segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capítulo 18 - UM LOUCO QUER ENTRAR

Passou uma lua e logo outra. Jesus continuava conosco em Cafarnaum. Todas as noites, depois do trabalho, nos reuníamos na casa de Pedro para conversar e fazer planos. Cada dia que passava crescia nossa amizade. Ela ia amadurecendo como amadurecem os frutos nos campos da Galiléia ao chegar seu tempo. Num sábado, fomos com Jesus à sinagoga. À porta estava Bartolo, o louco...

Bartolo: Rezar a Deus! Rezar a Deus!... Vamooooos!... Vamooooos!... Glori, gori, gori, gori, uuuuuu! Eu quero entrar para rezar a Deus! Eu quero entrar para rezar a Deus!... Gori, gori, gori, uuuuuu!....

Bartolo estava sujo e cheirava a vinho rançoso. Tinha os olhos amarelados e sua voz era como a das cornetas quando assobiam atravessando o céu. Batia palmas e chorava pedindo que o deixassem entrar na sinagoga. Todos em Cafarnaum mexiam com ele...

Bartolo: Eu quero entrar!... Gori, gori, gori, gori, uuuuuu!...
Pedro: Olhe, Jesus, aí está o Bartolo outra vez, aquele que vimos no mercado outro dia.
Jesus: Ah, sim, eu me lembro...
Pedro: Maldição de homem, quando resolve encher não há quem agüente!
Jesus: E se o deixassem entrar na sinagoga? Não ficaria tranqüilo?
Tiago: Mas como vão deixar esse louco entrar aí? É um sujeito perigoso, Jesus. Outro dia deixou uma mulher só de cueiros no meio da rua. Arrancou-lhe a roupa de uma vez só...
Pedro: Lembra também aquela vez em que ele quis se afogar no lago?...
Tiago: Não sei nem por que o salvaram. Seria melhor se tivesse ido para o fundo! Para que serve um homem assim? Para nada!

Depois de conversar um pouco no pátio, todos entramos na sinagoga. A sinagoga era o nosso templo. Ali nos reuníamos todos os sábados para prestar culto a Deus, rezar salmos e pedir ao Senhor dos céus que não se esquecesse de seu povo. As mulheres ficavam de um lado, atrás de uma grade de madeira. Os homens, no centro. Todos olhávamos para o lugar onde estava colocado o Livro Santo da Lei. E aquele lugar olhava para Jerusalém, a cidade santa de Deus.

Rabino: “Senhor, quem entrará em tua casa? Quem habitará em teu monte santo?
Aquele que não tem mancha, o que é puro, o que tem limpo o seu coração e limpas as suas mãos, o que não suja sua língua com mentiras...”

Depois das leituras e orações, um dos homens se levantava para explicar o texto da Escritura que havíamos escutado. Naquele sábado foi a vez de Saul, um velho comerciante do bairro dos artesãos, que não faltava nunca à sinagoga...

Saul: Irmãos, ouvimos claramente o que diz o salmo, que para entrar na casa de Deus é preciso ser limpo e puro. Por isso temos que nos lembrar que na casa de Deus não podem entrar os escravos nem os filhos de pais desconhecidos. Tampouco entrarão os leprosos ou os coxos com coxeadura notável. Não podem entrar na casa de Deus as prostitutas nem as adúlteras, nem as mulheres no tempo de suas regras. Somente os limpos, somente os puros. Não podem entrar na casa de Deus os bastardos, as crianças expostas, nem os pastores com reconhecida fama de ladrões. Tampouco entrarão os castrados, nem os loucos, nem os endemoniados. O salmo diz claramente: o que não tem mancha, esse, somente esse, poderá entrar na casa de Deus...

O sermão de Saul era bastante longo e aborrecido. Quando olhei para os lados, vi que Tiago dava cabeçadas e Pedro já estava roncando. Com os outros acontecia o mesmo. Do lado de fora, Bartolo não parava de gritar. Chegou um momento em que seus alaridos encobriram a voz fanhosa de Saul e mal podíamos entender o que dizia o pregador...

Uma mulher: Ai, que sujeito mais impertinente este, mande-o calar a boca!
Um homem: Mande calar esse louco, Jairo, aqui já não dá para escutar nada!
Saul: Como estávamos dizendo, a casa de Deus é somente para os limpos e os puros, para os que estão purificados de alma e corpo e...
Pedro: Deixem esse homem entrar para ver se ele se cala de uma vez...
Tiago: Cale a boca você, Pedro!
Rabino: Esse homem que grita lá fora é um impuro!... Não pode entrar aqui de maneira nenhuma. É o diabo que o envia para que não possamos louvar o Senhor! Mas isso não ficará assim!...
Uma mulher: Com esses gritos aqui, não há quem louve ninguém, rabino!
Pedro: Eu acredito que se ele entrar ficará tranqüilo.
Jesus: Eu também acho. Por que não o deixamos entrar?
Rabino: Chega de discussão! Esse homem não está limpo. É um louco que não sabe distinguir a mão direita da esquerda. Como vai conhecer a Deus para louvá-lo?
Jesus: Mas Deus sim o conhece!
Rabino: Deus só quer em sua presença os homens puros!
Um homem: Nisso o rabino tem razão!
Jesus: Pois eu creio que Deus quer todo mundo na sua presença. Ele se encarregará depois de limpá-los. Mas nos quer todos juntos...
Pedro: Bem falado, Jesus! Deixem o Bartolo entrar!
Tiago: Não gaste saliva com esse louco, Jesus. Esse sujeito não vale a pena... E você também não se meta, Pedro!
Pedro: Cale a boca, Tiago. O que Jesus disse está muito bem dito...

Enquanto estávamos discutindo se o louco Bartolo podia ou não entrar, a porta da sinagoga se abriu, de repente, como se fosse empurrada por um furacão. Rodando como um pião, Bartolo entrou, todo banhado de suor e rindo às gargalhadas...

Bartolo: Rá, rá, rá...! Já entrei!... Gori, gori, gori, uuuuuu!
As mulheres começaram a gritar e armou-se uma algazarra na sinagoga...

Bartolo: Eu quero rezar! Eu quero rezar!... Gori, gori, gori, uuuuuu!

Os olhos de Bartolo brilhavam como se tivesse um tição aceso dentro deles...

Um homem: Tirem esse louco daqui! Maldição, mas ninguém se atreve?
Tiago: Ei, fora daqui!... Fora daqui!
Bartolo: Eu quero rezar, eu quero!... Gori, gori!
Uma mulher: Mas isso é o cúmulo!... Tragam uma corda para amarrá-lo!
Um homem: Que corda coisa nenhuma!... Você, gorducho, me ajude!... Vamos botar fora esse farrapo!...
Bartolo: Gori, gori, gori, uuuuuuuuu!...
Tiago: Farrapo?... Este desgraçado tem mais força que Sansão!
Uma mulher: Pois então cortem o cabelo dele!
Um homem: Agarre-o com força, caramba!...
Outro homem: Saiam vocês, seus frouxos, deixem ele pra mim!...

O ferreiro Julião, que tinha os braços negros e duros como tenazes, agarrou Bartolo pelo cangote e começou a arrastá-lo para a porta... O louco se debatia atirando patadas por todos os lados...

Outro homem: Fora daqui, intrometido, pedaço de demônio, fora !!!
Jesus: Ei, você, solte esse homem!... Vamos, solte-o, deixe-o já!...

Por fim, Jesus conseguiu abrir caminho no meio daquele tumulto de gente...

Jesus: Não vê que ele é um pobre coitado?... Solte-o... Vamos, deixem espaço para ele
respirar...

As pessoas foram se separando um pouco. Bartolo ofegava como um cavalo depois de uma corrida e choramingava com a cabeça pegada ao chão...

Rabino: Que ninguém o toque!! Esse homem é um impuro, está manchado!... Separem-se dele! Afastem-se! Eu disse para ninguém tocar nele!

Mas Jesus nem fez caso das ameaças do rabino e ficou ali, junto ao louco...

Jesus: E por que não posso tocá-lo, rabino?
Rabino: Porque é um impuro! E a impureza se pega como sarna!
Jesus: Ele não é nenhum impuro. É um pobre homem. Está cansado de que as pessoas se riam dele e o toquem de todos os lugares. Por isso se comporta assim. Mas Deus não quer tocá-lo de sua casa.

Jesus se inclinou sobre ele...

Jesus: Bartolo... Bartolo, o que acontece?... Está me ouvindo?

Então o louco abriu os olhos e encarou Jesus desafiante...

Bartolo: Não se meta comigo!... Não se meta comigo!...
Jesus: Escute, Bartolo, você quer ficar e rezar com a gente, não é verdade?
Bartolo: Eu o conheço!... Você quer me matar!... Eu o conheço!
Jesus: Mas, cale-se de uma vez, caramba!...
Bartolo: Eu o conheço!... Gori, gori, uuuu! Eu o conheço!! Você é amigo de Deus! Você é amigo de Deus!
Jesus: E Deus é seu amigo, Bartolo.
Bartolo: Uuuuuu!!! Uuuu!!!
Jesus: Vamos, homem, fique calmo...

Bartolo chorava e tremia no chão. Jesus se agachou e lhe deu a mão para ajudá-lo a levantarse...

Jesus: Vamos ver, venha comigo, ande... Levante-se... assim...

Mas Bartolo, quando já estava de pé, deu um grito muito forte, e caiu sem sentidos...

Um homem: Eh, o Bartolo morreu!
Pedro: Não se mexe... Jesus, o que aconteceu? O que houve com ele?
Uma mulher: Ai, pobrezinho, vejam como ficou! Mais duro que uma vela!...
Rabino: Deus o castigou por atrever-se a entrar em sua casa!... Era um homem pecador!... Era um impuro!... Afastem-se dele!... Para trás... para trás... vamos, afastem-se...

O louco Bartolo estava estendido no chão, branco como farinha. Não mexia nem um dedo.

Jesus: Não está morto, Pedro, que idéia mais maluca!...
Pedro: Está morto, sim, Jesus, olhe a cara dele. Esse já se foi para o outro lado. Quando deu aquele grito a alma lhe saiu do corpo.
Uma mulher: Bem o que o rabino disse, Deus o matou...
Um homem: É isso mesmo. Deus o castigou pelo atrevimento.
Jesus: Deus não o castigou e ele não está morto...

Jesus se aproximou de Bartolo e o sacudiu...

Jesus: Vamos, irmão, levante-se... você já nos pregou um bom susto e temos que continuar rezando... Bartolo!...

O louco se levantou do chão. A cor do rosto já lhe havia voltado. Parecia muito cansado, mas ria mostrando seus dentes quebrados e sujos...

Jesus: Vamos, Bartolo, venha que há um lugar para você entre nós...

O louco Bartolo se sentou entre Pedro e eu e cantou e rezou como todos. Desde aquele dia pôde ir à sinagoga, e ao mercado, e à praça. Estava mais tranqüilo. Pouco a pouco fomos compreendendo que aquele homem, de quem todos tínhamos rido e a quem todos tínhamos posto de lado, tinha também um lugar entre nós. Que aquele pobre louco, alvoroçador e sujo, era um irmão nosso.



Nos tempos de Jesus, como durante muitíssimos séculos, na antiguidade, a falta de conhecimentos científicos, a ignorância sobre o funcionamento do corpo humano, fazia com que se atribuísse aos demônios algumas enfermidades. Isso acontecia, sobretudo, com os transtornos psíquicos, as enfermidades mentais, nas quais o modo de agir do enfermo (gritos, falta de controle dos movimentos, ataques...) era o que mais chamava a atenção.
Dizer “louco” era o equivalente a dizer endemoniado. E, por isso, era o mesmo que dizer “impuro” (dominado ou possuído por um “espírito impuro”, o diabo). A maioria das religiões antigas consideraram que no mundo há pessoas, coisas, ou ações impuras. Umas e outras “conta giam”. Essa impureza não tem nada a ver com a sujeira exterior. Nem a pureza com a limpeza.
Tampouco tem a ver com a moral, “o bom” ou “o mal”. O “impuro” é o que está carregado de forças perigosas e desconhecidas, como o “puro” é o que tem poderes positivos. Quem se aproxima do impuro, não pode aproximar-se de Deus. A pureza-impureza é uma idéia fundamentalmente “religiosa”. Desde os tempos antigos, a religião de Israel havia assinalado esta forma de pensamento mágico e existiam muitas leis sobre pureza que se referiam:
a). Ao ato sexual (menstruação e hemorragia eram formas de impureza);
b). A morte (um cadáver é impuro)
c). Algumas enfermidades (a lepra, a loucura, tornam impuro);
d). Alguns alimentos e animais (o abutre, a coruja, o porco eram, entre muitos outros, animais impuros).
A maioria dessas leis eram conservadas no livro do Levítico. À medida em que o povo foi evoluindo de uma religião mágica para uma religião de responsabilidades pessoais, essas idéias foram caindo em desuso. No entanto, alguns grupos as observam com todo o rigor, donde advém as longas lavagens ou purificações para fazer-se agradáveis a Deus. Jesus lança por terra esses costumes mágicos e com sua palavra e suas atitudes apaga a fronteira entre o puro e o impuro da velha religião. A boa notícia é que a pureza verdadeira está unicamente no coração do homem e na atitude de justiça que tenha para com seus irmãos.
O sinal de Jesus se realiza no interior da sinagoga de Cafarnaum. Uns quinhentos anos antes de Jesus, quando o templo de Jerusalém foi destruído e o povo de Israel foi deportado, os judeus começaram a construir “sinagogas”, casas de oração onde reuniam-se para rezar e ler as Santas Escrituras. Nos tempos de Jesus, embora já houvesse um novo Templo em Jerusalém, existiam muitíssimas sinagogas em todo o país. Em Cafarnaum havia uma pequena, sobre a qual foi construída, quatro séculos depois, outra maior, da qual se conservam ainda hoje ruínas de grande valor histórico.
Na sinagoga se reunia todo o povo aos sábados para assistir à oração e escutar o rabino ou qualquer outro patrício que quisesse fazer o comentário dos textos da Escritura que se havia lido. A sinagoga não é o equivalente exato de nossos templos atuais. É um lugar mais familiar, mais popular e mais leigo, já que nela se podia falar livremente, interromper, e não era necessária a presença de nenhum ministro sagrado. O rabino era um mestre-catequista (não sacerdote).
Sem querer chegar ao conceito “puro-impuro” dos tempos antigos, muitos enfermos do tipo subnormais, loucos, etc., estão hoje marginalizados da comunidade. Os sadios se safam deles, querem escondê-los como uma vergonha familiar, não se lhes dão oportunidades de reabilitação para que possam contribuir para a sociedade.Eles são, como Bartolo, os novos impuros. O sinal de Jesus neste episódio é sinal de que a casa de Deus, a comunidade cristã, está aberta também para esses homens e mulheres diminuídos. É sinal de Libertação: Deus valoriza e tem para eles um lugar e uma missão.
(Marcos 1, 21-28; Lucas 4, 31-37)

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