quarta-feira, 20 de abril de 2011

Capítulo 23 - UM PROFETA EM SUA CASA

Naquela manhã, quando Jesus leu as palavras do profeta Isaias na pequena sinagoga de Nazaré, seus vizinhos se enfureceram contra ele. Em seguida, levantaram gritos de protesto e maldições. A algazarra cresceu tão rápido que, quando o rabino quis pôr ordem naquele vespeiro, já era tarde demais...

Um vizinho: Profeta, você? Rá, rá, rá... Um profeta esfarrapado!
Uma vizinha: Você diz que vem nos libertar. Mas, quem pensa que é esse janota? E quem raios lhe pediu alguma coisa, filho de Maria. Vai embora e deixe-nos em paz!
Um velho: Botem pra fora esse embusteiro, vamos, botem-no para fora, que ele não perdeu nada por aqui!

Os nazarenos se lançaram sobre Jesus com os punhos para o alto. Quatro braços caíram sobre ele e o baixaram do estrado de onde explicava as Escrituras. Aos empurrões o tiraram pela estreita porta dos fundos. Todos saíram atrás, vaiando e assobiando...
Vizinho: Ao lixão!... Joguem ele no lixão!
Vizinha: Isso mesmo, no lixão!

Os vizinhos empurravam Jesus para um barranco de pouca altura onde as mulheres queimavam  o lixo toda sexta-feira...
Ananias: Onde já se viu, chegar a essa idade para ouvir tanta estupidez!

Dom Ananias, o mais rico do povoado, levantou no ar o seu bastão e o descarregou com toda a sua fúria sobre Jesus...

Ananias: Por se meter onde não é chamado!

A coisa estava ficando feia. Eu tratei de acalmá-los, mas...

João: Patrícios, por favor, escutem um momento, não sejam...

... Não pude acabar o que ia dizer. Um nazareno gordíssimo tirou uma de suas sandálias e a arremessou em mim com toda a força...

Vizinho: Segure essa, compadre!

A sandália me pegou bem no meio do rosto e comecei a sangrar pelo nariz. Jesus também sangrava e tinha a túnica feita em tiras...

Vizinha: Ao lixão! Ao lixão! Charlatão vai pro lixão!

Eu me lembro bem daquela refrega. Agora dou risada, mas naquele momento levamos um bom susto. Os vizinhos de Jesus estavam muito furiosos e não queriam saber nada dele. Bom, isso já se sabe. Quando Moisés foi falar com os seus, lá no Egito, também o chamaram de intrometido e o mandaram embora. Outro tanto se passou com Davi, perseguido pelos próprios compatriotas. E a José, que foi vendido pelos próprios irmãos. É assim que sempre acontece. Nenhum profeta é bem recebido em sua casa.

Vizinho: Não precisamos que ninguém venha resolver nossos problemas! E muito menos você, seu bisbilhoteiro!
Vizinho: Ei, pedaço de animal, vê se não empurra!
Vizinho: O que você disse?
Vizinho: O que você ouviu: que é um pedaço de animal!
Vizinho: Repita isso que eu lhe arranco o fígado!
Vizinho: Pedaço de animal, ouviu. pedaço de animal e animal inteiro!!!
Vizinho: Agora você vai ver!...

Nazaré era um povoado violento e de má fama. O sol não se punha sem que os nazarenos cuspissem sete maldições e se enredassem aos sopapos por qualquer mal entendido. Em poucos segundos, seus vizinhos se esqueceram de Jesus e das palavras que havia dito na sinagoga. A briga era de todos contra todos...

Vizinho: Imbecil, porcalhão, você vai engolir essa língua nojenta!
Vizinho: Pague o que você me deve ou o estrangulo agora mesmo!

Os meninos também se meteram no barulho. Alguns juntavam pedras para os velhos que não podiam usar os punhos. As mulheres, por sua vez, arrancavam os lenços da cabeça, se agarravam pelos cabelos e se arranhavam o rosto...

Suzana: Eu vou te esmigalhar, fedorenta dos infernos!

Suzana estava derrubada no chão, brigando com a noiva do açougueiro Trifão... Vi também Maria, a mãe de Jesus, com os olhos avermelhados e todos os cabelos revoltos, tentando se aproximar de nós... Foi quando se ouviu aquele grito poderoso atrás de nós...

Judas: Chega de briga! Vamos parar com isso!!

Eram dois homens, um montado sobre os ombros do outro, como um jóquei sobre um cavalo. O de baixo era um gigantão vermelho e sardento. Chamava-se Simão. O de cima também era jovem e forte. Levava amarrado ao pescoço um lenço amarelo. Em sua mão direita brilhava a lâmina de um punhal. Era Judas, de Kariot. Os dois zelotas se aproximaram dos nazarenos...

Judas: Já chega, companheiros! O que é que estão querendo? Matarem-se, destruírem-se uns aos outros? Esta briga acabou.
Vizinho: E quem é você, se é que se pode saber?
Judas: Um igual a você, amigo. Igual a este, igual àquele outro ali.
Vizinho: E quem mandou você se meter onde não é chamado?
Judas: É o que eu digo: Quem mandou me meter? Ninguém. Mas eu me meto. E sabem por que?... Porque me dói ver os ratos se mordendo enquanto o gato sorri e lambe tranqüilamente os bigodes.
Vizinho: O que você quer dizer com isso?

Judas guardou o punhal debaixo da suada túnica e de um salto desceu dos ombros de Simão... Os nazarenos se esqueceram do motivo da briga e se puseram a ouvir o recém chegado...

Judas: Escutem, amigos: havia uma vez um gato com fome. E havia três ratos, um branco, um preto e outro malhado, os três bem escondidos em suas tocas. O gato pensou: o que posso fazer para comê-los? Minhas patas não conseguem entrar na toca. Que farei? Então o gato se aproximou em silêncio do primeiro buraco onde dormia o rato branco e sussurrou: ratinho branco, o ratinho preto disse que você é um vagabundo. Em seguida subiu ao buraco do preto e disse: ratinho preto, o ratinho branco disse que você é um covarde. Depois foi onde estava o terceiro rato: ratinho malhado, os outros dois estão dizendo que você é o mais imbecil dos três.
Vizinha: E o que os ratos fizeram?
Judas: A mesma coisa que nós. Saíram das tocas e começaram a brigar entre si. E acabaram tão cansados que não tinham mais forças para correr e se esconder. Então veio o gato risonho, os agarrou um por um pelo rabo, e zaz!... engoliu os três. É isso que querem esses romanos invasores: fazer com que briguemos entre nós para nos engolir depois. Companheiros, eles nos querem dividir. “Divida e vencerás”: assim diz a águia romana que tem duas cabeças! Estão vendo este lenço que levo no pescoço? Ele me foi dado por Ariel, neto legítimo dos Macabeus. Aqueles sim é que foram bons patriotas. Eles não gastaram suas forças brigando com seus irmãos.
Vizinha: Isso que Judas de Kariot está dizendo é verdade! Os inimigos são outros!
Judas: É isso mesmo, mulher. Guardem o punhal para o pescoço dos estrangeiros. Guardem as pedras para a cabeça de Herodes e sua gente. Guardem as forças para lutar contra eles quando chegar a hora.

Então Judas tirou o punhal. Com uma mão agarrou uma mecha de seus cabelos e com a outra a cortou com um só golpe. Em seguida lançou os cabelos ao ar, com um juramento:

Judas: Livres como esses cabelos que cortei, assim queremos ser!... Que o Deus dos exércitos me corte pelo meio se não lutar pela liberdade dos meus!... Pela liberdade do povo de Israel!! Os nazarenos já tinham bastante sobre o que conversar e entreter-se por aquela tarde. Cada um voltou para sua choça sacudindo a poeira dos mantos. A briga lhes havia aberto o apetite. Judas e Simão, os dois zelotas, se aproximaram de nós...
Judas: Como está este trovão, o filho de Zebedeu?
Simão: A gente conhece essa barba bem de longe, João!
João: E eu também a vocês. Que surpresa encontrar você por essas paradas, Judas. Caramba, Simão, quanto tempo que não o vejo!
Simão: Como vai, João? E os outros rapazes? Ainda jogando redes para pegar caranguejos?
João: Olhem, apresento a vocês um amigo: este moreno é nascido aqui mesmo, em Nazaré. Mas agora está vivendo conosco em Cafarnaum. Chama-se Jesus e tem boas idéias na moleira, sim senhor! Olhe, Jesus, este gigante cheio de sardas é Simão, o zelota mais fanático de todo o movimento. Dá um murro num soldado romano e, antes que ele vire a bochecha direita, já levou outro na esquerda. E este com o lenço amarelo é Judas, um patriota como não há dois. Nasceu longe daqui, em Kariot, mas já sabe cuspir por entre os dentes como nós galileus.
Jesus: Me alegro em saudá-lo, Judas, e... também lhe agradeço.
Judas: Agradece por que?Jesus: Como por que? Porque você nos salvou a vida, companheiro. Se vocês não chegassem eu e João já estaríamos moídos a pau...
Simão: Mas, João não disse que eles são seus vizinhos?...
Jesus: Por isso mesmo. Você nunca ouviu aquele ditado que diz que aquele que come com você no mesmo prato é o primeiro que levanta o calcanhar contra você?
Simão: Tem razão, é isso mesmo. Bem, Judas, já é tarde. Vamos embora.
João: Vão para Caná?
Judas: Não, a Séforis. Há um delator no grupo de lá e precisamos averiguar quem é. Não podemos permitir nenhuma traição entre os zelotas.
João: Está certo, Judas. Duro com os traidores.
Judas: Escute, Jesus, gostaria de falar mais com você. Acho que você pode colaborar com a nossa luta.
Jesus: E eu também acho que Simão e você também podem dar uma mão para nós. Também temos planos.
Judas: Claro que sim, companheiro, é para isso que estamos aqui, para nos ajudarmos uns aos outros. João, até a vista. Jesus, eu o verei em Cafarnaum.
João: Até mais, Judas, que o lenço dos Macabeus lhe dê sorte!
Simão: Adeus, rapazes, até outra vez!
Jesus: Adeus, adeus!... Venha, João, vamos logo lá para a casa de minha mãe que a esta hora já deve estar mais preocupada que os pedreiros da torre de Babel!

Jesus e eu fomos caminhando até a casa de Maria... Enquanto isso, nenhum nazareno mantinha a língua quieta...

Um velho: Esse sim tem cara de pau, compadre! Veja só, vir aqui e dar uma de profeta! Rá! Profeta esse moreno que eu vi nascer e de quem limpei o nariz mais de 40 vezes!
Uma vizinha: Eu tenho é raiva desses agitadores de meia tigela. Falam de paz, mas o que trazem é a espada! Muito amor e muita história e vejam só o que armaram!
Um vizinho: Que coisa esse filho da Maria, não?! Tão boa gente, tão complacente... e veja no que foi dar!... Bem, já era de se esperar... Más companhias, sabe, a mãe mole demais...
Maria: Ai, filho, por Deus, que vergonha, que vergonha!
Suzana: Diga melhor: que atrevimento! Parece mentira, Jesus!
Maria: Ai, filho e o que vai acontecer agora?
Jesus: Nada, mamãe. Volto para Cafarnaum. Não se angustie por causa de mim.
Susana: Bem que eu avisei, Maria. Diga-me com quem andas e eu te direi quem és. Olhe só esse cabeludo que veio com ele...
João: Olhe, senhora, eu não...
Suzana: Você é um deles, desses agitadores de Cafarnaum. E também o Pedro atira-pedras, o magricela do André e o Tiago cabelo de fogo... Belos amigos você encontrou. E você não viu aqueles dois que apareceram, encarapitados como cavalos... Ah, que juventude mais bagunceira esta!
Jesus: Vamos, Suzana, pare com isso, que você também sempre bagunça quando tem oportunidade. Eu a vi quando tinha a noiva do Trifão agarrada pelos cabelos.
Maria: Jesus, filho, eu lhe suplico, faça isso por mim, não se meta em mais confusão...
Jesus: Mas, mamãe, se eu não fiz mais que explicar o que dizia a Escritura e começaram as pedradas. Que culpa tenho eu? Diga a Deus que não fale tão claro. Me parece que Deus é que tem ganas de se meter em confusão...

No dia seguinte, bem cedo, Jesus e eu fizemos o caminho de volta a Cafarnaum. Voltávamos doloridos e com hematomas pelo corpo. Mas estávamos contentes. Havíamos estreado a voz para proclamar a boa notícia da libertação dos pobres.



A oposição dos patrícios de Jesus que começou não aceitando que “um igual a eles” se apresentasse como profeta para falar-lhes de libertação, degenerou em luta coletiva. É próprio dos vilarejos pequenos estes desabafos de violência em que aparecem à tona ressentimentos e vinganças acumuladas. É preciso também levar em conta que entre os povos orientais são freqüentes estes tumultos, fruto da impulsividade que os caracteriza.
As palavras de Jesus na sinagoga se convertem em sinal de contradição, em escândalo para seus patrícios. O são para os que tinham riquezas, porque são palavras que reclamam justiça, igualdade. Para a maioria, os pobres, o são também, neste primeiro momento, porque resistem em aceitar um pobre como eles como líder. Os longos sofrimentos, muitas vezes, tornam céticos os pobres. E como o primeiro preço a ser pago para alcançar a libertação é o risco de pôr-se a caminho sem saber bem como andar, sempre se encontram resistências. Nesse momento a tarefa do profeta é difícil, pois tem contra, de uma só vez, o opressor e o oprimido que não rompeu ainda sua casca de passividade (Ex 5, 19-22). A fé cristã proclamada e vivida é sempre um sinal de contradição. O evangelho não é um bálsamo eficaz para alcançar uma harmonia universal
pelo caminho do amor. É um desencadeador de conflitos. Jesus falou que vinha trazer
guerra e não paz. E se a palavra evangélica é espada de dois gumes é porque divide, corta, fere, põe às claras a hipocrisia encoberta de falsa religião, a desigualdade entre os homens, a injustiça que mantém essa desigualdade, e também o medo da liberdade que existe no coração do homem oprimido.
No relato se apresenta Judas, de Kariot (ou Iscariotes). Segundo alguns, esse sobrenome faria referência ao lugar de origem de Judas: “Kariot”, pequena aldeia da região de Judá. No entanto, especialistas no tema dos zelotas vêm em “iscariotes” uma deformação de “sicário”. Os sicários eram um grupo fanaticamente nacionalista do partido dos zelotas que usavam a “sica” (punhal) para cometer atentados terroristas contra os romanos. Judas vem acompanhado de Simão “o zelota”, outro dos doze apóstolos. Tudo isso indica que no grupo de Jesus houve homens de diferentes tendências políticas. Os mais extremistas ainda foram convocados por Jesus, que nunca aparece no Evangelho - expressando-o em termos atuais - como um “homem de partido”, mas como o líder de um movimento popular, marginal às instituições oficiais.
O fato de que Judas tenha traído Jesus, acumulou ao longo da história brasas acesas sobre sua cabeça. Ele passou a ser o mais claro exemplo da perversidade, a própria encarnação do mal. A figura histórica daquele homem foi mitificada ao máximo e, sobre ela, gerações de cristãos descarregaram seus sentimentos de culpa, transformando Judas numa espécie de “bode expiatório”. Há povoados e aldeias onde se malha, se queima ou se enforca um Judas de pano todos os anos. É preciso tirar esta crosta que nos impede de ver em Judas mais um amigo de Jesus, seguramente mais politizado que os outros e, talvez por isso mesmo, mais prático, mais eficaz.
No relato, Judas conta aos seus vizinhos de Nazaré uma história com todas as características das parábolas. Explicar uma idéia, dar um ensinamento valendo-se de imagens - pois é isso que é uma parábola - não era exclusivo do modo de falar de Jesus. É um gênero oriental de expressão, muito comum especialmente entre as classes populares. Para assinalar politicamente o personagem, Judas aparece trazendo ao pescoço um lenço amarelo pertencente a um neto dos irmãos Macabeus, heróis da resistência judaica contra a dominação dos gregos no país, uns cento e sessenta anos antes do nascimento de Jesus. Os Macabeus foram os organizadores da luta contra o poderoso império helênico. Na memória do povo era um símbolo de valentia, patriotismo e liberdade.
(Lucas 4, 28-30)

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