segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capítulo 16 - DEBAIXO DA FIGUEIRA

Por aqueles dias, encarregamos Felipe, o vendedor de miudezas, que falasse com Natanael, de Caná da Galiléia, para que o animasse a entrar em nosso grupo. E Felipe, sem que precisássemos dizer duas vezes, se pôs em marcha pelo caminho das caravanas que atravessa o vale de Esdrelon...
Chegou a Caná da Galiléia por volta do meio dia. O povoado cheirava a vinho e marmelo. Felipe empurrou seu carroção de bugigangas até à porta de uma pequena oficina de lã onde trabalhava Natanael... Mas a oficina estava vazia. Lá, no pátio, à sombra de uma figueira, estava tombado Natanael, dormindo a sono solto... Felipe entrou na ponta dos pés e se aproximou em silêncio do seu amigo...

Felipe: Natanael... Nata... Pssst... acorde, Nata... Natanael!!!
Natanael: O que é? Quem é? Demônios, Felipe, é você? O que está fazendo aqui? Por onde entrou?
Felipe: Por onde vou entrar? Pela porta. Eu queria lhe fazer uma surpresa e o encontro roncando como um porco.
Natanael: Você é um estúpido, Felipe! Estragou tudo. E estragou no melhor momento!
Felipe: Mas, Natanael, eu...
Natanael: Eu não o perdoarei nunca, está ouvindo? Nunca! E agora suma daqui! Vai e não volte mais!
Felipe: Mas, Nata, o que acontece? Os negócios vão mal? Não se desespere. Morreu algum parente? Ora, eu sinto muito! Seu fígado está doendo? Malagueta com sal. Sua mulher te bateu com um cabo de vassoura? Dê uma surra nela de cacete para que aprenda a respeitar o marido, caramba, ninguém pode permitir que...
Natanael: Vai, cale a boca, Felipe!... Uff, quando você começa não há quem o segure!...
Felipe: O que você estava sonhando, Nata? Quando vi você dormindo debaixo da figueira, cheguei perto e você estava com um sorriso de anjo... como se tivesse ganho de presente a égua branca de Salomão.
Natanael: Melhor que isso, Felipe. Era... era algo...!
Felipe: Vamos lá, Natanael, desembucha! Conte-me esse sonho. Sou seu amigo, não sou?
Natanael: Imagine só, Felipe, sonhei... sonhei que havia ganho uma fortuna jogando dados.
Felipe: Está certo. Você merece isso, Nata. Você nunca trapaceia quando está perdendo.
Natanael: Havia muito dinheiro, um saco cheio de moedas de prata. Aí eu vou e digo para a minha mulher: “Velha, vamos mudar para Jerusalém. Acabou-se esse negócio de andar descalço e comer cebolas. Estamos ricos, está entendendo, estamos ricos!...” E lá fomos nós para Jerusalém. Então abri uma enorme oficina. O negócio prosperava. Montanhas de lã, montanhas de peles, rocas, lançadeiras, uma dúzia de teares, tecidos de quatro fios, tapetes coloridos... e eu era o dono de tudo, Felipe! Era tudo meu! E o negócio subia como a espuma do vinho quando fermenta. E o dinheiro entrava aos jorros em minha casa. Aos sábados eu ia ao templo de braços com minha mulher, caminhando devagar pelas ruas, está imaginando? Eu, com uma túnica de linho  branco, ela com muitos colares e um par de braceletes de ouro... E todos esbugalhavam os olhos de inveja e diziam: “Lá vai Natanael, não há quem possa com ele!” E então... então...!
Felipe: Então o que?
Natanael: Então chegou você, idiota. E tudo se acabou.
Felipe: Mas, Nata, isso é magnífico. Ouvindo você fico morrendo de inveja, olhe... parabéns, amigo, a sorte está rondando sua casa!
Natanael: Não, Felipe, era só um sonho. Você está vendo, os infelizes como nós não podem nem sonhar.
Felipe: Pelo contrário, Nata. É precisamente disso que eu vim falar com você. Eu lhe trago uma boa notícia.
Natanael: Pois então solte-a logo para ver se conserta o estrago que fez me acordando.
Felipe: Nata, ele já chegou.
Natanael: Quem chegou?
Felipe: Shsss! Não grite... Nata: encontramos o homem!
Natanael: Mas do que é que você está falando?
Felipe: Como de quem? Do sujeito que precisamos para que seu sonho se torne realidade. Você não terá só uma oficina de lã, mas um palácio de mármore maior que o de Caifás!... Será o comerciante mais rico da capital! E não só você. Eu também, Nata! Está vendo esse carroção com pentes e amuletos? Rá, rá!... Logo estará cheio de pérolas, está ouvindo, mais colares de pérolas do que tinha a rainha de Sabá no seu pescoço! Vendedor de pérolas finas, acredita?... umas pérolas assim grandes, do tamanho deste punho...!
Natanael: Você está ficando louco, Felipe.
Felipe: Não, amigo Natanael, eu lhe digo que com este homem a coisa vai mudar.É um sujeito e tanto. Eu creio que é ele que esperávamos.
Natanael: O que esperamos é o Messias. Mas você não está falando do Messias, está?
Felipe: Veja, Nata, eu não sei se ele é o Messias, se é outro batizador como João, ou quem é. Além do mais, tanto faz quem ele seja. O fato é que tem boas idéias. Sabe as Escrituras de cabo a rabo. Conhece os salmos na ponta da língua. Ele lhe fala tanto de Moisés como dos profetas. Uma coisa eu lhe digo, Nata, com esse cara a gente vai progredir.
Natanael: Acabe logo com isso, Felipe, de quem você está falando?
Felipe: Não lhe digo. Descubra você mesmo.
Natanael: Você está gozando da minha cara?
Felipe: Não, Nata. Estou falando sério. Vamos, adivinhe.
Natanael: Bom, pelo menos me diga de onde ele é. Seguramente é de... de Jerusalém.
Felipe: Está enganado. De Jerusalém não é.
Natanael: Não é de Jerusalém... então será de... não sei... De Cesaréia?
Felipe: Frio, frio. Você foi muito longe. Suba mais para o norte.
Natanael: É daqui da Galiléia?
Felipe: Sim, senhor, da Galiléia. Mas de onde? Adivinhe. Eu lhe dou um pente se descobrir.
Natanael: E pra quê eu quero um pente, Felipe?
Felipe: Vamos, vamos, adivinhe. De onde?
Natanael: De Tiberíades.
Felipe: Não.
Natanael: De Séforis.
Felipe: Muito menos.
Natanael: De Betsáida?
Felipe: Muito frio! Parece mentira, Natanael, está tão perto e você não advinha. É quase vizinho seu: é um nazareno!
Natanael: De Nazaré?... Daquela biboca de Nazaré?
Felipe: Sim, Nata, dali mesmo.
Natanael: Vamos, Felipe, vai tirar pêlo de outro, que eu já sou careca. De Nazaré!... E desde quando de Nazaré pode sair alguma coisa que preste? Desse buraco só saem baderneiros e bandidos.
Felipe: Pois eu lhe digo que esse é o homem que precisamos.
Natanael: Mas até agora você não me disse quem é.
Felipe: Jesus! Não se lembra?... Jesus, o filho de José, o moreno que viajou conosco até o Jordão e que contava tantas piadas!
Natanael: E agora esta é a última piada, não é? Esse camponês vai ser nosso libertador? Mas em que cabeça você acha que cabe isso, Felipe?... Só na sua, a maior e a mais oca de todas.
Felipe: Está bem, está bem, diga o que quiser. Mas amanhã mesmo você vem comigo.
Natanael: Ir com você? Aonde?
Felipe: A Cafarnaum. Alí está o homem. Estamos formando um grupo, Nata, e você tem que entrar nele.
Natanael: Não, não, não, deixe-me sossegado, que aquela viagenzinha ao Jordão já me deu bastante calos nos pés. Daqui eu não me mexo.
Felipe: Sim, sim, sim, você vai comigo amanhã ver Jesus.
Natanael: Não, não, não, me deixe em paz que eu tenho muito trabalho e minha mulher...

Felipe, como sempre acontecia, acabou ganhando e convencendo Natanael. No dia seguinte, muito cedo, os dois se puseram a caminho de Cafarnaum. Natanael ia ao lado de Felipe, ajudando-o a empurrar seu destrambelhado carroção de bugigangas...

Felipe: Uff...! Até que enfim estamos chegando... Já dá pra ver as palmeiras de Cafarnaum. Quando passarmos perto da mesa dos impostos, onde está aquele asqueroso do Mateus, não se esqueça de escarrar, Nata.
Natanael: Diabos, para que fui me meter nessa confusão...? Você sempre me enrola, Felipe...
Felipe: Venha, agora vamos para a casa do Zebedeu. Com certeza o nazareno está lá.
Jesus: Caramba, Natanael! Já faz um bocado de tempo que viajamos juntos ao Jordão!
Natanael: Fico contente por cumprimentá-lo de novo, Jesus... Como foi desde aquela última noite em Betabara quando nos despedimos?
Jesus: Comigo tudo bem, e com você? E como vai a oficina de lã?
Natanael: Mais ou menos, você sabe. A gente vai empurrando a vida igual esse carroção do Felipe.
Jesus: Que bom que você veio, Natanael. Precisamos de você.
Natanael: Como?
Jesus: Precisamos de você.
Natanael: Precisam de mim?
Jesus: Sim, de você. Felipe não lhe disse nada?
Natanael: Bem, eu... Mas, do que é que você está falando?
Jesus: Estamos formando um grupo, Natanael. E contamos com você. Precisamos de gente como você, a quem não importa o dinheiro e a comodidade. Gente que esteja disposta a deixar tudo pela causa.
Natanael: Que causa?
Jesus: A causa da justiça. Aquilo que dizia o profeta João.
Natanael: Bem, eu... Quem lhe disse que eu sirvo para isso?
Jesus: A gente vê isso nos seus olhos, Natanael. Você é um israelita de boa marca. Aposto que se ganhar uma fortuna jogando dados, você a dará de presente aos mais pobres que você. Se você tivesse uma grande oficina em Jerusalém, repartiria o tecido para que ninguém andasse nu em Israel, não é verdade? Você não permitiria que sua mulher andasse com braceletes de ouro quando há tanta miséria neste país...
Natanael: Sim, sim, claro... bem, não sei...
Jesus: Você não sonha em ser rico, Natanael?
Natanael: Eu? Não, eu nunca sonhei com isso...
Felipe: Vamos, Nata, não precisa disfarçar, já descobriram tudo. Não se lembra quando estava debaixo da figueira?
Natanael: Cale a boca, Felipe, que ninguém lhe deu colher nesta sopa.
Felipe: Está bem, está bem, Nata, eu me calo, mas...
Jesus: Estou certo, Natanael, que você sonha em ser rico para poder repartir tudo com os desamparados. Porque, como alguém pode ser feliz vendo que os outros sofrem e passam fome?
Felipe: É o mesmo que eu digo, Jesus, que isso não pode continuar assim. Deus tem que meter sua mão para arrumar esta situação.
Jesus: Nós é que temos que meter a nossa, Felipe. Nós somos essa mão de Deus. Bem, quero dizer, que Deus conta conosco. Você não acha, Natanael?
Natanael: Deus conta com a gente para que?
Jesus: Para que as coisas mudem. Para que você e todos nós, os pobres desse mundo, tenhamos algum respiro. Para que a ninguém sobre e a ninguém falte. No Reino de Deus não haverá desigualdades.
Felipe: Eu não lhe disse, Nata? Os de cima pra baixo, os de baixo pra cima. Com esse cara a gente vai pra frente!
Jesus: Quer unir-se ao nosso grupo, Natanael?
Natanael: Bem, deixe-me pensar um pouco... Eu, na verdade, não sei fazer muito, mas...
Jesus: Veremos coisas grandes, Natanael. Deus não nos falhará, estou certo.
Felipe: Vamos, Nata, anime-se. Você não queria ganhar na loteria? Pois aposte neste número. Não é assim que se diz: esse não falha?!...
Jesus: Sim, veremos a promessa de Deus cumprindo-se na terra. E o sonho dos pobres se converterá em realidade.

Com Natanael, de Caná da Galiléia, já éramos sete no grupo.



Caná da Galiléia era uma pequena aldeia a 6 Km de Nazaré. Existia uma certa rivalidade entre os vizinhos de um e outro lugar. A atual Caná é uma cidade pequena e totalmente árabe. Uma igreja recorda o primeiro sinal de Jesus feito ali ao transformar água em vinho. Outra pequena igreja próxima está dedicada à lembrança do apóstolo Natanael, nascido em Caná, e a quem outras tradições chamam de Bartolomeu.
No relato, Natanael é curtidor de couro e tecelão. Estes ofícios eram considerados nas listas oficiais como desprezíveis. Para os que se consideravam puros e dedicados a trabalhos superiores eles representavam uma mancha social. O ofício de curtidor era considerado duplamente desprezível, por causa do mau cheiro que produzia o couro ao ser curtido. Era, pois, um ofício repugnante a tal ponto que dava direito às mulheres de curtidores divorciarem-se de seus maridos. O ofício de tecelão (na Galiléia se trabalhava mais o linho, na Judéia a lã) era desprezível porque era considerado trabalho exclusivo de mulheres. Em Jerusalém, por exemplo, o bairro dos tecelões era totalmente marginal e estava situado junto ao lixão público.
Natanael, como tantos trabalhadores pobres, está tocado pela ambição de chegar a manejar muito dinheiro e alcançar prestígio social. A isto reduz, no princípio, o Reino de que Jesus lhe fala, entendendo como uma forma de ascensão pessoal, de libertação individual de sua miséria.
Jesus o desconcerta: a libertação é comunitária, é necessário partilhar. A Boa Notícia de que os pobres deixarão de sê-lo exige esforço de todos em uma luta solidária.
Os discípulos de Jesus viveram um processo de crescimento diário na compreensão do que o Reino de Deus significava. Foi o contato com seus patrícios, a prática de pôr em comum o dinheiro, planos e perigos, e a palavra inspiradora de Jesus, que os fez evoluir nesta compreensão. Nenhuma comunidade cristã é madura no seu começo, nem tampouco seus membros estão livres de ambições, egoísmos e falhas. O contato atento com o concreto de cada dia e a busca de luz na palavra evangélica fazem crescer a comunidade cristã.
O relato da vocação de Natanael, no Evangelho de João, está cheio de símbolos teológicos: o sonho (referência ao sonho da escada de Jacó, Gn 28, 10-17);o estar debaixo da figueira (em relação com a profecia de Oséias, onde se simboliza assim a fidelidade do povo, Os 9,10); o olhar profético de Jesus sobre Natanael (imagem da escolha que Deus faz do resto fiel de Israel para a comunidade messiânica, Sof 3, 12-13). Tendo em vista este gênero simbólico, não se deve tomar o episódio evangélico como uma prova do poder adivinhatório de Jesus, sobre os pensamentos ocultos das pessoas. Basta perceber nisso o homem intuitivo que pressente o que há no coração de seus amigos e sabe entusiasmá-los com um ideal, qualidades típicas de um líder popular.
(João 1,45-51)

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