quarta-feira, 20 de abril de 2011

Capítulo 21 - A RUA DOS JASMINS

Do outro lado do embarcadouro de Cafarnaum, ficava a rua dos jasmins. As pessoas haviam colocado esse nome porque naquele canto do bairro, em casas muito sujas, com portas borradas, tudo cheirava a jasmim. Era o perfume que usavam as prostitutas. Jesus havia conhecido uma delas quando esteve no Jordão. Chamava-se Maria. Havia nascido em Magdala e, já fazia alguns meses, tinha vindo fazer negócio com os marinheiros do povoado... Uma noite Jesus saiu da casa de Pedro e André. Ia sozinho. Passou diante do cais, deixou para trás a sinagoga e o mercado e se foi para a rua dos jasmins... ...

Uma mulher: Ei, você, forasteiro, entre aqui!... Venha, venha... Não sou a mais jovem, mas sou a mais barata!

Jesus procurou uma casinha de adobe e pedras negras, onde lhe disseram que vivia Maria, a madalena. Empurrou a porta e se encontrou num pátio estreito e úmido. Vários homens, agachados, esperavam ali. Todos tinham os olhos cravados na cortina de juncos atrás da qual a jovem rameira forcejava com um mau cliente...

Madalena: Suma daqui, seu porcaria, vai embora e só volte se tiver dinheiro! Lixo de homem! Vai procurar outra....
Um homem: Que o inferno te engula, sarnenta!
Madalena: Que te engula primeiro, asqueroso! Puah...!
Madalena: Quem é o próximo?

Um velho de dentes amarelos se levantou do chão e se dirigiu para a prostituta. Maria estava com a túnica amarrotada e o cabelo em desalinho. A lâmpada do pátio lhe iluminava o rosto: um rosto muito jovem e muito pintado. O velho a empurrou e se enredou com ela atrás da cortina de juncos...

Um homem: Essa é uma cadela danada. Você se descuida e ela te morde!
Outro homem: Mas essa é peça única! É uma fêmea que nem o diabo fabricaria melhor!
Homem: E você, forasteiro, como se chama?
Jesus: Jesus.
Homem: É a primeira vez que você vem aqui?
Jesus: Sim, a primeira vez.
Homem: Olhe, vou lhe dar um conselho: como você é novo ela vai lhe pedir quatro. Pague só dois. Se gritar, puxe o punhal. Elas se aproveitam dos que vêm de fora, sabia?! Abre o olho e não deixe sua roupa ao alcance da mão dela...

Um após outro, foram entrando e saindo. Jesus ficou para o final. Depois de uma hora, não havia mais ninguém no pátio...

Madalena: Ei, você, o que acontece?... Vai entrar ou não? Vamos, vamos, que eu quero parar por hoje!... Maldição de marinheiros! Jesus: Maria!
Madalena: O que? Ei, quem é você?
Jesus: Maria, não está me conhecendo?... Lembra-se quando nos falamos junto ao Jordão, na casa da velha que me deu aquelas rosquinhas?
Madalena: Jesus! Você é Jesus?
Jesus: O próprio. Aproxime a lâmpada...
Madalena: É que a gente conhece tantos homens... E então?... O que você faz por aqui?...
Jesus: Estou passando uns dias em Cafarnaum. Vim visitar uns amigos.
Madalena: Ah, sim, me falaram de um sujeito novo que havia chegado ao povoado, um camponês meio pedreiro, meio carpinteiro... mas nunca pensei que fosse você... Venha, entre, não fique aí no pátio... Caramba, fico contente de ver você de novo!
Jesus: Eu também, Maria. Ontem me disseram onde você morava e por isso vim.
Madalena: E aí? Trabalhando no cais, no mercado ou onde?
Jesus: Bah, fazendo um bico aqui, outro ali. Se o teto cair ou quebrar a escada, avise-me. Se precisar de ferraduras, também.
Madalena: E onde você está vivendo, me diga?
Jesus: Alí, no bairro dos pescadores. Com os amigos que conheci no Jordão, se lembra?
Madalena: Com Pedro, Tiago, essa turma?!...
Jesus: Sim, são bons amigos...
Madalena: Meu Deus, que amigos você encontrou!... Eu já lhe disse: se os vir por esta esquina, dobre pela outra. Se lhe oferecem quatro, lhe dão dois. E se lhe oferecem dois, nada. Falar muito, isso é o que eles sabem fazer. Eu conheço bem todos eles!
Jesus: Bem, deixe-os em paz! Eu vim cumprimentar você. Me disseram que você vivia nessa casinha...
Madalena: Puxa, é mesmo, desculpe, com a surpresa me esqueci do trabalho... Já vou tirar a roupa, espere...
Jesus: Não, Maria, eu não vim pra isso.
Madalena: Como?
Jesus: É, eu não vim pra isso. Vim cumprimentar você.
Madalena: Ah, entendi, você está sem dinheiro. É o que todos dizem. Mas tudo bem, não se preocupe. Depois você me paga.
Jesus: Não, Maria, eu lhe disse que não vim para isso.
Madalena: Está bem, está bem. Achei você muito simpático desde que o vi lá no rio. Por esta vez, não lhe cobrarei nada. Mas da próxima, sinto muito! Eu vivo disso, sabe? Se começar a fazer desconto para todos, não ganho nem para o sebo da lamparina. Negócio é negócio, você entende, não?
Jesus: Mas, Maria, eu lhe digo que vim para saudá-la, simplesmente. Conversar um pouquinho com você... Não acredita?
Madalena: Nenhum homem entra por esta porta para “saudar-me simplesmente”. O que é que você quer? O que veio procurar?
Jesus: Nada, mulher, vim conversar um pouco...
Madalena: Olhe aqui, patrício, o que acontece com você, heim?
Jesus: Isso digo eu: que acontece com você, Maria? Venho visitá-la e você me recebe pior do que a polícia da escolta de Herodes.
Madalena: Venha cá, venha cá, ponha as coisas claras, desembucha. O que é que você quer de mim?
Jesus: Bem, se lhe incomoda que eu tenha vindo... vou embora.
Madalena: Não, não vai, mas... é que não sei...
Jesus: Vamos, abotoe a túnica de uma vez e sente-se...
Diga-me, como foram as coisas desde que nos vimos lá no Jordão?... O que foi, Maria, ficou muda?... Ou está com medo? Olhe, não tenho punhal e muito menos sei onde você esconde suas moedas... Maria...
Madalena: O que?
Jesus: Não, nada. Lará, lará, larí... Conhece essa música? É o que cantam no meu povoado quando vão cortar o trigo e... Estou vendo que você não a conhece.... Ramram!... escute essa outra... Loro la, lalaá, lá... Esta cantam na vindima, quando estão pisando a uva... Esta também não sabe, verdade?... Escute, você que já está há mais tempo na cidade, onde posso encontrar um sapateiro, bom e barato, que me faça um par de sandálias? Porque essas aqui já estão com as correias podres e... Olhe, veja só que buracos... por aqui dá para passar um camelo com corcova e tudo! Por isso perguntava se você conhece um... Ramram!... Sabe uma coisa, Maria, minha mãe gostou muito das rosquinhas de mel que aquela patrícia de Betabara me deu, lembra-se? Sim, aquela velha amiga sua... Como se chamava? Espere um pouco, está bem aqui na ponta da língua...
Sinforiana. Não. Sinforiana não. Sinforosa.

Madalena: Que Sinforiana nem Sinforosa. Ela se chamava Rute...
Jesus: Rute, isso, Rute! Bem que eu sabia que começava com erre...
Madalena: Ai, caramba, o rio Jordão!... Que lástima, não é mesmo?
Jesus: O que, Maria?
Madalena: Aquilo tudo... acabar do jeito que acabou... Ficou sabendo mais alguma coisa do profeta João?
Jesus: Não, não se sabe nada de novo. Continua preso. E que Herodes não se atreve a soltá-lo por medo de sua mulher e nem tampouco se atreve a matá-lo por medo do povo.
Madalena: Que nojo de vida! Os profetas na cadeia e os canalhas sentados no trono.
Jesus: Era um bom sujeito esse João, não é mesmo?
Madalena: Bom sujeito? Diga melhor: um grande tonto. “O Reino do Céu está chegando, está chegando o Messias!” E quem chegou foram os soldados, o levaram preso e lhe taparam a boca.
Jesus: Ele jogou uma semente. Atrás virá outro para regá-la. E mais atrás, outro para colhê-la.
Madalena: Você deve ser meio tonto como o profeta, não é mesmo?
Jesus: Você acha, Maria? Haverá algum dia justiça nesta terra!
Madalena: O que você disse?
Jesus: Eu disse que sim, algum dia chegará essa justiça que o profeta João anunciava.
Madalena: Não sei e nem me interessa. De qualquer maneira, nós seremos as últimas da fila.
Jesus: Que fila?
Madalena: Para entrar no Reino do Messias que vocês tanto falam. Dizem que Deus tapa o nariz quando alguém que nem eu passa em frente à sinagoga... Ei, espere um pouco, que a lamparina do pátio está se apagando. Deixe-me colocar um pouco mais de azeite...
Jesus: Você passa a noite com a lamparina acesa?
Madalena: E que remédio!? Se vêem a casa escura não entram. E como a vida está muito cara, não se pode dizer não aos clientes, nem mesmo se aparecem de madrugada. É assim, toda a noite esperando que venha um nojento babar em cima de você... Por que está calado?
Jesus: Não, estava pensando... Talvez você esteja melhor preparada que ninguém.
Madalena: Preparada para que?
Jesus: Nada, bobagem minha. Escute, Maria, quando eu era menino lá em Nazaré, eu tinha medo de ladrões. Imagine, agora dou risada: o que eles iam roubar dos meus pais e de mim naquela choça? Nada, duas panelas velhas. Mas eu tinha medo deles. E às vezes eu passava a noite com um olho aberto, vigiando o ladrão.
Madalena: O que você quer dizer com isso?
Jesus: Que uma noite eu pensei: Deus deve ser como um ladrão, que chega quando a gente menos espera. O importante é que a casa não esteja às escuras, para que ele possa encontrar a porta. E naquele dia eu disse à minha mãe para que não apagasse a lamparina durante toda a noite, caso Deus chegasse.
Madalena: E o que isso tem a ver comigo?
Jesus: Não apague a lâmpada, Maria, porque no momento em que você menos pensar, virá alguém que você não esperava.
Madalena: Pois é, você veio hoje e eu não o esperava.
Jesus: Eu já vou me despedindo. Já é tarde.
Madalena: Não vá. Ainda é cedo.
Jesus: Para você sempre é cedo. Mas eu tenho que madrugar para consertar uma relha de arado.
Madalena: É verdade que... você só veio até aqui....para falar comigo?
Jesus: Sim. Tem alguma coisa de mal nisso? Você se incomodou por eu ter vindo?
Madalena: Não, não... acontece que... Desde que cheguei a esta porca cidade ninguém...
Jesus: Ninguém o quê?
Madalena: ... isso, que ninguém ainda tinha vindo para... para falar comigo... me cumprimentar.
Jesus: Bem, vai ver que não a conhecem ainda.
Madalena: Ou que já me conhecem demais.
Jesus: Adeus, Maria. Que você possa descansar um pouco.
Madalena: Espere, Jesus... Você... você vai ficar muito tempo ainda em Cafarnaum?
Jesus: Eu ainda não sei. Talvez...
Madalena: Voltará aqui?...
Jesus: Claro que sim, mulher. E quando voltar espero que você tenha a lamparina acesa. Adeus, Maria, até outro dia! Maria viu como Jesus se afastava pela escura viela, a rua dos jasmins, como as pessoas diziam... Depois, voltou ao quarto, ajeitou as pinturas do rosto e se jogou na esteira do chão, esperando... Naquela noite não veio mais ninguém. Mas a lâmpada ficou acesa até que os galos de Cafarnaum anunciassem o novo dia.



Não só pela “impureza” de seu ofício, mas por sua condição - uma das mais baixas na estrutura social daquele tempo -, as prostitutas eram mulheres marginalizadas, desprezadas por todos. Não por Jesus, que falou delas, colocando-as como modelo de abertura à mensagem libertadora e, portanto, primeiras destinatárias do Reino de Deus (Mt 21,32). Esta palavra de Jesus, e também sua atitude de acolhida para com as prostitutas - Maria Madalena fez parte do grupo de seus seguidores -, constituíram um gravíssimo escândalo para os homens religiosos do seu tempo. E uma das maiores originalidades do Evangelho foi a boa notícia para os marginalizados, para os “sem moral”, a quem as leis da época trancavam a sete chaves qualquer possibilidade de aproximação de Deus. O Deus que Jesus proclama, e esta é a novidade, sente preferência por esses “pecadores”.
Jesus não só abre as portas do Reino para estas mulheres, como se aproximou especialmente de uma delas, a tal ponto que os evangelhos farão de Maria de Magdala, o primeiro testemunho da ressurreição. A condição de Maria e a relevância que lhe dá o Evangelho, deram origem em alguns romances e filmes a uma interpretação de sua relação com Jesus, como um namoro frustrado. Sem entrar ou sair desta hipótese - sem qualquer outra base além da literária -, o que se deve ressaltar é a enorme capacidade que tinha Jesus para fazer-se amigo e dar esperança a quem, por ser objeto de desprezo de todos, menosprezavam também a si mesmos. O perdão de Deus que Jesus traz, não é um perdão de palavra, à distância, mas se traduz em ações. Neste caso, aproximar-se da casa da prostituta e conversar com ela de igual para igual, prescindindo do que dirão e escandalizando os “decentes” com esses gestos. Ao agir assim, Jesus está cumprindo a promessa dos profetas: Deus sai em busca dos perdidos (Ez 34,16).
Naquele tempo, as casas eram iluminadas com lâmpadas de azeite. Eram feitas, normalmente, de argila, com duas aberturas, uma para colocar a mecha e outra para derramar o azeite. Essas lâmpadas ardiam, às vezes, a noite toda: era uma forma de espantar os maus espíritos. Por isso, sempre foram encontradas muitas lâmpadas no interior das sepulturas da época.
Um tema freqüente nas parábolas de Jesus é o da vigilância. Deus pode chegar a qualquer momento e é preciso estar preparado para recebê-lo. Deus surpreende, é um visitante inesperado. O homem deve viver em atitude expectante, sem dormir à sombra dos louros, nem deitar para descansar. Nesta linha vão as comparações do criado vigilante, do ladrão e da lâmpada (Lc 21,35-40), que Jesus empregou para falar do Reino de Deus. Maria Madalena, que tinha um “ofício noturno”, habituada a velar, podia compreender melhor que ninguém uma comparação como esta.

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