segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capítulo 19 - A SOGRA DE PEDRO

Ao sair da sinagoga, Tiago, Jesus e eu fomos à casa de Pedro. Rufina, sua mulher, estava preparando para nós uma boa panela de lentilhas...

Pedro: Venham, camaradas, sentem-se aqui nesta sombrinha, que esta comida fica pronta em menos tempo que leva um galo pra cantar. E eu juro pelos meus bigodes que cada um terá seu bom pedaço de toucinho... Venha, Jesus, vamos buscar umas azeitonas enquanto a Rufina assopra o fogão.

Simão Pedro era um tipo especial. Pedro-atira-pedras, como todos o chamávamos. Tinha a barba muito crespa e o nariz gordo como um figo. Era o melhor remador do lago e o mais bagunceiro também. Pedro sempre cheirava a pescado e estava sempre de bom humor. Tinha quatro meninos. Se matava trabalhando por eles. E por Rufina, sua mulher. Ele a queria muito, embora estivessem sempre brigando...

Pedro: Mas, Rufina, mulher, quando vão ficar prontas essas lentilhas? Essa gente está com fome!... Pelo rabo de Satanás, vê se vai mais depressa!...
Rufina: Está com pressa agora, não é? E por que você não me deu o dinheiro antes, seu pãoduro?... O que você está pensando, heim? Que as lentilhas chovem do céu? A gente tem de pagá-las, narigão, tem de pagá-las!
Pedro: E aquela bruxa do mercado não lhe podia vender fiado?
Rufina: Aquela bruxa, como você diz, já está há três semanas vendendo nossa comida fiado, e disse que se você não pagá-la antes do sábado, não vai me dar nem uma cebola mais!
Pedro: E o que você respondeu?
Rufina: Que pra mim está tudo bem, que ela tem toda a razão!
Pedro: Ah, então ela tem razão, não é?
Rufina: Sim, senhor, ela tem razão, sim!
Pedro: Olhe, Rufina, não levante a voz pra mim, heim, não levante a voz pra mim...
Rufina: E nem você para mim, homem escandaloso! Eu acho que minha mãe ficou doente por causa dos seus gritos!
Pedro: Não me venha com essa, a sogra está doente por conta de sua preguiça, pois se ela estivesse aqui essas lentilhas já estariam prontas!!..
Rufina: Pedro... Pedro...
Pedro: O que... o que foi?
Rufina: ... Não me chame de preguiçosa, que não é verdade...
Pedro: E você não me chame de pão-duro que eu não gosto...
Rufina: Pedrinho, o que eu faria sem você?
Pedro: Hummm... Isso digo eu, o que eu faria sem você, Rufi?

Pedro e Rufina tiveram quatro filhos: Simãozinho, o primeiro homem. Depois vinha Alexandre, de cinco anos; Rubens, de três; Efraim, de dois e... bem, outro que vinha a caminho e que todos esperavam fosse uma menina... Com Pedro vivia seu irmão André, o magro, ainda solteiro. E o pai deles dois, Jonas, um avô rabugento. E a velha Rufa, a mãe de Rufina, que já estava doente fazia dois meses...

Tiago: E então, Pedro, o que acontece com essas lentilhas? Vêm ou não vêm? Está parecendo que o bode as comeu antes de chegar à mesa!
Pedro: Camaradas, não se desesperem. Vamos comer já, já! Não se impacientem, é que... nesta temporada, com a sogra doente, tudo se complica...
Simãozinho: Jesus, a avozinha está doente.
Jesus: Ah, é? e onde ela está, Simãozinho?
Simãozinho: Lá naquele canto.
Pedro: A velha Rufa, Jesus, minha sogra. Uma pena, você sabe. Uma febre ruim dessas que dão agora... Olhe, por que você não vai cumprimentá-la e lhe conta uma história das suas, enquanto minha mulher acaba de amolecer essas malditas lentilhas...? Sim, venha, entre, Jesus, a velha está deitada lá dentro... Venha, não repare a bagunça, você já sabe como se vive por aqui com tanta gente num quarto só...
Jesus: Como vai, vovó? Como se sente?
Rufa: Quer que eu me sente? Eu não posso sentar-me porque estou quase morrendo.
Jesus: Não, eu perguntei como a senhora se sente.
Pedro: Está um pouco surda, Jesus. Não ligue para isso!
Rufa: Quem é você?
Pedro: Olhe, sogra, este é um amigo de Nazaré, está ouvindo, de Nazaré. Ele se chama Jesus e veio passar uns dias com a gente. É um tipo chistoso, sogra. Peça-lhe para contar uma história e verá como vai dar umas boas risadas.
Rufa: E eu estou lá pra rir!... Me ponho melhor a chorar...
Jesus: Vamos, vovó, não seja tão cinzenta. Que doença você tem, me conte...
Rufa: Ai, meu filho, eu sei lá... Eu não sou médica!
Pedro: Bom, Jesus, vou deixar você com a velha. E vou botar pressa na Rufina. Eu venho chamá-lo depois...
Rufa: Estou achando esquisito esse quebranto, filho, porque, veja, por dentro eu sinto como se fosse um fogo colado nos ossos, está me ouvindo?
Jesus: Sim vovó, estou ouvindo bem!...
Rufa: Mas por fora tenho como um frio, um frio tão grande que me arrepia os cabelos.
Jesus: Isso não é nada grave, vovó. É uma febrezinha.
Rufa: Mas, filho, como o frio e o calor podem estar juntos?
Jesus: E o que isso tem de estranho, vovó? Também o carinho e a briga andam juntos. Você não ouviu agora mesmo a gritaria entre sua filha e seu genro?
Rufa: Eu estou surda, não ouço nada. Escuto os sinos mas não sei onde repicam.
Jesus: Pois estavam repicando na cozinha. Pedro e Rufina brigando.
Rufa: Ah, sim, esses dois se dão um beijo hoje e uma mordida amanhã. Eu não entendo essa juventude de agora. Dizem que se amam muitíssimo e não se cansam de brigar.
Jesus: Bem, mas isso sempre passa. Você terá dado seus beijos e suas mordidas também, não é mesmo, vovó?
Rufa: Ai, meu filho, mas isso era antes. Agora já nem dentes tenho mais... Olha como ficou minha boca...Ahhh... Eu estou como as velhas redes que, por onde quer que as agarre, sempre se rompem. Já não sirvo mais pra nada.
Jesus: Não me venha com essa conversa, vovó. Tenho certeza de que se você se levanta, se arruma um pouco, sai pra dar uma voltinha pelo povoado, ainda lhe jogam um galanteio.
Rufa: Me jogam o que?
Jesus: Um galanteio, uma palavra bonita.
Rufa: Um galanteio pra mim?... Ri, ri, ri... Ai, caramba, meu filho, eu já não sirvo pra nada...  Antes sim. Antes eu tinha todos os meus dentes e um cabelo muito liso e...
Jesus: ... e lhe diziam muitas coisas lindas quando ia caminhando por Cafarnaum, não é
mesmo?
Rufa: Quando me disseram o último galanteio pela rua eu tinha uns quarenta anos, imagine. Eu me conservei muito tempo.
Jesus: Ah, é?!... E o que foi que lhe disseram, heim, vovó? Conte-me.
Rufa: Bah, já não me lembro mais. Choveu muito desde então.
Jesus: Não, não, velhinha, agora você já beliscou minha curiosidade. Vamos lá, diga aqui no meu ouvido para que ninguém mais escute...
Rufa: Bobagens de vocês homens. Pois olhe, eu ia indo pelo mercado com uma rosa no cabelo... Aí alguém disse: “ Quando eu te vejo passar, eu digo ao meu coração: que bonita pedrazinha para eu dar um tropeção” Ri, ri, ri... Assim me disse um fruteiro, já pensou!?...
Jesus: Você tem um cabelo muito bonito, vovó.
Rufa: É, mas daqui a pouco ele cairá também. Para nós velhos tudo vai caindo, como as folhas secas da figueira.
Jesus: Da figueira as folhas caem no inverno, mas logo vem a primavera e retorna outra vez e voltam as folhas novas e as flores.
Rufa: Mas para os velhos não há mais primavera. Hoje você me vê aqui. Quando voltar amanhã, pode ser que já não me encontre mais.
Jesus: O corpo vai se gastando, vovó. Mas o coração, não. O espírito nunca fica velho. O importante é ter o espírito jovem. Repare em Deus... os anos que Deus já viveu desde que criou o mundo. Mas Deus é jovem, tem o coração jovem. Como você também, vovó.
Rufa: Deus não se lembra de nós, os velhos.
Jesus: Não diga isso, vozinha. Deus se preocupa com todos os seus filhos: os grandes e os pequenos, as crianças e os velhos. Ele não nos abandona nunca.
Rufa: Pois eu, às vezes, me sinto abandonada, meu filho, como esses troncos secos que as ondas do lago empurram pra lá e pra cá, assim estou eu...
Jesus: Que é isso, minha velha. Você tem boas raízes. Você ainda tem força para uns quantos anos mais. E depois, quando Deus a chamar, não se assuste tampouco. Nós não ficamos na terra, vovó. Vamos para junto de Deus, continuar vivendo em sua casa, uma casa grande e alegre onde todos cabemos.
Rufa: Você fala bonito, menino. Que Deus abençoe sua língua.
Jesus: E que a você ele abençoe os ossos para que lhe saia esse fogo que tem dentro.
Rufa: Obrigada, meu filho. Mas também, pra quê?... não faz muita falta... Ninguém precisa mais de mim neste mundo...
Jesus: Como você pode dizer isso? Seus netos precisam de você. Seu genro Pedro estaria mais tranqüilo agora se você fosse dar uma mãozinha para sua filha que está passando um mal pedaço com essas lentilhas que não querem amolecer.
Rufa: Ah, isso eu lhe digo mesmo, no fogão não tem quem ganhe de mim. Porque assim como você me vê agora, há duas semanas eu estava amassando o pão, recolhendo lenha, e lavando roupa. Costurar, não, tenho os olhos cansados. Mas todos os outros trabalhos eu faço igual a uma recém-casada.
Jesus: Ah, é? E você me dizia que não servia mais para nada...
Rufa: Sim, mas essa doença me derrubou. Eu já não tenho vontade nem de cantar.
Jesus: Você também sabe cantar, vovó?
Rufa: Ai, sim, meu filho, muito. Eu era muito alegre.
Jesus: Meu avô Joaquim sempre cantava pra nós lá no campo, as modinhas antigas de seu tempo...
Rufa: Você gosta dessas canções antigas?...
Jesus: Muito, vovó... Escute, você não sabe aquela dos “lírios do rei Davi”?
Rufa: Claro que sei. Quem me ensinou essa foi uma comadre minha quando viajamos a Jerusalém para a Festa das Tendas.
Jesus: E por que não a canta, vó?
Rufa: Eu estou doente, menino. Como vou cantar?
Jesus: Vamos, vovó, vamos... anime-se e cante... Por que não se senta e fica mais
confortável?... Venha, dê-me a mão... anime-se...
Rufa. Devagar, rapaz, senão eu despenco...
Jesus: Não, minha velha, você está com a cara boa... Vamos, ponha-se de pé... sim, claro que sim... upa, levante-se... devagar, vovó...
Rufa: Espere, meu filho... que esses ossos... ai ...
Jesus: Viu só como você consegue? Não se sente um pouco melhor agora?
Simãozinho: A vovozinha, já sarou?
Pedro: Mas, sogra, o que está fazendo de pé? Vai se deitar imediatamente!
Jesus: Deixe-a em paz, Pedro, que ela vai cantar “Os lírios do rei Davi”, não é mesmo, vovó?
Pedro: Os lírios de... Mas quem está com a febre ruim aqui, ela ou você? Ficaram loucos os dois? Rufina, venha ver isso...!
Rufa: Deixe-me quieta, Pedro, que já me sinto mais do que bem!
Meninos: A vovó sarou! A vovó sarou!
Rufina: Mas mamãe, o que você está fazendo de pé? Deite-se na esteira!
Rufa: Deite-se você se quiser, e não me amole que eu me sinto bem. E tem mais, vou agora mesmo para o fogão ajudá-la com a comida para que vejam que a velha Rufa ainda serve para alguma coisa, caramba...! E que sabe fazer uns guisados, que até o mais enjoado vai lamber os dedos!

Jesus deu à velha Rufa muitas ganas de viver. E a sogra de Pedro se levantou aquele dia e muitos dias mais. E ajudava na cozinha, e lavava a roupa e servia a mesa... e cantava as cantigas antigas, aquelas que seus avós lhe ensinaram e que agora ela ensinava a seus netos.



Pedro tinha sogra, portanto, era casado. Esse é um dado do evangelho. A composição de sua família (sua mulher Rufina e seus quatro filhos) é uma elaboração do relato. Os discípulos de Jesus não foram homens desencarnados de uma história pessoal. Tinham uma profissão, uma família, uma casa, uma psicologia bem diferente uns dos outros. De Simão, por sobrenome Pedro (no relato também é chamado de “atira-pedras”), é de quem mais dados nos oferece o evangelho para reconstruir sua maneira de ser. Protagonista em muitos episódios da vida de Jesus, Pedro aparece com um homem vital, impulsivo, algo estouvado, afetuoso, cheio de generosidade e ligado a Jesus por uma profunda amizade. A casa de Pedro, onde Jesus se encontra com a velha Rufa, é um dos lugares com maior autenticidade histórica entre as lembranças materiais da vida de Jesus. Da casa de Pedro se conservam os alicerces e, neles, o portal de entrada.
Com toda a certeza, Jesus o cruzara centenas de vezes. Esses alicerces deixam ver um
espaço reduzidíssimo onde a família de Pedro viveria mais que pobremente. Nos tempos de Jesus havia menos anciãos que hoje em dia. A vida do homem era mais curta porque havia poucos conhecimentos médicos. A maioria dos homens e mulheres morria jovem,
comparativamente a hoje. Os anciãos eram muito queridos e sua presença inspirava respeito na família. Eram também os responsáveis por transmitir a história familiar, as tradições culturais, etc.
Jesus se faz tudo a todos, se aproxima da avó Rufa na atitude com que devemos nos acercar sempre dos anciãos: fazendo-os sentir que ainda são úteis, dando-lhes esperança para enfrentar suas dolências com ânimo e preparando-os para a hora da morte com serenidade e confiança em Deus. Este “milagre” de Jesus é sinal do amor de Deus pelo velho que a sociedade atual, às vezes, rechaça e marginaliza como inútil.
(Mateus 8,14-15; Marcos 1,29-31; Lucas 4,38-39)

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