus: atitude de não orgulho, de não poder, de não ambição. Esta pobreza-infância está numa linha também bíblica de interpretar a pobreza. Embora seja evidente que uma pessoa que acumule riquezas e privilégios às custas de seus irmãos jamais poderá ser um pobre neste sentido se não se despojar antes de seu dinheiro e de seu poder.


(Mateus 5, 1-12; Lucas 6, 20-26)







29
O TRIGO DOS POBRES



O dia em que o granizo arruinou o trigo que estava a ponto de colher era sábado. Todo Israel descansava no sábado. As mulheres não acendiam o fogão nem os homens iam ao campo. O sétimo dia da semana está consagrado a Deus. Mas aquele sábado não foi para nós um dia de descanso. Estávamos reunidos na colina das Sete Fontes, a que olha para o lago, com os camponeses de Cafarnaum que haviam perdido sua colheita...

Um homem: Este ano será ruim, sim.  Será um ano de fome.
Uma velha: Tudo se perdeu. O granizo acabou com tudo!
Outro homem: Com tudo, não, velha. Na fazenda do Eliazim há muito trigo que não se estragou.
Um homem: E do fazendeiro Fanuel, a mesma coisa. Esses safados têm tanta terra e tantos celeiros que nem o céu pode arruiná-los.
Outro homem: Os ricos sempre caem de pé, como os gatos. Eles nunca perdem. Agora aumentarão os preços. Venderão a farinha como se fosse ouro em pó!
Uma mulher: E a nós, que um raio nos parta, não é mesmo?!
Homem: Que remédio nos resta? Apertar ainda mais a cinta. Contra o céu nada se pode fazer!
Velha: Contra o céu não, mas contra esses atravessadores, sim.
Homem: Ahhá? E o que podemos fazer? Invadir as  fazendas deles?
Velha: E por que não? O que diziam as leis antigas? Que os pobres recolham o que sobra nas fazendas dos ricos para que ninguém passe necessidade em Israel.
Homem: A velha Débora tem  razão. Moisés mandou os ricos deixarem os restolhos para que os infelizes pudessem comer.
Mulher: Como é? Moisés disse isso mesmo? Pois então vamos cumprir a lei de Moisés, caramba!...

Quando a mulher do camponês Ismael disse aquelas palavras, todos nos olhamos indecisos. Nós, homens, coçamos a cabeça e as mulheres cochichavam umas com as outras...

Mulher: O que estamos esperando?... O forasteiro de Nazaré não disse a todos vocês que Deus está do nosso lado e que as coisas vão mudar? Pois então vamos dar um empurrãozinho para que elas mudem mais depressa!... Eia, vamos arrancar espigas na fazenda do Eliazim!
Homem: Sim, sim, vamos lá, vamos!
Velha: Um momento, um momento!... Vamos lá sim, mas sem alvoroçar, sem correr, que isso Moisés também mandou quando levou os israelitas pelo deserto em ordem unida. E a justiça, quando é reclamada com boas maneiras, é muito mais justa!
Todos: Está certo, vovó!... Andando, companheiros!

Com a mulher de Ismael e a velha Débora à frente, todos nos pusemos em movimento, colina abaixo, até o enorme terreno que começava ao norte das Sete Fontes. Muitos quilômetros de terra fértil, propriedade do poderoso Eliazim...

Homem: Mas, vocês estão ficando loucos?... Aonde vamos? Não se pode fazer uma coisa dessas!
Mulher: Quem disse que não?
Homem: Mas, como vamos entrar na fazenda desse senhor, assim sem mais nem menos, e começar a cortar espigas?
Mulher: O avarento do Eliazim ainda tem os celeiros cheios da colheita passada.
Homem: Sim, mas...
Mulher: Nada de mas!... Ele tem sobrando!
Outro homem: E para nós está faltando!... Venham, vamos todos juntos! Em nome de Deus!

Éramos um exército de esfarrapados. Chapinhando pelo campo, escorregando na ladeira lamacenta, formos nos aproximando dos moirões que cercavam a propriedade de Eliazim. O granizo havia destruído as plantações, mas a fazenda era tão grande que ficaram, salpicadas aqui e acolá, muitas espigas que não haviam se estragado...

Homem: Olhem, ainda ficou bastante trigo!
Velha: Pois vamos arrancá-lo! E não se preocupem porque Rute começou do mesmo jeito e no final deu tudo certo!

Nós nos espalhamos pelos trigais inundados, como um formigueiro que se esparrama depois da tempestade. Enlameados até os joelhos, começamos a cortar as espigas fortes que haviam suportado a violência do temporal. Os homens sacaram suas facas e começaram a segar. Atrás deles, as mulheres iam colocando em seus aventais o trigo molhado...

Velha: Recolham tudo o que puderem, tudo o que lhes caiba no colo!... Levem uma medida cheia, repleta até a borda do avental!
Homem: Escute, velha, não estamos fazendo nada de errado?
Velha: Ai, meu filho, eu não sei, mas dizem que ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão!...
Homem: E você, nazareno, o que acha disso tudo?
Jesus: Pois eu penso que temos de... ai!...
Homem: Cuidado, Jesus...!

Jesus escorregou e caiu sentado numa poça de água. Quando o vimos no chão, com lama até o nariz, nos pusemos a rir a gargalhadas...

Homem: Ei, rapaz, terra não se come!...
Mulher: Olhem só como ficou o forasteiro, como Adão, quando Deus o fabricou no paraíso...!

Jesus também ria, como se lhe fizessem cócegas. Por fim, com a túnica empapada e apoiando-se em umas pedras, conseguiu levantar-se daquele lodaçal...

Jesus: O que é a vida, heim, vizinhos... Até há  pouco estávamos chorando e agora estamos rindo... As coisas mudam, caramba... Nós podemos mudá-las com nossos braços, com o braço de Deus que nos apóia... Sim, nós pobres iremos adiante! Amanhã tudo será diferente. As dores de agora nós as torceremos como panos molhados e não mais haverá lágrimas nem gritos. E então nos alegraremos, sim, e Deus também estará contente, porque Deus está do nosso lado, porque ele vai encostar seu ombro e vai nos ajudar a fabricar um mundo novo com essa argila velha.

E continuamos arrancando espigas. Jesus recolhia ao meu lado e me lembro que continuava rindo do seu tombo. Pedro, Tiago e André ajudavam um grupo de camponeses que havia adentrado mais na fazenda... Quando já tínhamos cortado bastante trigo, chegaram os capatazes de Eliazim. Vinham correndo em nossa direção com paus e cachorros de caça...

Capataz: Ladrões, Ladrões!

Houve uma grande confusão. A maioria conseguiu pular por cima dos moirões com os braços e os aventais cheios de trigo. Outros abandonaram o trigo e as sandálias e fugiram como coelhos assustados, saltando sobre as poças de lama...

Eliazim: Pode-se saber quem organizou esta malfeitoria em minha fazenda? Com que direito vocês se metem a roubar em minha propriedade?
Mulher: Com o direito de Deus! Todos viemos em nome de Deus!
Eliazim: Em nome de Deus, não é mesmo?... Pois eu digo que foi em nome do diabo! Quem rouba é um filho do diabo!
Homem: E aquele que chupa o sangue de seus empregados como você, é o pai do diabo!
Eliazim: Feche o bico ou mandarei açoitá-lo com varas!... Assim aprenderão a respeitar as leis, ladrões!
Homem: Nós não estávamos roubando! Por que nos chama de ladrões?
Eliazim: Ah, não? E como tenho que chamá-los então? Eu os pego com as mãos no meu trigo, arrancando as poucas espigas que ficaram depois do dilúvio desta manhã, e não são ladrões?
Mulher: Não, estávamos cumprindo a lei de Deus.
Abiel: Cale-se língua comprida! Não torne a mencionar o nome de Deus com sua boca nojenta!

Os capatazes de Eliazim nos levaram a um dos pátios da casa do fazendeiro. Com eles estavam dois escribas amigos seus, o mestre Abiel e o mestre Josafá...

Abiel: Eu digo, Dom Eliazim, que o senhor devia investigar quem anda por trás desta conspiração... quem são os responsáveis.
Eliazim: Onde estão os cabeças, heim? Quem os aconselhou a virem me roubar?
Velha: A fome! A fome nos aconselhou! Precisamos de trigo para nossos filhos!
Eliazim: A fome, não é mesmo? Se não fossem tão vagabundos não passariam fome. A fome vem da vagabundagem!
Mulher: A fome vem da avareza de gente como você!
Eliazim: Se você gritar de novo farei cortar sua língua e suas mãos!... Mas o que vocês estão pensando? Que vou permitir que me roubem descaradamente em pleno dia? Vou chamar o capitão romano e não sairão do cárcere até que me tenham pago todos os prejuízos, ouviram bem?

Jesus, que havia estado calado até então, foi quem respondeu ao fazendeiro...

Jesus: Não lhe basta o trigo que está apodrecendo em seus celeiros? Quer tirar-nos também umas poucas espigas que lhe estão sobrando?
Eliazim: Ahhá...? Então o gato está pondo as unhas pra fora...? Pois escute o que lhe digo, forasteiro: você e  todos os outros vão para a cadeia com um pontapé só!
Jesus: Então você teria de prender também o rei Davi.
Josafá: O que disse esse maldito?
Jesus: Disse que Davi fez uma coisa pior que nós e Davi foi um grande santo.
Abiel: Que despropósito você está dizendo? O que o rei Davi tem a ver com isso?
Josafá: Com quem você acha que está falando, camponês? Somos mestres da Lei, da escola de Ben Sirá.
Jesus: Pois se são tão mestres assim, se recordarão  do que fez o rei Davi quando chegou a Nob com seus companheiros. Tinham fome e entraram, não em uma fazenda, mas no mesmíssimo templo, na casa de Deus. E comeram o pão do altar, consagrado ao Senhor... Estão percebendo? Roubaram o próprio Deus! E Deus não os castigou porque tinham fome! Um homem faminto é mais sagrado que o santo templo do Altíssimo!
Josafá: Mas que besteira é essa? O que está dizendo este insolente? Por sua própria língua você se delata. Você deve ser o agitador de toda essa ralé. Venha, venha diante do tribunal com essa historinha de rei Davi, pra ver a surra de pau que você vai levar...!
Mulher: Nós colhemos os restolhos que nos pertencem segundo Moisés!
Eliazim: Cale-se, rameira! Isto é meu, está entendendo? Meu e de mais ninguém! Daqui até a lagoa de Meron, toda esta terra é minha! E ninguém de vocês pode entrar nela para colher um só grão de trigo!
Jesus: Nós roubamos umas quantas espigas, mas você roubou a terra, o que é pior. Porque a Escritura diz que a terra é de Deus e ninguém pode se apossar dela. Você é mais ladrão que nós!
Eliazim: Vocês estão acabando com a minha paciência, charlatães...! Roubam o que é meu e ainda por cima tenho de agüentar suas impertinências?!
Abiel: No entanto, há algo pior, Dom Eliazim. Não se esqueça de que dia é hoje.
Josafá: Hoje é sábado, dia santo. Esses homens violaram duplamente a Lei, roubando e faltando contra o descanso. Vocês, sem-vergonhas, reconhecem o delito que se lançaram em cima, desrespeitando a sagrada Lei de Deus?
Jesus: O homem não foi feito para Lei, mas a Lei para o homem. Se vocês compreendessem a Lei, não estariam nos condenando, pois não cometemos nenhuma falta. Porque a primeira lei que Deus manda é que todos tenhamos o necessário para viver.
Todos: Muito bem, caramba! É assim que se fala!
Eliazim: Chega de conversa fiada! Iremos agora mesmo diante do rabino da sinagoga! E o tribunal verá o que fazer com vocês! Vamos depressa!

O alvoroço foi muito grande. Fora da fazenda, muitos camponeses nos esperavam, homens e mulheres, que se juntaram a nós, a caminho da cidade. O fazendeiro e os escribas avisaram os soldados romanos para que garantissem a ordem e nos conduzissem até a sinagoga. Lá, os mestres da Lei iriam julgar o que havíamos feito.




Este episódio está em estreita relação com o anterior. À proclamação de Jesus de que Deus toma partido dos pobres, sofrendo com eles, anunciando-lhes uma mudança e lutando ao seu lado, corresponde a prática do mesmo Jesus e dos pobres que acreditam nesse anúncio, tiram dele as conseqüências e se põem a caminho para tornar real esta libertação que lhes anuncia. O evangelho é não só palavra de libertação mas, também, ação libertadora que realizam aqueles que seguem o caminho de Jesus. Em nossas comunidades, o evangelho não pode esgotar-se na denúncia, somente em palavras, mas estas precisam se traduzir em ações concretas, inspiradas na mensagem de Jesus: ações de organização, de compromisso, de luta...

A cultura mediterrânea - a zona em que está situada a Palestina - é uma “cultura de trigo”, como a cultura centro-americana - a dos maias e astecas e a atual, ainda hoje - é uma “cultura do milho”. Como a cultura de muitos países tropicais é uma “cultura da banana” ou “do arroz”. O trigo era o principal cultivo da Palestina e constituía o grosso das importações de víveres do campo pelas cidades. As épocas de fome se caracterizaram pela escassez de trigo.

O trigo que se colhia na Galiléia era considerado de primeira qualidade. Nos campos dos arredores do lago, também em Cafarnaum, havia extensas plantações de trigo, muitas das quais  pertenciam a uns poucos fazendeiros. Os latifúndios eram freqüentes no Norte e uma das reivindicações dos zelotas era uma reforma agrária pela qual se distribuiria justamente a terra. Isso lhes granjeava a simpatia dos camponeses e dos pequenos proprietários, enquanto que os grandes latifundiários eram colaboracionistas do poder romano, que lhes garantia a posse ilimitada de propriedades.

Quando as primeiras tribos de pastores chegaram à terra de Israel, começaram a distribuir as terras por famílias, conforme as iam ocupando. A propriedade da terra era uma herança familiar, e do ponto de vista religioso, considerava-se que Deus era o dono de toda a terra ( Lv 25, 23)  e que superar os limites do patrimônio familiar era contrário à vontade de Deus. No entanto, nos tempos de Jesus e também antes, havia latifundiários, donos de grandes extensões de terra que, em algumas ocasiões, as adquiriam pelo simples recurso de mudar fraudulentamente as cercas da fazenda (Jó 24,2). Os profetas condenaram repetidamente a economia latifundiária (Is 5, 8; Os 5,10). O domínio imperial de Roma acentuou ainda mais esta economia injusta de açambarcamento de terras. Do ponto de vista econômico, a conseqüência mais visível da ocupação romana foi o processo de extensão da propriedade latifundiária à custa da propriedade comunal, que acabou por vir abaixo,empobrecendo aceleradamente o campesinato que, de pequeno proprietário, passou a ser mão de obra barata (diaristas), a serviço desses grandes proprietários.

Para frear a ambição, existiam em Israel leis sociais que limitavam a propriedade e tratavam de impedir a excessiva acumulação: o Ano da Graça, o Ano Sabático. E para proteger os pobres, os órfãos, a viúva e o estrangeiro existiam, além disso, outras leis pelas quais os proprietários tinham de ceder-lhes parte da semeadura e dos frutos que sobravam nas beiradas dos campos e nas árvores (Lv 19,10; Dt 24,19-22).

Os habitantes de Cafarnaum arrancam as espigas em um dia de sábado. A lei do sábado era o eixo de todo o sistema legal vigente em Israel nos tempos de Jesus. Violar esta lei voluntariamente e após uma primeira advertência, era razão suficiente para ser condenado à morte. A lei do sábado impedia de realizar qualquer tipo de trabalho ou esforço no dia santo. Na atualidade, não existe em nossos países nenhuma lei religioso-social equivalente àquela. O mesmo que Jesus proclamou em seu tempo sobre a supremacia do homem sobre a lei do sábado, nós cristãos devemos hoje proclamar com a mesma força e sentido social sobre a propriedade, ou como o formularia o papa João Paulo II: “A hipoteca social que pesa sobre toda propriedade”.

A mais antiga tradição da Igreja tem ressaltado que quando o pobre toma por necessidade o que sobra ao rico, não faz nada que mereça reprovação, nem deve por isso ser chamado de ladrão. Ladrão é quem retem o que o outro necessita. Sobre o “meu” e o “teu”, dizia São Basílio aos ricos e poderosos: “E que coisas, diga-me, são tuas? Tomaste-as de algum lugar e vieste com elas à vida?... Por haverem-se apoderado primeiro do que é comum, aos ricos se lhes dá o título de ocupação primeira... Quem é ladrão? Haverá que dar outro nome ao que não veste a um nu, se o pode fazer? Do faminto é o pão que tu reténs; do nu é o manto que tu guardas em teus baús; do descalço é o calçado que em tua casa apodrece...” (Homilia “Destruam”).

A ação coletiva e pacífica que realizam os habitantes de Cafarnaum para fazer valer o direito fundamental que tem todo homem de viver, de não morrer de fome, está apoiada nas antigas leis de Moisés. Para justificá-la, Jesus se inspira também no episódio do rei Davi no santuário de Nob (I Sam 21,1-7), onde os pães que Davi toma ao sentir fome são os pães da proposição, pães sagrados, dedicados ao culto, confeccionados com farinha especial por famílias dedicadas a isso. A grande liberdade com que age o rei, é uma antecipação do que sempre fará Jesus, para quem nenhuma lei tem valor se oprime o homem, se não está a serviço da vida. São Paulo dirá mais tarde que a lei dos cristãos não é outra que a liberdade (Gal 5,1-8).


(Mateus 12,1-8; Marcos 2, 23-28; Lucas 6 1-5)















30
AS MÃOS SECAS



O fazendeiro Eliazim nos havia surpreendido arrancando espigas em sua fazenda depois da grande tempestade que destruiu as plantações dos camponeses de Cafarnaum. Os escribas amigos seus nos levaram aos empurrões até a sinagoga para julgar-nos por aquilo. Era dia de sábado.

Abiel: Andando, cambada de safados!
Josafá: Agora é que nós vamos ver o que vão dizer diante do rabino, ladrões, sem-vergonhas, bandidos!
Abiel: Vamos, depressa, quem apronta tem de pagar!

Embora a sinagoga tivesse portas bastante largas, muitos dos moradores entraram pulando pelas janelas. Não queriam perder nada daquela rixa... Meia Cafarnaum estava ali... O rabino, impaciente, andava de um lado para o outro, sem levantar os olhos para nos encarar...

Abiel: Rabino Eliab, esses homens que vês aqui alvoroçaram o povo para que fossem roubar trigo na fazenda de Dom Eliazim.
Josafá: Entraram pela força em terras que não são deles!
Abiel: Mas se fossem apenas uns vulgares ladrões, não os teríamos trazido até aqui! Roubaram no dia do descanso! Profanaram a Lei de Moisés!
Rabino: Ahhá?... Então, o que temos aqui?... Pode-se saber por quê motivo fizeram isso?
Um homem: Porque temos fome!
Todos: Sim, sim...!!
Rabino: Silêncio!... Que fale um de cada vez!
Um homem: Perdemos a colheita, rabino! Precisamos de trigo!
Uma mulher: Nossos filhos estão morrendo de fome!
Rabino: Calem-se!... Já disse que fale um de cada vez!... Vamos ver, você, venha cá!... Sim, você mesmo!...

O rabino agarrou pela manga da túnica o Nito, filho de dona Ana, um rapaz bonachão, meio abobado...

Rabino: Responda: você entrou na fazenda de Dom Eliazim para colher trigo?
Nito: Sim, rabino!
Rabino: Esta fazenda é propriedade de Dom Eliazim, você sabia?
Nito: Sim, rabino!
Rabino: Se esta fazenda tem dono, o que está plantado nela pertence ao dono, sabia?
Nito: E quem não sabe disso, rabino?
Rabino: Se você sabe, então por que foi arrancar o trigo alheio?
Nito: Porque tenho fome, rabino!
Rabino: Mas o trigo de Eliazim é de Eliazim!
Nito: E a minha fome é minha fome também!
Rabino: Mas, escute aqui, seu traste, com que direito você se mete  numa propriedade que não é sua, para se apropriar do que não é seu? Vamos, responda!
Nito: Bem, porque... Desculpe, rabino, o que o senhor disse mesmo?
Rabino: Desculpas, desculpas, é só isso que vocês sabem dizer! Dizer antes e negar depois. Primeiro, muito valentes, depois “não fui eu...”
Nito: Não, não, fui eu sim, rabino! Eu e todos nós pulamos a cerca da fazenda para arrancar espigas. Eu mesmo arranquei muitas!
Rabino: Ah, é? Então você reconhece, descaradamente, que colheu o que não é seu?
Nito: Mas é claro! E quando eu sair daqui vou voltar lá e continuar colhendo! Na pindura que eu estou!...
Mulher: Ficou muito trigo nas terras de Eliazim e nós não temos nada!
João: Deus não pode querer que as pessoas morram de fome enquanto outros andam de barriga cheia!
Rabino: Mas que barulheira é essa?!... Estamos na sinagoga! Este é um lugar sagrado!... E hoje é sábado, dia santo!... O que acontece aqui?...
Abiel: Rabino Eliab, são estes homens... Este grupinho do bairro dos pescadores... Foram eles que revolucionaram esta gente... E parece que é este forasteiro de Nazaré que anda enchendo a cabeça deles com idéias malucas...

Um dos escribas nos apontou estendendo seu braço ossudo, com um longo dedo acusador. Depois, ficou olhando fixamente para Jesus, que parecia tranqüilo, como se nada estivesse acontecendo...

Rabino: O que você diz disso, nazareno? É você que esquentou a cabeça destes infelizes?
Jesus: Quando o estômago está frio a cabeça esquenta sozinha!
Rabino: Escute bem, seu camponês arrogante, nosso povo tem suas leis e essas leis têm de ser cumpridas, está ouvindo?... E o que diz a lei, heim?... Não roubarás!... Ouviu bem?...
Jesus: E aquele que se apodera de todo o trigo, não é ladrão também, rabino?
Rabino: A Lei diz: não roubarás!... Entendido? Não-rou-ba-rás!...
Jesus: E quem paga salário de fome, também não está roubando o diarista?
Rabino: Chega! Você e todos os outros são culpados! Faltaram gravemente contra o mandamento! E para cúmulo de tudo, fizeram isso num dia de sábado! O que diz a Lei? “Guardarás o sábado para santificá-lo. Seis dias trabalharás, mas o sétimo dia é o dia do descanso para teu Deus”. Isso diz a Lei. Está bem claro, não?
Jesus: Mas Deus faz a lei para o homem e não o homem para a lei.
João: É isso aí, Jesus! É assim que se fala!
Rabino: Cale a boca, maldito! Fale só quando eu lhe perguntar!
Um homem: É melhor você ficar quieto, João, esse negócio está se complicando e você vai levar a pior!
Rabino: O que vocês estão querendo? Acabar com tudo? Destruir as sagradas leis que Moisés nos deu?
Jesus: Pelo contrário, rabino. Não queremos destruí-las, mas dar a elas seu verdadeiro sentido.

O rabino parecia possesso de mil demônios. Mas fechou os punhos e fez um grande esforço para se conter...

Rabino: Irmãos, não prestem atenção ao palavrório desse forasteiro que veio a nossa cidade só para alvoroçar e confundir a cabeça de vocês. Irmãos, o que vocês fizeram foi muito mal feito. Isso não pode mais acontecer. Vocês violaram o Sábado e o Sábado é obra de Deus. Vocês sabem muito bem que quando a sombra cobre os muros da cidade na véspera do sábado, a lei ordena que se  fechem as portas de todos os povoados de Israel e não se as abram de novo até que passe o dia santo. O sábado é o sagrado dia de descanso. É proibido comprar, é proibido vender, é proibido caminhar mais de uma milha. É proibido carregar trigo, carregar vinho, carregar uvas ou figos ou qualquer outra mercadoria. É proibido levantar pesos, é proibido transportar macas. É proibido cozinhar, é proibido...

A lei do sábado era tão pesada, as proibições para o dia do descanso eram tantas, que quando o rabino começou a recitar aquela lista interminável, todos nos sentimos como se houvessem colocado sobre nossos ombros uma cangalha de bois... Quando o rabino Eliab terminou, respiramos aliviados. Então Jesus rompeu o silêncio...

Jesus: Gostaria de perguntar uma coisa a vocês que são mestres da Lei: suponham que vocês tenham uma ovelha e ela caia no poço num dia de sábado. Vocês não a tirariam dali, embora estivesse proibido?... O que se pode fazer num dia de sábado: o bem ou o mal?  Salvar a vida ou tirá-la?... O que vocês acham?

Um murmúrio de aprovação saiu das gargantas de todos e começou a crescer como quando sobe a maré...

Um homem: Jesus tem razão! Ele explica as coisas melhor do que o rabino!
Abiel: Vê como não adianta nada, rabino Eliab? Esse homem é perigoso... É preciso dar um bom exemplo para esta gente.

Então um dos escribas, o ossudo, abriu os braços como um pássaro que fosse levantar vôo e cravou seus olhos em nós...

Josafá: Ladrões! Charlatães! Deus vai castigá-los pelo que fizeram no dia do descanso! Ladrões. Deus vai secar as mãos de vocês! Essas mãos que ofenderam a Deus roubando, vão ficar duras!... A maldição de Deus virá sobre os que não cumprem a Lei! Os ladrões ficarão com as mãos secas!

Os gritos do escriba fizeram tremer a sinagoga e fizeram tremer a todos nós. Então, de um dos cantos, lá do fundo, armou-se um reboliço. Todo mundo se virou para ver o que acontecia.

Um homem: Escute, rabino, aqui tem um que tem a mão seca, mas esse não é ladrão!
Asaf: Eu sou um homem honrado! Não estava metido nessa confusão!
Uma mulher: Essa doença já é velha! O escriba está falando de uma maldição para agora!

Asaf, o fruteiro, tinha a mão direita paralisada fazia anos. Quando viu que todo mundo olhava para ele, quis esconder-se e sair da sinagoga, mas o escriba ossudo não permitiu.

Josafá: Ei, você, o da mão seca! Não se esconda, venha aqui!...Venha aqui no meio!

Empurrado por todos os que estavam ao seu redor, Asaf apareceu no meio da sinagoga. Tinha o rosto mais vermelho que sua túnica.

Josafá: Estão vendo esse homem?... Estão vendo bem?... Pois Deus, do mesmo modo secará as mãos dos que roubaram as espigas que não eram suas!!... Que a maldição de Deus caia sobre vocês!!

A voz do escriba retumbou como um trovão. Depois se fez o silêncio. Todos esperávamos que um raio rompesse o teto da sinagoga e fulminasse com fogo nossas mãos. Mas o que ouvimos foi a voz de Jesus...

Jesus: É sábado, doutor Josafá: Também é proibido amaldiçoar no sábado. Não peça a maldição de Deus. Deus não faz o mal nunca, nem no sábado nem em qualquer outro dia da semana. Você diz que conhece muito bem as escrituras, mas está enganado. Deus não pôs as leis para que pesem sobre os homens e os esmaguem. Deus quer que os homens sejam livres e que não sejamos escravos das leis... Não, Deus não vai secar nossas mãos. Pelo contrário, vai deixá-las livres para continuarem lutando e trabalhando, assim como deixa livre a mão desse homem... Asaf, estenda sua mão!

Asaf, o fruteiro, estendeu o braço e começou a movê-lo. Armou-se a maior confusão! Todos nos lançamos sobre ele para tocar-lhe a mão e comprovar se o que havíamos visto era verdade...

Uma mulher: Bendito seja Deus!... Hoje vimos o que nunca foi visto!...
Um homem: Se isto não é o fim do mundo, é véspera!

O rabino, encolerizado, destampou a gritar sobre o estrado...

Rabino: Fora da sinagoga! Vocês profanaram o templo de Deus!... Fora daqui, fora!

Nem os escribas nem o rabino conseguiram nos colocar para fora da sinagoga. Éramos muitos e o reboliço era tão grande que nem a empurrões conseguiam tirar-nos... A boa notícia da cura de Asaf correu pelo vale da Galiléia como corre o vento sobre as árvores. E desde aquele dia, os mestres da Lei começaram a perguntar-se o que podiam fazer contra Jesus...



Na sinagoga, reuniam-se os israelitas todos os sábados para rezar e prestar culto a Deus. Ali precisamente são julgados Jesus e seus vizinhos por haverem violado a lei que fazia do sábado um dia de estrito descanso. Com suas palavras diante do rabino e da comunidade e com sua ação, Jesus põe de manifesto que o verdadeiro culto a Deus deve levar em conta a libertação do homem necessitado.

Os israelitas remontavam a lei do sábado, para muito antes de Moisés, era o próprio desígnio de Deus criador. Segundo a tradição, Deus criou o homem no sexto dia. E depois estabeleceu o sétimo dia como dia de descanso. Esta ordem na criação indica - como disse Jesus - que “Deus instituiu o sábado por causa do homem”. Isto é, para o seu proveito. Jesus considerava este preceito do sábado como um presente de Deus para o homem. Um presente para seu ócio, para que não fosse escravo do trabalho. Mais que essa lei original, realmente boa para o homem, o que Jesus rechaça é a tradição e os costumes que gerações de rabinos e fariseus haviam elaborado acerca do sábado até fazer dele um jugo insuportável.

A tradição sobre o sábado havia chegado a ser extremamente minuciosa, especificando-se em detalhe tudo o que se podia e o que não se podia fazer nesse dia. Nos tempos de Jesus, havia 39 trabalhos catalogados como estritamente proibidos. Somente salvar a vida, em um caso extremo, liberava do cumprimento do preceito. Jesus não se contenta com esta única exceção e se rebela diante do rigorismo, contrário à vontade de Deus.

Em alguns ambientes, o cristianismo ficou, muitas vezes, reduzido a um catálogo de leis, e não precisamente libertadoras, mas repressivas. O ideal da vida cristã se reduziu em ocasiões de cumprimento escrupuloso de normas negativas: “Não pode” , “está proibido”, “Deus vai castigá-lo se fizer isso”... Trata-se de uma péssima caricatura da religião e de um comportamento totalmente anti-cristão. Jesus sempre colocou o homem acima de qualquer lei. E o cristão é, por definição, um homem livre diante da lei.

Jesus foi um constante violador da principal lei de sua época. Para os mestres e legisladores de seu povo foi, por isso, um rebelde. Ao julgá-lo assim, não careciam de razão. Quando Jesus insiste com palavras e obras em que o sábado foi feito para defender as necessidades dos homens e não para reprimi-las, está fazendo uma interpretação contrária à prática habitual. Qualquer lei que oprima o homem e não o deixe viver não tem nenhum valor.

O rabino era, na comunidade, a autoridade religiosa. Junto com ele, aparecem neste episódio os mestres. Doutores ou teólogos, cuja missão era a interpretação das leis e a vigilância de seu cumprimento. Todos agem como fiéis aliados do latifundiário e defensores de seus interesses, por mais que o justifiquem com a lei religiosa do sábado.

O sinal que Jesus realiza fazendo com que o fruteiro Asaf consiga estender sua mão paralisada, põe de manifesto que à maldição com que uma falsa religião ameaça o homem se opõe, vitoriosa, a bênção de Deus que quer que o homem seja livre e viva. Este episódio está em relação com os anteriores. O sinal que Deus realiza por Jesus ratifica o anúncio de libertação das bem-aventuranças. E abençoa a ação libertadora levada a cabo pelos pobres de Cafarnaum.
Os três capítulos formam como que um tríptico-resumo de um esquema catequético muito repetido no evangelho: Proclamação-praxis-sinal.


(Mateus 12, 9-14; Marcos 3, 1-6; Lucas 6, 6-11)