quarta-feira, 20 de abril de 2011

Capítulo 24 - COMO UMA SEMENTE DE MOSTARDA

No dia seguinte ao da briga em Nazaré, bem cedo, Jesus e eu viajamos para o norte, rumo a Cafarnaum. O sol começou logo a esquentar a planície galiléia, dourada pelos trigais já maduros que prometiam uma esplêndida colheita... O campo estava alegre... E nós também, apesar dos sopapos recebidos no dia anterior, íamos contentes...

João: Eu fico lembrando agora e me dá vontade de dar risada... Quando aquele velho Ananias levantou o bastão... Estava furioso... Ficou vermelho como... como...
Jesus: Como seu nariz, João. Ele está parecendo um pimentão!
João: A verdade, Jesus, e não é porque sejam seus vizinhos e parentes, mas essa gente de Nazaré é demais... Que se danem...! São uns mortos de fome iguais a nós e quando alguém lhes diz que está chegando o Ano da Graça e que haverá libertação para todos, em vez de se alegrarem, distribuem pancadas... nem o diabo os entende!
Jesus: As leis de Moisés são muito antigas, João, mas como nunca se cumpriram, parecem novas. E o vinho, quando é muito novo, arrebenta os odres. É isso que acontece. Claro, sempre nos disseram que uns têm mais e outros têm menos porque a vida é assim, e porque assim Deus quer, e paciência e mais paciência... De repente, quando se grita que não, que se as leis de Deus fossem cumpridas o mundo bastaria para todos, são os próprios pobres que se assustam e tapam os ouvidos... Bem, dizem que também nossos avós se queixavam a Moisés e suspiravam pelos alhos e cebolas do Egito!
João: Nem me fale em comida agora, moreno, meu estômago já está pedindo ajuda... Vamos apressar o passo para ver se chegamos a tempo para a sopa.

Embora estivéssemos cansados e doloridos, o caminho se fez curto. Tínhamos muita vontade de contar aos nossos companheiros tudo o que havia acontecido em Nazaré... Depois de umas tantas horas atravessando o vale, quando já era meio dia, divisamos as palmeiras de Cafarnaum...

Zebedeu: Pois olhem só os vagabundos que vêm chegando por aí!... Já não era sem tempo, rapazes!
João: Já estamos de volta, velho!
Jesus: Como vai essa vida, Zebedeu?
Zebedeu: Muito bem, Jesus, melhor que a de vocês, seguramente! Puxa vida, ficamos aqui pensando que os soldados haviam agarrado vocês!
João: Os soldados, não. Os vizinhos desse moreno é que são mais danados que gata parida!
Zebedeu: Salomé, mulher, largue o fogão e venha cá, corra, que seu filho já chegou com o nazareno!... E então, como andam as coisas lá pela sua terra, Jesus?
Jesus: Assim, assim, Zebedeu!... Aconteceu-nos o mesmo que ao rei Ariovaldo, que foi buscar lã e voltou tosquiado!
Salomé: Ai, João, meu filho... E você Jesus... Mas o que aconteceu com vocês? Parece que estão vindo de uma guerra!...
João: A guerra dos sopapos, velha. Lá em Nazaré nos deram uma surra das boas...!
Salomé: Ah, é? E se pode saber por que motivo?
João: Por nada, mamãe... Na realidade, nós ...
Salomé: Por nada, é? Hummm... Alguma coisa vocês aprontaram!...
Jesus: Nos convidaram a falar, dona Salomé... e falamos.
Zebedeu: E que diabos foi que disseram?
Jesus: Nada. Dissemos que se há pobres é porque há ricos. E que para os de baixo poderem subir, é preciso baixar os de cima.
Salomé: E isso não é nada? Mas, onde já se viu uma língua mais comprida que a sua,
nazareno?...
Jesus: Mas isso já o anunciaram Isaias e Jeremias, e Amós e Oséias, e todos os profetas...
Salomé: Eu não lhe disse, Zebedeu, que qualquer dia vão pendurar esse aí com um gancho, feito um pernil de vaca... E olhe também esse seu filho... Olhe só o nariz dele, João, menino...
João: Não se preocupe, mamãe, já não está doendo...
Jesus: Foi uma sandália que atiraram em nós, dona Salomé... Eu me agachei a tempo, mas esse bobão quase que a engoliu!
Salomé: Bendito seja Deus, vou agora mesmo buscar um pedaço de carne crua, para ver se abaixa esse inchaço!
Zebedeu: Que não seja aquele bife que eu vou comer daqui a pouco, mulher!
Salomé: Vamos, vamos, pra dentro, vão lavar os pés e cuidar desses machucados...
Zebedeu: E depois nos contar essa desordem na sua aldeia!... Caramba, se soubesse teria ido com vocês!

Naquela noite nos reunimos para conversar sobre as mil coisas de sempre... Mas não estávamos sós os do grupo. Correu pelo bairro que Jesus havia voltado e como ele já era muito conhecido, vieram para casa alguns pescadores e outros vizinhos do mercado...

Tiago: E então, Jesus? Quer dizer que agora vai ficar de vez em Cafarnaum?
Jesus: Bem, se vocês não me mandarem embora, vou ficando por aqui!
Zebedeu: Eu acho que esse moreno já pegou o gostinho pela cidade...
Jesus: Não é isso, Zebedeu. Lá em Nazaré há pouco trabalho agora e...
Rufa: Pouco trabalho e muitos pescoções! Pobres rapazes, desceram o cacete em vocês, não foi?
Salomé: Não tenha pena, velha Rufa, sarna com gosto não coça. Quem os mandou se meter nessa confusão, heim...? Pois agora que se agüentem...!
Pedro: Mas, Salomé, seu filho já não explicou que ele e Jesus não fizeram nada?...
Salomé: Ah, cale essa boca você também, Pedro, que nenhum de vocês têm cara de inocente!... Digam uma coisa, vizinhos, passa pela cabeça de alguém, em uma sinagoga, diante de tanta gente, dizer assim curto e pelado, que o mundo está do avesso e que vamos endireitá-lo?
Jesus: Então, como dizer isso, Salomé?
Salomé: Não há que dizer nada. Isso não se pode dizer, Jesus, porque nesse país se põe focinheira em quem abre a boca!
João: Ah, é? Então, segundo você, vamos continuar deixando que uns poucos façam o que bem entendem, e nós, como uma vassoura, metidos atrás da porta?
Salomé: E o que você quer fazer, João? Para que o mundo seja mundo, tem que haver ricos e pobres. Até o rabino sempre diz isso na sinagoga!
Pedro: Não, dona Salomé, não tem que haver, não. Essa é a história que nos fizeram engolir para nos manter adormecidos. É sim, e não precisa fazer essa cara de espanto. Se não, vamos ver: O que diziam as leis de Moisés. A cada cinqüenta anos, um ano de trégua. Rasgar os títulos de propriedade, esquecer as dívidas, soltar os escravos... Borracha e conta nova. Tudo como no começo. Tudo de todos e de ninguém. Isso era o Ano da Graça que Moisés queria, está ouvindo, o Ano-da-Gra-ça...!
Salomé: Pois que graça me dá esse ano...! Olhe, atira-pedras, não se iluda, desde que a Eva deu a mordida, as coisas são como são e assim continuarão sendo. Isso é a única coisa que eu sei.
Tiago: E eu o que sei, é que é muito cômodo dizer isso. Claro, é sempre mais fácil queixar-se que está escuro do que acender uma lamparina. É isso que acontece.
Salomé: Não, o que acontece não é isso. O que acontece é que, ultimamente, vocês meteram um formigueiro no corpo e eu não estou gostando nada disso. Essa febre aumentou desde que o nazareno chegou aqui... Sim, sim, não faça essa cara, Jesus, que você sabe de sobra que isso é verdade... Olhem rapazes, escutem o que eu digo, espantem essas idéias loucas da cabeça, porque se dessa vez lhes quebraram o focinho, da próxima esmigalham todos os ossos!
Jesus: É o que eu dizia antes, João, este vinho é um vinho muito novo...
Salomé: De que vinho você está falando agora, seu condenado?
Jesus: Do Reino de Deus, Salomé, do Reino de Deus que chegou à terra e que arrebenta os odres velhos!

A lua já tinha atravessado a primeira guarda da noite. Lá fora começava a soprar o vento quente do sul... Os olhos de todos brilhavam de curiosidade, iluminados pela luz tremeluzente das lamparinas penduradas na parede... Jesus, sentado no chão, no meio de todos, com as pernas cruzadas, suava e sorria...

Jesus: Amigos, apesar das pancadas, João e eu viemos muito contentes de Nazaré. Nós dois temos dentro uma alegria muito grande. E não queremos escondê-la nem guardá-la só para nós. É a boa notícia que há tantos anos escreveu o profeta Isaias e que lemos lá na minha aldeia e que se cumpre agora. O Reino de Deus chegou! Sim, vizinhos, o tempo se cumpriu. Quando se cumpre o tempo de uma ovelha ter sua cria, os cordeiros nascem. É sua hora, não podem esperar. Esta é a hora de Deus. Deus não espera mais. Ainda que agora sejamos pequenos, Deus nos irá abrindo o caminho e iremos para frente se empurrarmos todos juntos.
Pedro: Bem falado! Eu apoio Jesus!
Tiago: Assim é que se fala, moreno!
Salomé: Um momento, um momento, seus escandalosos!... Essa flauta soa muito bonito. Tudo isso está muito certo. E eu sou a primeira a emprestar meu ombro se fizer falta, pois se é preciso lutar eu já estou treinada com todas as pancadas que tive de dar nesse velhaco do meu marido...
Zebedeu: Olhe, mulher, veja lá o que você está dizendo...
Salomé: Não, velho, acontece que é preciso pôr os pés no chão. Quem vai endireitar esse mundo?... Vocês?... Com um buraco na sandália e dois remendos no traseiro?... Vamos, homens, não subam tão alto que vocês vão ver o que acontece!...
Pedro: Bem, dona Salomé, tem que começar por alguma coisa, não?
Salomé: Pois comecem por ficar quietos, caramba, e não se metam onde não são chamados!
Zebedeu: Não, velha, assim também não. Os rapazes têm sua razão. Nós passamos o dia todo e a metade da noite dizendo que as coisas vão de mal a pior, mas não mexemos nem o dedo mindinho para melhorá-las. E aí, como fica?
Salomé: Mas, homem de Deus, abre os olhos, senão você vai acabar também caindo no buraco. Diga-me uma coisa: quando é que já se viu um filhote de pombo desafiando uma águia, heim?... Os ricos sempre levam vantagem. Metam isso na cabeça, moleques.
Felipe: Eu, pelo menos, já meti na minha.

Felipe, o vendedor, que não havia aberto a boca o tempo todo, coçou sua enorme cabeça e nos olhou a todos com cara de mau agouro...

Felipe: Não é que eu queira pular do barco que está afundando, mas, para ser sincero... aqui dona Salomé tem mais razão que um juiz. Que diabos podemos nós fazer se somos os últimos da fila, heim?... Minha opinião é que é melhor deixar esse negócio de lado e que cada rato volte para o seu buraco. É assim que eu acho... e se não tem mais nada para conversar...
Jesus: Espere, Felipe, não vai embora ainda... Venha aqui, cabeção...
Felipe: O que é que você quer agora, Jesus?
Jesus: Que me diga só uma coisa pequena.
Felipe: Não, não me venha com suas histórias, moreno, eu já conheço isso muito bem...
Jesus: Não é nada disso, Felipe, me diga uma coisa que seja bem pequena...
Felipe: Bom, vamos lá ... uma coisa pequena? Hammm.... um pente.
Jesus: Não, mais pequena...
Felipe: Menor que um pente?... Pois... sei lá, ... um anel.
Jesus: Menor ainda...
Felipe: Bem ... Então ... um alfinete! De todas as coisas que eu carrego no meu carroção, é a menor de todas.
Jesus: No entanto, é ainda muito grande, Felipe. Pense em algo que seja do tamanho da cabeça de um alfinete... Qual a coisa mais pequena que um camponês pode ter em sua mão?
Felipe: O mais pequeno...
Rufa: Uma semente de mostarda!
Jesus: Isso mesmo, avó Rufa, você acertou. Uma semente de mostarda.
Rufa: Mas essa adivinhação era muito fácil, Jesus. A mostarda é a coisa mais mixuruca que existe no mundo... Uma sementica assim ó, de nada... quase nem se vê...
Jesus: Mas quando essa semente cai na terra e pega, torna-se uma árvore grande, da altura de dois homens... Uma árvore tão grande que os pássaros vêm até ela buscando sombra e alimento...
Salomé: Ah, já vi onde você quer chegar, moreno... Um grupo muito pequenino, mas que pode fazer coisas muito grandes...
Jesus: É isso mesmo, Salomé. O Reino de Deus é como uma semente de mostarda.
Pedro: Bem falado! E aqui estamos nós, os semeadores, dispostos ao que der e vier! E os covardes, os que quiserem seguir o Felipe...! Que fiquem um pouco mais, caramba, nós ainda somos muito poucos!

E assim ficamos falando e discutindo até muito tarde. Lá fora, o vento da noite revolvia as águas do lago e fazia balançar as folhas rugosas dos pés de mostarda semeados em suas margens...



Depois do fracasso de Nazaré, Jesus começa sua atividade em Cafarnaum, na pequena casa do velho Zebedeu, rodeado do grupo dos primeiros discípulos e dos vizinhos do bairro. Conta-lhes a parábola do grão de mostarda. É uma história típica dos inícios do movimento de Jesus na Galiléia. Uma parábola clássica do contraste: No começo é pequeno, insignificante; ao final, o formoso arbusto, será o resultado surpreendente do que Deus traz entre as mãos.
A mostarda é uma planta que cresce de forma silvestre em toda a Palestina. Nas margens do lago, chegava a alcançar até três metros. A imagem de uma árvore que serve de abrigo aos pássaros e dá sombra aos que se aproximam é um símbolo da bondade e da generosidade de Deus (Ez 17, 22-24). Nos velhos ditados dos rabinos judeus, a semente de mostarda era considerada a menor das sementes conhecidas. E ainda que o arbusto da mostarda não chegue a ser uma árvore, Jesus o chama assim, exagerando, para ressaltar como os planos de Deus nos superam, nos surpreendem, são mais do que imaginamos. Quando nos lançamos em um projeto arriscado e difícil, e colocamos de nossa parte tudo o que podemos, Deus fecunda, e do menor tira o maior. O Reino de Deus nasce entre os pequenos, entre os pobres. Com eles, Deus forma sua comunidade. E é essa comunidade a chamada a protagonizar os fatos realmente importantes da história.
O Reino de Deus é um vinho novo. Essa novidade é apresentada por Jesus nesses começos de sua atividade como o cumprimento das leis sociais do tempo de Moisés. Aquelas leis - o Ano da Graça entre elas - apontavam para a igualdade, para a superação das classes sociais, para evitar que alguns acumulassem em excesso à custa de outros que morriam de fome. Leis velhas que se tornavam realmente novas porque não haviam sido cumpridas. E nos tempos de Jesus as diferenças entre os israelitas haviam se aprofundado cada vez mais.
O fato de existirem classes sociais, o fato de que uns sejam ricos e outros pobres, é para muitos “vontade de Deus”, um “destino”, um fato natural que não se pode mudar, uma realidade irremediável, impossível de ser alterada. Essa forma de pensar, que é a de Salomé, é muito freqüente. Entre os ricos, é porque lhes convêm que seja assim. Entre os pobres, porque são os ricos e seus servidores (a escola, a falsa religião) os que lhes pregaram esta resignação, os que os fizeram acreditar que Deus é quem deseja que tudo continue igual e que lhes promete, na outra vida, o céu se na terra se conformarem com sua má sorte. No entanto, “no princípio não foi assim, a pobreza e a riqueza introduziram-se tardiamente na linhagem humana” como disse São Gregório Nazianzeno (Discurso 14, M.G. 35, 857-910). O Reino de Deus começa aqui em baixo, precisamente quando se apagam as diferenças entre os homens, quando os bens da terra são repartidos por igual entre todos, quando os seres humanos não estão separados em ricos e pobres, mas quando vivem como irmãos, filhos do mesmo Pai, com os mesmos direitos e as mesmas oportunidades.
(Mateus, 13, 31-32: Marcos 4, 30-32; Lucas l3, 18-19)

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