quarta-feira, 13 de abril de 2011

Capítulo 15 - O VENDEDOR DE BUGIGANGAS

No terceiro dia da semana, a praça de Cafarnaum se enchia de cores e gritos. Era dia de mercado. As pessoas dos povoados vizinhos vinham comprar e vender frutas, tecidos e tortas de mel...

Felipe: Pentes e ..., anéis, gargantilhas, colares e sapatilhas!!!... Anéis de noiva, brincos de casada, pulseiras de viúva!... Amuletos contra mal-olhado e contra todos os incômodos!...Sapatos, chinelos, comprem agora, porque já estou indo embora!...

Nosso amigo Felipe vinha sempre ao mercado de Cafarnaum carregado de coisas. Levava na cabeça um turbante velho e desbotado de listas amarelas e empurrava um carroção destrambelhado, cheio de cacarecos... Com uma corneta desafinada, Felipe fazia mais barulho que ninguém na praça. As mulheres de Cafarnaum eram boas clientes suas. Embora enganasse sempre nos preços, maquinava um jeito de trazer todas as semanas mil bugigangas novas. Ao redor dele sempre havia uma nuvem de mulheres, pechinchando e remexendo tudo...

Felipe: Olhe-se, olhe-se nesse espelho, minha senhora!... Você está mais bonita que um botão de tomate!... Cinco moedas, cinco moedas nada mais!... Espelhinhos e espelho, troco dois novos por um velho...! Maria, Maria!, eu lhe trouxe o ruge, garota... aqui está!.... Está bem, está bem, você me paga na semana que vem!... Olhe, olhe, devolva isso aqui, não fique mexendo tanto, essa é uma mercadoria delicada...! Ervas, as melhores ervas! Faça um caldo quente com essas ervas do Oriente!
Salomé: Felipe! Ô, Felipe!
Felipe: O que foi, dona Salomé? Quer algum pente, um perfume? Venha, ponha o nariz aqui... cheire este novo que me trouxeram da Arábia...
Salomé: Nada de perfumes, já estou velha para isso. Olhe, quando puder, dê uma passadinha lá em casa para tomar aquela sopa.
Felipe: Caramba, nem me fale nisso, dona Salomé!... A verdade é que estou com uma fome!...
Salomé: Claro, pobre diabo, do jeito que você grita acaba ficando mais gasto que moeda na mão de um avarento!...
Felipe: Olhe, dona Salomé, em troca da sopa, leve essas agulhas!
Salomé: Mas, Felipe, homem, o convite que eu faço é com muito gosto. Não tem de me dar nada em troca. Quando precisar de alguma coisa eu lhe direi... Ah, é? Até essa Maria, a madaleninha veio comprar umas pinturas, é? Essa não!...
Felipe: Bem, dona Salomé, para mim todos os clientes são iguais e eu tenho de servir a todo mundo...
Salomé: Desde que chegou aqui tem alvoroçado todos os homens do bairro... Também, com todo esse gingado! com esses perfumes! Que os maus ventos a levem!...
Felipe: Ai, que delícia que está essa sopa, dona Salomé! Escute, e onde estão João e Tiago?
Salomé: Pois onde você acha que estão? Suando e ganhando o pão... Para os pescadores não há dia de mercado. Todos os dias são iguais: os barcos, as velas, as redes... e de novo começa a mesma ladainha...
Felipe: Então, nenhuma novidade, dona Salomé?
Salomé: Bem, tem uma novidade sim. Está por aqui um rapaz de Nazaré, que parece que meus filhos conheceram lá pelo Jordão... Você não esteve também com João, o profeta?... É bem capaz que o conheça...
Felipe: De Nazaré? Não será Jesus, um moreno contador de histórias?
Salomé: Este mesmo. Sabe contar umas histórias muito divertidas. Nessas noites tem deixado a todos meio abobados até altas horas... Parece um bom sujeito. Está vivendo aqui conosco.
Felipe: E por onde ele andará agora?
Salomé: Deve estar na casa de uma comadre da Rufina, arrumando o telhado.
Felipe: Puxa vida, gostaria de cumprimentá-lo. Vou pra lá agora mesmo!
Salomé: Mas acabe primeiro a sopa, homem. Tenho também umas azeitonas e um pouco de pão, tome.
Felipe: Está certo, dona Salomé. O estômago primeiro, os amigos depois... Além disso, preciso mostrar-lhe uns colares de pedras vermelhas que a senhora vai adorar... e estão saindo muito baratos, vai ver!
Felipe: Ei, Jesus!... Jesus!
Jesus: Caramba, se não é o Felipe!
Felipe: Jesus, moreno, que alegria te ver!
Jesus: Eu também tinha muita vontade de ver sua cara, cabeção... Disseram-me que você estaria vendendo hoje por Cafarnaum.
Felipe: Hoje é dia de mercado. Vim vender, como sempre...
Jesus: E onde você deixou o carroção?
Felipe: Lá na casa da Salomé. Foi ela quem me disse que você andava por aqui. Mas eu ainda não vi os moleques do Zebedeu, nem André, nem Pedro.... Mas tudo bem.... E você, o que está fazendo por aqui?...
Jesus: Você vai ver. Agora estou colocando o teto da casa para uma comadre da mulher de Pedro e assim ganho um par de denários. Olhe como estavam podres essas taboas... Se descuidam mais um pouco elas lhes cairiam em cima...
Felipe: Salomé me disse que você veio de vez pra cá... O que houve? Aborrecido com Nazaré? Não, não precisa falar mais nada. Eu entendo, Jesus. Aquilo era tranqüilo demais, não é? Eu nunca vou lá. Ninguém compra nada.
Jesus: Há pouco dinheiro, você sabe.
Felipe: E então você se mudou pras bandas de Cafarnaum? Parabéns, Jesus! Fico contente! Assim nos veremos mais vezes. Eu venho aqui todas as semanas...
Jesus: Bem, Felipe, a verdade é que não vim pra cá por estar aborrecido com Nazaré. Eu gosto daquilo. Mas também gosto disso, no entanto... vim porque...
Felipe: Porque se apaixonou por alguma garota de Cafarnaum! Não, não precisa dizer mais nada! Já entendi tudo, Jesus. O tempo passa, a gente vai ficando velho e isso de ter uma casinha, uma mulher, os filhos... Fico contente, homem. Contente de verdade!
Jesus: Não é nada disso, Felipe. Olhe, você quando vem vender, já chega embalado e não pára de falar... Deixe-me dizer.
Felipe: Muito bem, pois então me diga.
Jesus: Olhe, ontem estivemos conversando, os filhos de Zebedeu, André, Pedro e eu. Queremos fazer alguma coisa. Calaram a voz do profeta João, mas nós ainda temos língua. Podemos continuar falando às pessoas como ele fazia, podemos continuar anunciando o Reino de Deus... Mas isso tem de ser feito com todos juntos.
Felipe: Ei, o que você está dizendo?!... Isso quem sabia fazer era João. Com aquela cabeleira, aquela voz que estrondava... Mas nós... vocês estão ficando loucos!
Jesus: Não, Felipe, não estamos loucos. Temos de fazer alguma coisa. E não vamos esperar que os outros façam. Vamos começar a fazer nós mesmos. Dentro de pouco tempo seremos muitos. Deus está do nosso lado.
Felipe: Bem, moreno, pois me alegro por isso também. Se você veio pra revolucionar, fico contente. E lhe desejo muita sorte.
Jesus: Felipe, acontece que estamos contando com você.
Felipe: Comigo?... Comigo?
Jesus: Sim, homem, com você. Por que está estranhando tanto?
Felipe: Porque eu não sirvo pra isso, Jesus. Eu só sei apregoar pentes, espelhos... eu só entendo do meu negócio. É claro que eu quero que haja justiça neste país. E primeiro de tudo comigo que sou um morto de fome... Mas se nem eu mesmo me agüento, como vou empurrar os outros...?
Jesus: Faremos alguma coisa, Felipe, você vai ver.
Felipe: Eu sou um burro de duas patas, Jesus, um ignorante. João o Batizador havia estudado as Escrituras Santas e sabia o que tinha de dizer. Mas como nós vamos fazer o mesmo que ele? Bem, isso fica para os outros. No que eles disserem eu não me meto. Mas eu... eu não sei falar, nem ler. Ouvi as Escrituras quando era pequenino na Sinagoga, mas eu me aborrecia tanto que não aprendi nada. Eu não sirvo para essas pregações de justiça... É melhor você me deixar com a minha corneta, com meu carroção...
Jesus: Mas, Felipe, todos nós também somos uns ignorantes, como você... Quem é Pedro, heim? Quem é Tiago?... E quem sou eu? Mas olhe, eu me lembro de um salmo que diz: “com os mais pequeninos, como os meninos de peito, Deus faz coisas grandes”.
Felipe: Pois você está melhor que eu, porque ao menos se lembra de alguma coisa da
Escritura... Bem, e o que você quer me dizer com essas palavras?
Jesus: Que diante de Deus as pessoas que mais valem são esses: os que são pouca coisa. Como nós, como você. É por isso mesmo que você serve para nosso grupo.
Felipe: Bom, isso até que soa bem... Mas para mim não dá, deixe-me com o meu negócio! Eu não quero me meter em nenhuma confusão! E lhe digo mais uma vez que não sirvo para isso.
Jesus: Felipe, e Moisés? Não foi Moisés que formou o nosso povo com um bando de escravos mulambentos, que não tinham nem um pedaço de terra seu?
Felipe: É, nisto você está certo. Mas eu acho que eles tinham alguma coisa...
Jesus: Tinham esperança e ganas de lutar. Nada mais, Felipe. O mesmo que nós temos agora: esperança e ganas de lutar!
Felipe: Bem, aí também tenho de lhe dar razão... Mas você ainda não me convenceu! Eu tenho a cabeça muito grande e muito dura!
Jesus: Felipe, quem foi o rei Davi? Um pastor de ovelhas, um pobretão! E quem foi Jeremias, o profeta? Um menino que não sabia nem falar. E o profeta Amós? Um camponês que estava arando a terra quando Deus o chamou... Deus escolhe os fracos, os pobres, para confundir a cabeça dos sábios... Escute, cabeçudo, queremos que você esteja no nosso grupo. Sim, nós somos uns ignorantes e uns esfarrapados, mas todos juntos podemos fazer alguma coisa!
Felipe: Mas, Jesus, se eu me meto nisso... como fica o meu negócio? Como é que eu vou para o Jordão batizar as pessoas no rio? O que é que eu faço com o meu carroção, heim?...
Jesus: Mas nós não iremos tão longe, homem. As pessoas já foram ao Jordão e se batizaram para preparar o caminho do Libertador de Israel. Agora temos de fazer outra coisa, não sei...
Felipe: A única coisa que sei fazer é ir de povoado em povoado apregoando bugigangas... Não, disso você não me tira...
Jesus: Pois podemos ir de povoado em povoado apregoando o Reino que Deus traz entre as mãos... É, até que não é má a sua idéia.
Felipe: Homem, se é assim, então eu me meto nesse grupo... Na melhor das hipóteses eu até melhoro meu negócio... A gente se põe a anunciar os planos de Deus e... e eu aproveito e vendo uns colares!... Agora você me convenceu, moreno!
Jesus: Pois olhe, vou deixar esse telhado de lado um pouco e vamos procurar os outros para falar com eles...
Felipe: Você sabe onde estarão agora?
Jesus: Devem estar lá pelo cais. Vem, Felipe, segue-me...

Pouco depois, no embarcadouro...

Pedro: Então, Felipe, vai se meter nisso?
Felipe: Esse Jesus me encheu a cabeça com palavras bonitas e acabei fisgado pelo anzol!
João: Pois olhe que para encher uma cabeça tão grande, ele deve ter falado muito!...
Tiago: Escute bem, Felipe, nós estamos nos metendo em uma confusão muito séria. Vamos começar a trabalhar por nossa própria conta, sem contar com os zelotas, compreende? Aqui tem que ser valente, está ouvindo?
Felipe: Bem Tiago, eu farei o que puder. Mas não venha você agora me meter medo. Já disse a Jesus que eu gosto desse negócio de ir de povoado em povoado. Eu levo minha corneta e meu carroção e aproveito para...
Tiago: Mas o que tem a ver sua corneta com o que estamos planejando?
João: Deixe pra lá, Tiago, Felipe é meio tonto!
Felipe: Ah, é mesmo? Então eu sou tonto, né? Vamos ver se você é homem pra repetir isso, anda...
Pedro: Já chega, Felipe. Quer entrar para o grupo ou não?
Felipe: Já estou dentro, Pedro. E daqui não saio. Se me deixarem de fora eu estripo todo mundo. Vamos lá! Mão com mão!

Felipe, de Betsáida da Galiléia, se uniu ao nosso grupo. Não sabíamos então muito bem por onde começar nem o que fazer. Éramos só seis. E só tínhamos esperança e ganas de lutar.


Existem poucos dados no Evangelho sobre o apóstolo Felipe. Era de Betsáida, uma aldeia situada ao norte do lago, na margem oriental do Jordão, que não pertencia politicamente à Galiléia.“Betsáida” significa “Casa do Pescado”. Alí haviam nascido também os irmãos Pedro e André. No relato, Felipe é um mascate, vendedor de quinquilharias. Este era um ofício comum na época e estava classificado como “desprezível” junto a muitos outros ofícios populares que rebaixavam socialmente aqueles que os exerciam. Uma das razões para considerar o mascate como despresível era que, por seu trabalho, tinha de relacionar-se com mulheres. Por isso, sem mais, suspeito de imoralidade. Os que exerciam este ou outros ofícios classificados nas listas públicas como desprezíveis não podiam ocupar nenhum cargo de responsabilidade comunitária.
Jesus, como demonstra mais de uma vez o Evangelho, não se deteve diante das leis, das normas, das tradições, dos arraigados costumes do povo. Não discriminou ninguém. Como Deus que não se fixa nas aparências (I Sam 16,7). Em Jesus, Deus se revela mais uma vez, definitivamente, como o Deus que escolhe os humildes para confundir os orgulhosos, os que nada são para subverter os valores dos que se crêem alguma coisa ( I Cor 1,26-29). O Escolhido de Deus, seu filho, Jesus de Nazaré, é um camponês pobre e sem cultura. E aqueles que Jesus escolhe são os pobres, os de baixo, os “anawim” de Israel. A Igreja de Jesus está chamada a ser a comunidade dos pobres, um espaço de liberdade e de fraternidade, onde os homens não adorem ao deus dinheiro, nem valham mais nem menos por sua cultura, sua posição social ou seus títulos.
Como Jesus lembra a Felipe, Israel se formou como povo a partir de um pequeno grupo de escravos famintos, desgastados por duros trabalhos, que puseram em Deus e em Moisés sua esperança. Quando os pobres despertam e se organizam, quando se põem em marcha e, sem se inferiorizar por suas limitações, se apóiam em Deus e na força de sua união, Deus se faz presente no meio deles. Em toda história de libertação do povo, Deus é aliado dos humildes e põe a cara por eles. Porque é através da ação, do compromisso e da esperança dos pobres que Deus transforma a história.
(João1,43-44)

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