quarta-feira, 6 de abril de 2011

Capítulo 4 - A JUSTIÇA DE DEUS

A João, o Batista, vinham ouvir pessoas da terra da Judéia, da cidade de Jerusalém e da
longínqua Galiléia. Quando se arrependiam e confessavam seus pecados, o profeta as batizava nas águas do rio Jordão. Meu irmão Tiago e eu, Pedro e seu irmão André, Felipe, Jesus e Natanael também estávamos ali...

Batista: E é o Senhor quem me diz: levanta tua voz como trombeta e denuncia os pecados de meu povo e as suas rebeldias. Grita nos campos e nas cidades as injustiças que cometem contra os pobres!... Convertam-se ao Senhor! Convertam-se de coração e Ele lhes devolverá a vida!
Felipe: Este profeta fala sempre a mesma coisa. Não sei como não se cansa. Faz duas horas que estamos aqui e dá-lhe que dá-lhe com a mesma cantilena...
Natanael: Shss!! Cale-se já, Felipe e deixe-me ouvir...
Felipe: Ora, Nata, é que já estou ficando aborrecido...
Tiago: Não seja estúpido, Felipe. Ao povo tem de gritar mesmo para que as coisas lhe entrem pela moleira.
Felipe: “Convertam-se, convertam-se... oh, ah, eh...” Mas que diabos é converter-se, não
entendo isso!...
João: Converter-se é mudar. E mudar é derrubar os romanos e tirá-los da nossa terra.
André: Ande, Felipe, pergunte ao profeta o que você tem de fazer para se converter. Ele lhe dirá. João gosta que as pessoas lhe façam perguntas.
Felipe: Você acha, André?
André: Mas é claro, homem. Pergunte alguma coisa.
Felipe: Eh, profeta de Deus! Profeta João!
Natanael: Felipe, pelo amor de sua mãe de Betsaida, cale a boca. Não arme tanto alvoroço...
Felipe: É que eu preciso perguntar uma coisa ao profeta... Ei, profeta João !...
Natanael: Vai meter as mãos pelos pés como sempre...
Batista: Quem me chamou?
Pedro: É este cabeção aqui ó, que quer perguntar uma coisa!... Aqui!
Batista: O que você quer saber, irmão?
Felipe: João, você fala muito de converter-se, de mudar, de preparar o caminho a este que vai chegar... Mas diga-me: como é que eu posso preparar? Nós que somos uns mortos de fome, o que podemos fazer? Que temos de fazer?
Batista: O primeiro de tudo é a justiça! Me ouviu? A justiça!.
Felipe: Explique-se melhor, profeta. Eu sou um homem ignorante e...
Batista: Quantos mantos você tem?
Felipe: Como é?
Batista: Quantos mantos você tem!?
Felipe: Bem, me dá até vergonha de dizer, mas... só tenho um em casa e este outro que estou vestindo...
Batista: Tem dois. Sobra-lhe um. Dê a quem não tem nenhum. Em Israel há muita gente nua, que não tem sequer um trapo para se cobrir!... Quer que eu fale mais claro? ... Você, aí desse lado... não se esconda.... quantos pares de sandálias você tem? Dois? Três? Sobram-lhe as que não estão calçadas. Em Israel há muitos descalços que não têm nenhum par de sandálias. Reparte as suas com eles. Você tem dois pães? Dê um a quem passa fome. Que a ninguém lhe sobre para que a ninguém falte... Isso é o que Deus quer. Isso é converter-se: repartir. Justiça, irmãos, justiça! Eu preparo os caminhos do Senhor. E o Senhor grita pela minha boca: que todos comam, que todos tenham com que se vestir, que todos possam viver!... Ai do homem que vira as costas para seu irmão, porque está dando as costas para o próprio Deus!... Ai daquele que fecha a porta ao peregrino, porque esse caminhante é o Messias que vem bater à sua casa.
Tiago: Muito bem! É isso mesmo que nós zelotas dizemos! Justiça!
Felipe: Bem, Pedro, já pode ir dando esse manto que você tem nas costas... O profeta diz que é preciso repartir o que cada um tem... E há que começar pelos amigos, digo eu! A boa justiça começa com os de casa, não é isso, André?
André: Esse homem é um profeta de verdade. Todos os profetas de antes falavam de justiça. A voz dos profetas é sempre a mesma voz.
Natanael: Pois eu digo que esse negócio de dar a metade do que se tem... Eu, por exemplo, tenho uma oficina e quatro ferramentas, mas isso... isso não é ser rico... eu tenho o justo para...
Tiago: Não se preocupe, Natanael. Os ricos são outros. Olhe só esses que estão chegando aí... Traidores!

Por entre as pessoas abriam caminho até à margem dois homens com turbantes de seda. Um era alto e com o rosto todo marcado de bexigas. Esse conhecíamos menos. De quem sabíamos muitas coisas era do outro. Chamava-se Mateus e cobrava os impostos em nossa cidade, Cafarnaum. Mancava um pouco e tinha uma barba grisalha, muito curta e cheia de falhas. Como sempre, andara bebendo... Todos odiávamos Mateus porque era um colaborador dos romanos.

Tiago: Seus traidores! Fora, fora daqui!
Todos: Fora! Abaixo os traidores! Sumam daqui, seus vermes!
Jesus: Parece que este homem está bêbado.
João: Claro, sem vinho nas tripas não teria se atrevido a vir até aqui. Nós o conhecemos bem, Jesus. Posso garantir que em todo o país não se encontra um tipo mais covarde que esse Mateus.
Felipe: Ouça, Tiago, minhas orelhas já estão zunindo. Pare de gritar, caramba! Pelo que eu sei esse lugar é para os pecadores, não? Mateus pode ser o maior bandido de todos, mas também tem direito de ver o profeta.
Tiago: Esse publicano só tem direito a que o enforquem!

Mateus e seu companheiro conseguiram chegar até à margem. Naquele momento, João estava batizando umas prostitutas muito maquiladas. Mateus esperou um pouco até que saíssem da água...

Mateus: Profeta do Altíssimo! Ouvimos aquele galileu perguntando o que tinha de fazer...!
Todos: Fora! Traidores! Fora!
Batista: Silêncio! Quero escutar o que esse homem está dizendo! E Deus também quer escutálo. Fale!
Mateus: Profeta do Altíssimo! O que nós temos que fazer? Somos judeus mas... cobramos os impostos para os romanos. O que nós temos de fazer?
Batista: Não manchem as mãos cobrando mais do que manda a lei! Os romanos despejaram uma dura carga sobre as costas do nosso povo. Não aumentem vocês essa carga, roubando do povo o pouco que lhe resta! Os romanos pisotearam nossas terras. Não tornem vocês mais pesado o jugo nem mais opressora a mão dos estrangeiros.
Mateus: E haverá salvação para nós?
Batista : Há salvação para quem busca salvação! Aquele que vem depois de mim, separará o trigo da palha. O trigo, ele guardará em seu celeiro e a palha, a queimará num fogo que não se apaga. No entanto, é tempo de mudar!... Convertam-se, deixem-se lavar pela água que purifica!

Os dois publicanos se aproximaram da água. Mateus ia cambaleando. Era por medo e também pelo que havia bebido... Então o profeta João os agarrou pelos cabelos e os afundou nas águas sujas e quentes do Jordão, nas quais flutuavam revoltos os pecados das prostitutas, dos pobres e dos usurários, os grandes pecados e os pequenos pecados, todas as culpas do nosso povo...

Um soldado: Mestre! João!... Queremos falar também!
Batista: O que querem vocês?
Soldado: Você falou antes dos romanos. Somos soldados romanos. Viemos vê-lo porque sua palavra chegou também aos nossos ouvidos. Levamos o uniforme dos que se tornaram os donos desta terra, mas também queremos batizar-nos. O que temos de fazer para nos salvarmos no dia mau?
Batista: O único dono desta terra e de todos os povos da terra é Deus! Vocês agora são fortes, e golpeiam os fracos. Amanhã virão outros mais fortes e golpearão vocês. Porque os reis e os governos deste mundo são como a erva que hoje está verde e amanhã seca e se queima. O único rei é Deus! A única lei é a de Deus! E a lei de Deus é a justiça!
Pedro: Tome cuidado, profeta! Se você continuar falando assim, alguém vai dedurá-lo a Pilatos!
Batista: O dono de todas as vidas é Deus! Não é Pilatos, nem Herodes, nem o exército romano! Vocês, soldados, não ameacem as pessoas, nem acusem ninguém pelo que não fez. Não digam palavra falsa no tribunal. Não usem da mentira nem abusem da espada. Conformem-se com a paga que lhes dão e não roubem do pobre seu teto e seu pão. Isso é o que vocês têm de fazer, soldados romanos!
Felipe: Estou gostando deste profeta. Grita contra a gente, mas também grita contra os romanos. Esse João é um valente...
Pedro: Bem, vamos embora... Por hoje já ouvimos gritos demais desse João batizador...
Jesus: Espere, Pedro... Gostaria de perguntar algo ao profeta...
Pedro: Quem? Você? ... Ora, Jesus, já sabe o que ele vai responder: justiça, justiça, justiça. Eu vou embora...
Jesus: Espere um momento, Pedro... João, queria perguntar-lhe uma coisa!
Batista: Fale, galileu, estou ouvindo!
Jesus: Profeta João, eu... eu não sei se estou me metendo no que não devo, mas...
Batista: Fale mais alto, pois não consigo ouvir nada!
Jesus: Eu dizia que... Bem, que você diz: dêem esmola a todos os famintos. Você diz: não roubem ao cobrar impostos. Você diz: não abusem da espada. Tudo isso está muito bem, mas...
esses são os galhos, não? Mas... e o tronco? Como fica?
Batista: O que você quer dizer com isso?
Jesus: É que eu acredito que se os galhos dão frutos ruins, mesmo que alguém os pode, eles continuarão saindo ruins. É que o tronco está mal. São as raízes que estão podres... Profeta João, o que temos de fazer para arrancar essas raízes, para que não haja famintos que precisem de esmola, para que não haja soldados que utilizem espadas, para que não haja governantes que nos esmaguem com impostos?
Batista: Quem é você?
Jesus: Eu me chamo Jesus. Vim ontem com dois amigos do norte. Escutei você falar e por isso pergunto.
Batista: Eu não posso responder o que você me pergunta. Outro lhe responderá. Eu batizo com água, mas depois de mim virá alguém que batizará com fogo. Com fogo e com o Espírito Santo. A mim me cabe podar os galhos. A ele corresponde arrancar a árvore pela raiz, queimar as raízes más e limpar todo o pomar.
Jesus: E quem é este que há de vir? De quem você está falando?

Mas João não respondeu a mais nada. O vento começava a soprar na beira do Jordão. Os caniços se inclinaram e as águas formaram redemoinhos grandes e pequenos. João, do alto de uma rocha ficou olhando o infinito. Seus olhos queimados pelo sol e ardentes de esperança buscavam no horizonte Aquele que devia vir.



A justiça é um tema maior ao longo de todas as Escrituras. Que Deus seja justo, como repetem uma ou outra vez os profetas, quer dizer que é libertador, que toma partido dos pobres e exige que se respeite o direito dos oprimidos; que é reto, que não se deixa subornar pela palavra enganosa ou pelo culto vazio. O Reino de Deus que há de vir e se anuncia ao povo, é um Reino de Justiça. Um Reino de Igualdade no qual a esperança dos pobres será alcançada. Conhecer a Deus, que em linguagem bíblica é o mesmo que amá-lo, é praticar a justiça (Is 22,13-16). A religião verdadeira é reconhecer o direito dos pobres e estabelecer relações de justiça entre os homens (Is 1,10-18; Jer 7,1-11).
Ao anunciar a Justiça, João Batista exigia dos que iam ouvi-lo, a “conversão”. O sentido
bíblico desta palavra não é “confessar-se, arrepender-se, ter remorsos de consciência”, mas mudar o modo de pensar e agir, voltar-se ao Deus justo e, como ele, praticar a justiça. Não se pode entender a conversão a Deus sem uma conversão aos homens, aos pobres. Converter-se é compartilhar. E aquele que não compartilha, coloca-se fora da justiça de Deus.
Diante dos soldados romanos, João concretiza a conversão em não abusar do poder. Os
soldados romanos, embora estrangeiros, eram recrutados entre as classes populares. Como servidores do imperialismo, contagiados pela corrupção do sistema, se sentiam valentes ao verem-se armados e atropelavam o povo. Os publicanos, como Mateus, eram os coletores de impostos, funcionários do império ou das autoridades locais. Deste posto, também de poder, extorquiam os pobres. João exige deles que renunciem à fraude na coleta do dinheiro. A conversão sempre passa pelo bolso. Supõe sempre uma renúncia ao poder. Não bastam as boas intenções.
A pergunta que Jesus faz a João o Batista, coloca o tema do pecado estrutural e do pecado pessoal: pode-se podar os galhos velhos de uma árvore, mas se as raízes estão podres... O pecado, a injustiça, não são somente um mal individual, que tenha remédio também por uma conversão entendida individualmente. Há situações de pecado: um regime econômico baseado no lucro, na ganância de uns poucos, na competição que produz pobres cada vez mais pobres e ricos cada vez mais ricos, é uma estrutura de pecado. Um regime político que não permite a participação do povo nas decisões, que utiliza a tortura, o crime, a fraude, a corrupção para manter-se, é também um pecado institucional. Para transformar uma estrutura de pecado, é muito pouca coisa as mudanças individuais. Necessita-se de uma libertação integral. E o Evangelho não é só um apelo à conversão pessoal, mas um projeto de transformação radical da sociedade.
(Lucas 3,7-18)

Nenhum comentário: