segunda-feira, 9 de maio de 2011

Novela Um tal Jesus: do capítulo 31 ao capítulo 36

31
A HISTÓRIA DO SEMEADOR



Por aqueles dias, Jesus já era muito conhecido em Cafarnaum. As pessoas o procuravam para ouvi-lo falar do Reino de Deus. Eu creio que também vinham para escutá-lo porque tinha uma língua muito boa para contar histórias... Nós, os do grupo, estávamos cada dia mais animados...

Pedro: Isso está caminhando, companheiro! O povo está abrindo os olhos!
Tiago: Eu não disse, Pedro, que este moreno de Nazaré fala muito direito? Tem de bobo o que eu tenho de limpo. Eu sempre achei que com ele a gente ia chegar longe. E creio que não me enganei!
Pedro: Ei, rapazes, por que não vamos até o cais?... Já não estou agüentando mais ficar aqui dentro!... Vamos, Jesus!

Saímos da casa de Pedro quando o sol estava se afundando no lago. O calor daquele dia havia sido insuportável. Ainda não corria nenhum sopro de ar... Sentamo-nos na orla, junto ao embarcadouro, esperando o vento fresco do entardecer... E, naquele momento, sem que ninguém os chamasse, apareceram por ali o velho Gaspar e sua mulher, os gêmeos da casa grande, meu pai, Zebedeu, o coxo Samuel e muitos pescadores mais...

Uma mulher: Ei, você, nazareno! Puxa,  você falou bem duro outro dia lá na sinagoga. Mas venha cá, fale claro, que aqui todo mundo é de confiança. O que é que você está querendo aprontar com tudo isso?
Jesus: Eu não, patrícia. Quem quer aprontar é o lá de cima.
Mulher: Como o lá de cima?
Jesus: Sim, Deus que já se cansou de esperar e disse: “Preparem-se todos, que agora é minha vez!”.
Um homem: Deus disse isso?
Jesus: Sim, disse. E jogou no ar a semente.
Homem: Que semente, você?
Jesus: A do Reino de Deus, homem, o que mais poderia ser?
Mulher: Se você não se explicar melhor, nem Salomão o entenderá!
Jesus: Que chegou o Reino de Deus, vizinhos! Que não tem que esperar mais! Já está no meio de nós!
Mulher: Pois se está, onde se meteu? Ao menos eu, não o vi em nenhum canto!
Jesus: O vento também não se vê, no entanto ele sopra. O sol ainda não saiu de trás das montanhas, mas já ilumina. É assim que acontece com o Reino de Deus. Não, não tem que olhar nem para cima nem para baixo, nem sair procurando longe, porque ele está perto!... está aqui no meio de nós!... De você gêmeo, de você também, vovó, de mim... Onde houver dois ou três que queiram mudar as coisas, aí está o dedo de Deus!
Homem: Se é assim, aqui está o dedo e a mão inteira... Olhe quantos somos!
Jesus: Sim, agora somos um bom punhado... Mas, logo, logo acontece o que ocorreu com um tio meu lá em Nazaré...
Outro homem: Aconteceu o que, com quem?
Jesus: Com um tio meu que se chamava Jônatas e...
Outra mulher: Daqui de trás não dá para ouvir nada! Fale mais alto, caramba!

Cada vez se reunia mais gente na orla... Vinham de suas casas suados, depois de um longo dia de faina... Até alguns homens que estavam bebendo na taverna se aproximaram também dali...

Jesus: Estava dizendo que com o meu tio Jônatas...
Pedro: Não adianta, nem com a trombeta de Josué eles ficam quietos... Tem muita gente!
Tiago: E muito calor também, maldição!
Pedro: Escute, ruivo, tenho uma idéia... Olhe, a barca do Gaspar... a empurramos um pouco e da água podemos ver melhor as pessoas e todos poderão ouvir... O que você acha, Jesus?
Jesus: Está maluco, Pedro? Entrar no lago a esta hora?
Pedro: Não me diga que está com medo, moreno...
Jesus: Não, bem... mas... esta água já está um pouco escura...
Tiago: Eita! que esses camponeses não valem nada mesmo!... Têm mais medo de água que os gatos!
Pedro: Venha, Jesus, deixe de melindres e vamos para a barca... Epa, rapazes, soltem a corda só alguns metros!

Tiago, Pedro e eu nos metemos com Jesus na barca de Gaspar e nos separamos um pouco da margem...

Uma mulher: Ei, vocês, pra onde diabos estão indo  agora?
Pedro: Não vamos, mulher, é para que todos possam ouvir! Com todo esse converseiro não há quem possa entender coisa alguma... Venha, Jesus, comece outra vez com aquela história do seu tio Jônatas...
Jesus: Pois, então, amigos, acontece que quando chegava a primavera, um tio meu que se chamava Jônatas, saía, como todos os camponeses, para semear seu pequeno pedaço de terra... Eu era muito pequeno nesse tempo, mas me lembro que um dia, quando o vi cruzar a aldeia com seu saco de sementes ao ombro, fui correndo atrás dele...

Menino: Tio Jônatas!... Tio Jônatas!... Espere, tio!...
Jônatas: E onde pensa que vai esse ranhento com tanta pressa?
Menino: Com você, tio, para que me ensine a semear...
Jônatas: Ahhá?... Então você quer aprender a trabalhar a terra em vez de madeira, como seu pai? Muito bem, pois eu vou lhe ensinar a ser um bom agricultor... Venha, moleque, vamos começar por aquela ponta... Vou lhe ensinar a jogar a semente e a cantar as canções da semeadura... Escute... La, la, larará...

Jesus: Chegamos ao pequeno sítio. Tio Jônatas e eu cruzamos a cerca que marcava o terreno. Então ele enfiou sua mão grande de lavrador no saco, pegou um bom punhado de sementes e as lançou...

Jônatas: Essa semente é boa, rapaz...! Queira Deus que chova logo para que elas peguem com força!

Jesus: Tornou a pegar outro punhado e as espargiu no ar...

Menino: Olhe, tio, estão caindo fora...
Jônatas: O que foi, ranhento?
Menino: Algumas sementes estão caindo fora... Olhe, tio... ali!
Jônatas: Pois é, meu filho, sempre acontece isso. Algumas caem do outro lado da cerca, no caminho...
Menino: Quer que eu as pegue, tio?
Jônatas: Não, garoto, não perca tempo com isso... Deixe para os pardais que assim terão algo para meter no bucho, esses infelizes... Venha, ande, que daqui a pouco o sol se levanta e vamos suar pra valer... Lá, lá, larará...

Jesus: Depois, quando fiquei maior, andei pensando que há pessoas que se parecem com essas sementes que caem nas beiradas do terreno... Alguém lhes fala que é preciso trabalhar para que este mundo seja mais justo e isso entra por uma orelha e sai pela outra... São essas pessoas que não se preocupam com nada e com ninguém. Só pensam em si. Têm o coração duro e fechado como a terra dos caminhos... O Reino de Deus não pode nascer neles...

Jônatas: Agora é sua vez, Jesus. Vamos, sobrinho, enfia a mão nesse saco e pegue todas as sementes que puder e lance-as no ar como eu faço... Com força, caramba, parece que você não comeu hoje!...
Menino: Eu comi, tio! Tomei uma caneca de leite antes de vir...
Jônatas: Pois não parece!... Vamos, atire longe as sementes!... Assim!... Não, para lá não!... O que está fazendo?
Menino: Por que para lá não, tio?
Jônatas: Mas, seu pirralho, não está vendo aqueles espinhos?... Se você semeia naquele lugar, as plantinhas crescem, mas os espinhos sempre crescem mais alto que elas e acabam afogando-as... Veja se aprende bem isso, ranhento. Vamos, não fique dormindo, que temos trabalho para um bom tempo ainda... Lá, lá, larará...

Jesus: Quando cresci, fiquei pensando que o dinheiro, a vida cômoda são os espinhos que crescem ao nosso lado. Há gente que ouve falar de justiça e logo diz que sim, que querem fazer muitas coisas,  e mudar o mundo e enchem a boca com palavras bonitas... Bem, até que lhes mexam no bolso. Até que lhes digam que têm de repartir o seu com os outros... então eles murcham. Sim, vizinhos, o dinheiro é a praga que afoga o Reino de Deus.

Menino: Aqui, tio, olhe... Aqui não tem espinho... me dê um bom punhado para semear nesta parte...!
Jônatas: Sim, garoto, esta terra é boa... Mas não se engane... Depois vão dizer que eu sou desconfiado, mas é que já vi muita coisa, e é preciso andar com os olhos bem abertos... Venha cá, enfie uma estaca ali...
Menino: Onde, tio?
Jônatas: Ali, remove essa terra... cavouque um pouco...
Menino: Espere um pouco, tio... Ui, aqui tem muita pedra!... Olhe, tio, olhe quanto cascalho...!
Jônatas: Está vendo, garoto, é preciso ficar esperto... As sementes que você jogar aqui nascerão e crescerão um tanto assim, mas logo, com o calor do verão, como não têm onde lançar raízes no meio dessas pedras, suas folhinhas vão murchando, murchando até secar. Vamos, sobrinho, deixe isso pra lá, que se não andarmos ligeiro, o sol vai nos queimar o cocoruto também... Lá, lá, larará...

Jesus: Com o tempo, fiquei pensando que aquelas sementes que caíram no terreno pedregoso se parecem com os que começam a trabalhar por seus irmãos e põem mãos à obra com entusiasmo, e se esforçam... Mas logo, quando começam as confusões, quando os grandes começam a implicar, e a meter gente na cadeia... quando a cabeça está em perigo, eles dão para trás, se acovardam e secam. Não tinham boas raízes.

Menino: E nesta parte, tio?
Jônatas: Aqui, sim, garoto, olhe bem... Olhe esta terra... Preta e fértil como aquela moreninha do Cântico dos Cânticos... Esta sim dará uma boa colheita!
Menino: Jogo as sementes, tio?
Jônatas: Mas é claro, homem!... Com as duas mãos!... Vamos, sobrinho, não seja mole!... Semeie, semeie com vontade, caramba, que esta terra saberá ser agradecida, eu lhe garanto! Lá, lá, larará....

Jesus: Essa é a terra boa e as pessoas boas. As que têm o coração grande, as que se metem na luta, embora tenham medo, as que arriscam seu bolso e seu pescoço, as que trabalham sem se cansar para deixar a seus filhos e a seus netos um mundo diferente deste. Essas são as que Deus precisa para levantar seu Reino!

Jônatas: Puff... Já não tem mais, garoto. A terra já tem sua semente. Agora é preciso cuidar dela para que não pereça... Dentro de alguns dias, se Deus quiser e a chuva também, tudo estará coberto de folhinhas verdes. E dentro de alguns meses, as mudas estarão deste tamanho e o sol e a água irão amadurecendo as espigas... Aí você vai ver, ranhento, como esse campo vai ficar bonito... Uns pés darão espigas de 30 grãos e outros de 60 e outros de até 100, sim senhor!
Menino: Eu virei com você neste dia, tio...
Jônatas: Pois é claro que sim. Vamos sair bem cedo, tomaremos um bom gole de vinho para ganhar forças e lá vamos nós, a meter a foice e colher como Deus manda!
Menino: E você vai me ensinar a cortar, tio?
Jônatas: A cortar e a cantar, pois estou vendo que você é um garoto disposto para o trabalho, mas com a música, parece que você não se dá muito bem. Vamos lá, limpe os ouvidos, abre bem as orelhas e cante comigo... Lá, lá, larará...

Jesus: Sim, amigos, vamos abrir bem as orelhas e procurar entender a história do semeador! E que cada um olhe dentro de si para ver como é o seu terreno!

Quando Jesus acabou de falar, já era de noite. A maré começava a subir e movia suavemente a barca onde estávamos... Os vizinhos voltaram para suas casas cochichando pelo caminho... Nós voltamos ao embarcadouro e ficamos ainda mais um pouco falando e discutindo com Jesus... Ao final de um longo dia de calor, começava a soprar a brisa da noite sobre o largo e redondo mar da Galiléia.




As parábolas são talvez os textos do evangelho nos quais mais fielmente podemos “ouvir” Jesus e “ver” o ambiente em que ele cresceu e no qual se formou. Nas parábolas em que se usam imagens agrícolas, vemos o camponês que foi Jesus, acostumado a observar o trabalho do campo e a participar dele desde pequeno. Semear lançando, como faz o tio Jônatas, embora algumas sementes possam se perder, pode parecer falta de jeito do semeador, mas não é assim. A parábola do semeador descreve com detalhes o modo de semear usual na Palestina.

Esta parábola pertence - como a da semente de mostarda - ao início da pregação do evangelho. Contando essa história, Jesus manifesta sua ilimitada confiança em Deus que, apesar de todas as perdas e dificuldades habituais da semeadura, dará no fim ao semeador uma abundante colheita, ao menos em uma parte do terreno. E é tanta a certeza que Jesus tem de que assim ocorrerá e tão grande sua alegria pelo plano que Deus traz em suas mãos, que exagera enormemente os frutos finais: Fala de 30, de 60 e 100 por um sobre o que foi semeado. Na Palestina se considerava que, se se obtivesse 7 ou 5 por um da colheita, já era normal. 10 por um se considerava uma boa colheita. Ao falar da generosidade de Deus, Jesus exagerou muitas vezes suas comparações. É uma maneira de dizer que essa generosidade não tem limites e que Deus sempre nos surpreende com mais do que o esperado quando concluímos nosso trabalho.

Além desta ser a parábola do “semeador infatigável”, é também a parábola “dos terrenos”. Uma antiqüíssima tradição catequética, que os próprios evangelhos recolhem, tentou decifrar o significado de cada elemento desta história de Jesus. E a partir dela se fez um catálogo com quatro tipos de homens, conforme sua reação diante da mensagem evangélica (a Palavra). Nesta linha, o “escutar a mensagem”, não deve ser traduzido ou entendido como um simples conhecimento intelectual de Deus. Há pessoas que são muito “ortodoxas”, que dizem que “acreditam em tudo o que manda a Santa Madre Igreja”, mas daí não passam. De nada serve crer com a cabeça ou com a boca se não se vive a mensagem. E a mensagem evangélica repete que ninguém compreende a Deus, ninguém conhece nem aceita sua Palavra se não aceita o irmão, em particular o pobre (Tg 2,14-23). O Deus cristão é aceito ou rejeitado através da atitude de justiça com que agimos. Medellin o formulou assim: “Ali onde se encontram injustas desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, há um rechaço do dom da paz do Senhor, mais ainda, um rechaço do próprio Senhor” (Documento de Paz).

Neste episódio, Jesus concretiza assim o “escutar sua mensagem”: “Trabalhar para que este mundo seja mais justo”, “compartilhar o que se tem com os outros”, “trabalhar pelos irmãos”, “arriscar o bolso e o pescoço” ... São diferentes traduções da essencial fórmula bíblica “praticar a justiça”. Também os profetas traduziam em exemplos bem concretos o que era preciso fazer para ser fiel à palavra de Deus (Is 1, 10-20 e 58, 6-10).


(Mateus 13,1-23; Marcos 4, 1-9; Lucas 8, 4-8)















































32
DIZEM QUE ESTÁ LOUCO



A história das espigas arrancadas na fazenda de Eliazim, correu de boca em boca por toda a Galiléia. Nosso grupo já era conhecido em Cafarnaum e as pessoas cochichavam sobre nós no mercado e na praça. Os mexericos andavam por todas as cidades do lago e, seguramente, chegavam também a Nazaré...

Suzana: Maria, Maria... comadre Maria!
Maria: O que foi, Suzana?... E vocês?... Mas, digam-me o que aconteceu?...Algum dos meninos está doente, primo Simão?
Simão: O meu não. O seu! Não está sabendo ainda?
Maria: Sabendo de quê?... O que aconteceu com Jesus?... O que fizeram com meu filho?...
Suzana: O que vão fazer se você não o amarrar com uma corda curta!
Maria: Mas, pelo santo Deus, digam de uma vez o que aconteceu...
Simão: Ele e esse grupo de baderneiros que anda com ele, invadiram a fazenda do Eliazim, o fazendeiro mais poderoso de todo o Norte... Você conhece o velho Ananias daqui, não? Pois esse é um gatinho manso diante de um leão, se comparar com o Eliazim!
Maria: Mas eles invadiram a fazenda para fazer o que?
Simão: Pois imagine só, prima Maria. Para arrancar espigas. Para roubar. Seu filho é um ladrão!
Maria: Mas, o que é isso...?! E o que vai ser agora?...
Simão: É como você vê. E o pior não é isso. Para cúmulo de tudo, ainda o fizeram no dia de Sábado.
Suzana: E Jesus disse no tribunal que ele não cumpre o Sábado porque não tem vontade e as leis são para ele e não ele para as leis e que ele se limpa o nariz com as taboas de Moisés!
Maria: Não pode ser, não pode ser...
Simão: Está louco, Maria, seu filho ficou louco! Eu acho que desde aquela pedrada que o filho da Raquel deu nele, alguma coisa afrouxou na moleira de Jesus...
Suzana: Não, homem, não. A coisa começou quando ele foi ao Jordão para ver aquele cabeludo que batizava no rio. Foi aí que ele deu o escorregão. Eu bem que lhe avisei, Maria, esse moreno veio muito mudado de lá...
Simão: Dizem que ele falou que os de cima virão para baixo e os de baixo irão para cima. Está agitando os pobres contra os ricos.
Uma vizinha: Então não está louco, puxa vida! É bem isso que está fazendo falta por aqui, virar a torta de cabeça pra baixo!!
Simão: Mas, na cabeça de quem passa gritar isso aos quatro ventos, heim? Eliazim foi ao quartel de Cafarnaum para denunciá-lo. E ele já foi fichado.
Suzana: Comadre Maria: você tem que fazer alguma coisa, e logo!
Maria: Mas eu não posso acreditar no que vocês estão dizendo: eu nunca ensinei essas coisas para o meu filho...
Vizinha: Pois então ele as aprendeu todas juntas quando saiu daqui!
Suzana: Dizem ainda que o viram pela rua dos jasmins, e você sabe, é onde moram aquelas tipinhas... Ran, ran...
Simão: Além disso o viram embriagando-se na taverna do cais com Mateus, o publicano, maldito ele e maldito quem está perto dele!
Vizinha: E acho que ele deve ter alguma coisa com a mulher do Mateus, porque me disseram que ele vai muito àquela casa e fica lá até as tantas da noite, e que um dia ele disse...
Maria: Já chega, já chega!... Não pode ser, Jesus não é assim... Deve estar doente...
Vizinha: Doente: Rá! Eu não sabia que senvergonhice era nome de doença!
Simão: O que tem é muita conversa e muita vagabundagem. Bater papo e não trabalhar, é isso a única coisa que ele tem feito desde que saiu daqui de Nazaré. É só ver: quanto dinheiro ele já lhe mandou, heim, Maria?... dez denários para as lentilhas?... Não se preocupa nem com a própria  mãe!
Suzana: Também não é assim, Simão, o que acontece é que...
Simão: O que acontece é que seu filho anda muito suspeito, prima Maria. Se não perdeu o juízo, perdeu a vergonha. E se ele não é um vagabundo, acabou se juntando com um bando de vagabundos, o que no fundo dá no mesmo. Você quer um conselho? Vai buscá-lo agora mesmo!
Suzana: Isso, Maria, vai buscá-lo e traga-o de volta a Nazaré. E não deixe mais que ele saia. Aqui ele se criou e que aqui fique.Você vai ver como logo abaixa essa febre de messias e de libertação e ele acaba voltando às suas ferraduras e aos seus tijolos. Isso agora é com você. Você é a mãe, não?  Você ele há de respeitar. Vai buscá-lo em Cafarnaum.
Maria: Mas, Suzana, como vou andar sozinha por esses caminhos?...
Suzana: Seus primos irão junto, não é mesmo, Simão?
Simão: É lógico, Maria, iremos com você. Vou avisar meu irmão Jacó...
Suzana: Eu também vou. E quando vir esse moreno, vou ajustar as contas com ele, você vai ver! Esse aí vai se lembrar de mim pelo resto da vida, porque vou lhe dizer umas poucas e boas... Não, não, ele não tem direito de se portar dessa maneira!...

Na manhã seguinte, antes que o sol esquentasse a planície do Esdrelom, o grupo de nazarenos se pôs a caminho de Cafarnaum para buscar Jesus. Iam seus primos. Ia Suzana, a comadre. Iam também alguns vizinhos que não queriam perder nenhum detalhe daquela pendenga. E, entre todos, engolindo as lágrimas, ia Maria, a mãe de Jesus, aquela camponesa pequena de rosto moreno...

Maria: Mas, por que?... Por que, meu filho, você me faz passar essa vergonha? Deus meu, por que?...
Simão: Não se preocupe, prima Maria. Por bem ou por mal a gente o traz de volta a Nazaré!... Fique tranqüila. Deixe-o por nossa conta. Agora esse malandro vai aprender a obedecer sua família, diabos!... Eia, apresse o passo, Maria...

O caminho se lhes fez curto pela raiva que os impulsionava. Quando chegaram a Cafarnaum e atravessaram a Porta do Consolo, perguntaram na primeira casa do bairro...

Simão: Escute, dona, por favor... onde está morando um moreno alto e barbudo, meio pedreiro e meio carpinteiro... um que veio do interior, faz alguns meses?
Uma mulher: De quem vocês estão falando?... De Jesus, de Nazaré?
Maria: Esse mesmo. Você o conhece, senhora?
Mulher: Mas é claro! E quem não conhece Jesus por aqui?... Está morando lá, na casa de Zebedeu, perto do embarcadouro. A Salomé cuida dele melhor que uma mãe.
Maria: Pois sua mãe sou eu.
Mulher: Não me diga! E então? Veio visitá-lo?
Simão: Viemos buscá-lo. Nosso primo está meio biruta.
Mulher: Biruta não! O que acontece é que este moreno não tem papas na língua e diz a verdade ao rabino, ao fazendeiro e até ao governador romano se estiver na frente. Eu digo que ele é um profeta.
Um homem: Um o quê? Um profeta? Profeta esse camponês?
Outra mulher: É como dizem: de profeta a louco, só falta um pouco. Se vocês são a família dele, é melhor que o levem embora. Desde que esse bruxo chegou aqui, aconteceram coisas muito estranhas na cidade!
Mulher: Mas, o que é que você está dizendo, sua intrometida? Jesus é uma boa pessoa. Não curou o Bartolo, heim? Não se lembra mais?
Outra mulher: Curou? Por que você não diz exconjurou? O nazareno deve ter algum pacto com o diabo.
Mulher: Ah, é mesmo? E Caleb, o pescador? Não limpou a lepra dele?... E não esticou a mão do fruteiro Asaf, heim? Pelas quatro asas dos querubins, esse Jesus é um bom curandeiro!
Homem: Curandeiro? Agora sim vou dar uma boa risada, uma gargalhada! Pelas oito patas desses querubins que você conjurou, eu lhe digo que a única cura que esse aí sabe fazer é roubar trigo em campo alheio. E se não, vai perguntar ao velho Eliazim!
Mulher: Mas você é um linguarudo mesmo! O nazareno é uma pessoa decente.
Simão: Decente ou indecente, nós somos sua família e vamos tirá-lo daqui agora mesmo e levá-lo para sua casa. Quem de vocês pode me dizer onde ele está?
Outra mulher:  Venham comigo, eu os levarei até a casa de Zebedeu!
Homem: Ei, rapazes, não percam essa!... Corram, corram, isso aqui vai pegar fogo!

A notícia correu de porta em porta. As mulheres deixaram o fogão e a vassoura e se uniram aos nazarenos. Os homens sem trabalho que esperavam na praça, se levantaram e também foram para lá. Os meninos, como sempre, iam na frente, brincando e alvoroçando pela estreita rua que cheirava a cebola e peixe podre...

João: Mas que balbúrdia é essa, caramba! Será que mataram o rei Herodes?
Uma mulher: Escute aqui, João, vieram buscar o forasteiro!
João: O que aconteceu? Vai ver que são os soldados que vieram com esse safado do Eliazim.
Homem: Soldado nada! É a mãe dele que viajou a pé desde Nazaré. E seus primos. Veio a família toda!
Jesus: O que acontece, João? Quem é?
João: Não está ouvindo o que estão gritando, Jesus? Que lá fora estão sua mãe e seus parentes.
Jesus: Minha mãe? Mas, o que será que aconteceu?
Mulher: Venha aqui fora, nazareno, estão procurando você!
Jesus: Mas que gritaria é essa? Morreu alguém em Nazaré?
Suzana: É você que nos vai matar de desgosto, Jesus. Parece mentira que você tenha feito isso com sua mãe.
Jesus: Mas, do que você está falando, Suzana?... Mamãe, a troco de que esse alvoroço todo?... Ficaram malucos?
Suzana: Você é que ficou maluco. Pode-se saber quem o ensinou a roubar trigo, heim? E a andar agitando o povo, heim? E a andar revolucionando os pobres contra os ricos, heim? E a andar se embriagando com os publicanos e visitando a mulherada, heim?... Quem lhe ensinou a viver como um vagabundo e um perdulário, heim? Vamos, diga.
Simão: Deixe isso para depois, Suzana. Os trapos sujos da família a gente lava em casa. Venha, Maria, diga a seu filho que junte suas coisas, que agora mesmo regressamos a Nazaré.
Maria: Jesus, filho, vamos. Volte com a gente para Nazaré. Seu primo tem razão. Desde que saiu de casa você só tem feito loucuras. Venha, vamos embora...

Mas Jesus não deu um passo. Nem sequer pestanejou...

Suzana: Você está surdo?... Não está escutando o que sua mãe está
dizendo?
Jesus: Minha mãe?... Sinto muito, Suzana. Esta mulher que diz que aquilo que estamos fazendo é uma loucura, essa não pode ser minha mãe. O rosto parece dela, mas não pode ser ela. Minha mãe nunca fez conta dos mexericos. Minha mãe sempre foi valente, e me falou sempre de um Deus que quer ver todos os seus filhos de pé, com a testa bem erguida. Ela me ensinou a ser responsável sem me preocupar com o que dizem os outros. Essa mulher não é minha mãe. Estes tampouco são minha família. Não conheço nenhum deles.
Simão: Eu não lhe disse, prima Maria? Está avariando! Agora diz que não nos conhece!
Jesus: Não, de fato, não sei quem são vocês. Minha mãe e meus irmãos e minha família são outros, os que lutam pela justiça e não vocês que vêm estorvar essa luta.
Simão: Já chega de estupidez! Alguém de vocês têm umas cordas para me emprestar?... Nosso parente ficou louco. E aos loucos não resta outro remédio senão amarrá-los!
Jesus: Está perdendo seu tempo, primo. A verdade não se amarra com cordas. A palavra de Deus é como o vento. Não existem correntes nem cordas que possam detê-la. E os mensageiros desta palavra devem ser livres também, livres como o vento. O que é preciso dizer, o diremos sobre os telhados. E o que é preciso fazer, o faremos em pleno dia.

Nem uma só daquelas palavras convenceu os nazarenos. Raivosos e despeitados ficaram ali, diante da  nossa casa, decididos a continuar aquela pendenga... A verdade é que naqueles meses e mesmo depois chamaram Jesus de tudo. E chamaram-no de louco. E também de bêbado, comilão e arruaceiro. Muitos não chegaram a entendê-lo nunca. É que quando o remendo é de pano novo, não adianta colocá-lo em tecido velho. E quando o vinho é muito recente não se pode colocá-lo em odres já usados.



Jesus escandalizou seus vizinhos na sinagoga de Nazaré quando lhes falou com tanta convicção do Reino de Deus e da libertação. Mas não foram só eles. Sua própria família - sua mãe, seus primos - não compreendiam nem sua atitude nem suas palavras. E acreditaram realmente que ele tivesse ficado louco. A liberdade com que Jesus violava as leis, se enfrentava com as autoridades e discutia sobre costumes antigos de seu povo, foi um escândalo para seus familiares, educados numa sociedade camponesa muito tradicional. Aquela liberdade não podia ser para eles outra coisa que uma perigosa loucura.

Marcos e Mateus, falam em seu evangelho dos “irmãos e irmãs” de Jesus. Inclusive dão os nomes de quatro desses irmãos: Simão, José, Judas e Tiago ( = Jacó) (Mt 13,55). Com certeza a palavra grega empregada pelos evangelistas é “irmão”, mas em tradução literal desta mesma palavra em aramaico. Temos de levar em conta que na língua de Jesus este “irmão” abarca também parentes mais distantes: sobrinhos, primos segundos etc. Tanto é assim que quando o evangelho de João quer dizer que Pedro era irmão de André - filhos dos mesmos pais - ele o especifica acrescentando a “irmão” outra palavra que permite traduzir por “irmão carnal”, com o que não resta dúvida sobre o parentesco (Jo 1,41). Uma ampla quantidade de dados dos evangelhos e da tradição, de forma unânime, nos transmitiram que Jesus era filho único de Maria.

Neste episódio se apresenta Simão, um destes primos de Jesus. Assim como a oposição de Maria ao que seu filho está fazendo, é sobretudo emocional, fruto do temor de que ele corra perigo, a atitude do primo é mais ideológica. Simão é um homem pobre mas  interesseiro, que se move só por dinheiro, materialista, cético, que se nega a aceitar qualquer mudança, qualquer novidade e muito menos  se quem as promove é alguém  próximo e conhecido. O conflito, realmente sério, que Jesus enfrentou com sua família, há que realçá-lo também no ambiente de mexericos típico dos povoados pequenos, onde tudo o que rompe o estabelecido é julgado com severidade e a falta de acontecimentos de importância, agiganta qualquer notícia.

O texto evangélico do enfrentamento de Maria com seu filho, foi apenas levado a sério. É bem pouco conhecido e não se prega a respeito dele. É, no entanto, um texto mariano de decisiva importância. Nos aproxima de Maria, nos faz ver nela a  mãe que teme por seu filho, que não o compreende e inclusive se lhe opõe quando toma um caminho diferente do que ela havia desejado.  Como qualquer outra mãe, Maria se angustia quando vê que as autoridades estão contra Jesus e tem medo de perdê-lo. Esta foi a Maria real. Maria fez um longo e difícil caminho de fé, no qual sofreu obscuridades e vacilações. O começo da atividade de Jesus em Cafarnaum foi para ela um momento especialmente difícil, que lhe custou aceitar. Tanto lhe custou, que três dos evangelistas dão conta deste conflito, embora saibam que, para seus leitores, pudesse resultar surpreendente ou escandaloso.

A família era uma instituição de grandíssima importância para o povo de Israel. Os vínculos familiares eram muito fortes, duravam toda a vida. A veneração e o respeito que os filhos deviam a seus pais, pertenciam à tradição mais arraigada no povo. E apesar de tudo isso, a fidelidade à causa da justiça é para Jesus a principal das obrigações. E a antepõe firmemente às razões familiares. Se este episódio põe em relevo a fragilidade humana de Maria, destaca também a liberdade que sempre caracterizou Jesus.


(Mateus 12, 46-50; Marcos 3, 20,21; Lucas 8, 19-21)


















































33
A CADA DIA BASTA SUA PENA



Simão: Amarrem-no, amarrem-no!... Não ouviram? Ele perdeu o juízo! Está louco de vez!

O bairro dos pescadores parecia um vespeiro revolto no dia em que os parentes de Jesus vieram buscá-lo, dizendo que estava louco. Os nazarenos, agrupados diante da porta, preparavam cordas para amarrar Jesus enquanto os vizinhos de Cafarnaum gritavam e riam vendo aquela briga de família...

Maria: Não faça isso, primo Simão, espere!... Eu falarei com ele. Deixem-me passar, sou a mãe dele...

Maria foi abrindo caminho entre todos, até chegar à porta da nossa casa, onde estava Jesus...

Maria: Por favor, não façam tanto caso dele!... Meu filho está doente e não sabe o que diz... Está doente...
Jesus: Não, mamãe, sei muito bem o que estou dizendo. Já disse que perderam tempo e perderam a viagem. Eu não volto com vocês.
Maria: Jesus, não me falte com o respeito diante dessas pessoas! Não se envergonha de falar assim  comigo?
Jesus: Está bem, mamãe, desculpe... Mas escute-me: encheram sua cabeça com falatórios. Ainda que eles sejam meus vizinhos, eu tenho de dizer: em Nazaré os mexericos crescem como moscas. Eu não sei o que lhe disseram de mim, mas de tudo o que falaram corte a metade, a metade da metade, e ainda lhe sobra.
Simão: Ah, é? Quer dizer que apesar dos disparates que você nos disse antes, agora nos chama de mentirosos, não?
Jesus: Primo Simão, a verdade... uff, a verdade é que você especialmente tem uma língua mais cumprida que um remo.
Maria: Filho, por Deus, o que lhe aconteceu? Como fala assim de seus parentes?... Você já não é o mesmo de antes, Jesus. Você mudou.
Jesus: Acho que foi você quem mudou, mamãe. Antes você me dizia: “Cada um faz o que tem de fazer,  digam o que disserem”. E o que aconteceu com você agora?
Maria: Tenho medo, filho, muito medo. Há muitos delatores, muitos soldados. A situação está cada vez pior.
Jesus: Por isso mesmo temos de fazer alguma coisa. E logo. O que você prefere? Que as coisas continuem como estão? Que continuemos olhando  como as pessoas morrem de fome ao nosso redor até que chegue a nossa vez?
Maria: Não é isso, Jesus, mas... As coisas se complicam. E amanhã virão me dizer que levaram você preso e...
Jesus: Não se preocupe com o que vai acontecer amanhã, mamãe. A cada dia basta sua pena, você não acha?
Maria: Nestes dias eu me lembrei muito do seu pai, José...
Jesus: Pois que eu me lembre, a família de meu pai não era covarde. Ele escondeu aqueles infelizes quando os soldados os vinham perseguindo. E lhes salvou a vida.
Suzana: Sim, e perdeu a dele. O que você está querendo, moreno? Que sua mãe perca você também?
Maria: Não me faça passar por essa dor, Jesus, eu lhe peço. Por que você não pode ficar quieto em Nazaré, trabalhando, fabricando ferraduras, pregando telhados, ganhando o pão como todo mundo?... Case-se, tenha filhos, que algum dia eu possa ver os meus netos... Por que você não pode ser como todo mundo, Jesus, por que?

Maria esfregou os olhos com um lenço de listas que levava amarrado aos cabelos. Não queria que a vissem chorar. Sentia-se humilhada e envergonhada no meio daquela gente que a rodeava. Os nazarenos zombavam de Jesus, os de Cafarnaum zombavam dos nazarenos. E as coisas doíam muito a ela...

Simão: Não chore por esse vagabundo, prima Maria. Acontece é que seu filho não quer trabalhar, e isso é tudo. Ele quer andar se metendo em política para não trabalhar. Só conversa. Muita conversa e poucas lentilhas. Vamos ver, de que vai viver sua mãe se você não ganha nem para comprar lenha? Você economizou alguma coisa? Tem algum negócio em vista?... Vê lá, você não tem de seu nem sete palmos de terra onde cair morto!... Mas eu vou lhe avisar de uma coisa, Jesus, depois não venha bater na minha porta para pedir-me emprestado. Não lhe darei um centavo, está ouvindo, um centavo!
Jesus: Nunca lhe pedi nada, primo Simão. Trabalho com minhas mãos igual a você. Você não me deve, eu não lhe devo. E minha mãe não come de seu pão nem se veste com suas roupas. Olhe, eu também vou lhe dizer uma coisa:  me parece que você se preocupa muito com o prato de lentilhas... com o seu prato, bem entendido. Sim, está certo, há que se ganhar o pão com o suor do rosto. Mas preste atenção nas aves do céu, nos pardais, nas gaivotas do lago, nos canários... Nenhum deles semeia nem colhe, nem têm nada guardado e a nenhum falta o que comer. Quando os vejo, eu penso: será que não valemos mais que os pássaros?
Simão: Sim, continue com suas histórias e suas palavras bonitas. Mas com palavras não se come, está ouvindo?
Jesus: Preste atenção nas flores, primo, nesses lírios brancos e pequeninos que crescem no campo sem que ninguém cuide. Não cosem nem tecem... E quando eu os vejo, penso: nem o rei Salomão, com seus trajes de linho e sua elegância, se vestiu melhor que uma ervazinha destas. Se Deus cuida até da erva que hoje nasce e amanhã seca, como não vai cuidar de nós que somos seus filhos?

Quando Jesus disse aquilo, Simão, seu primo, agarrou o pequeno saco de moedas que levava amarrado à cintura e o fez soar com orgulho. As pessoas se espremeram ainda mais para ver bem a cara dele...

Simão: Olhe, sonhador, olhe... Isso é o que vale. Do resto eu dou risada. Lírios do campo? Passarinhos?... É tudo lixo!... Fique aí olhando o céu, com a boca aberta, olhando os pardais quando passam... Não vai lhe chover pão do céu, mas outra coisa... Não primo, não. Vai cantar essa música em outro terreiro... A vida tem de ser levada a sério.
Jesus: Mas não tanto, Simão...
Simão: O que você quer? Que peçamos comida a Deus, com os braços cruzados?
Jesus: Não, Simão. Tem de trabalhar. Mas tem de ter confiança também. Deus já sabe que precisamos de casa e de roupa e de lentilhas. Se fazemos nossa parte, ele não nos falhará. Mas tem de pensar também na casa e na roupa e nas lentilhas dos outros, dos que têm menos que a gente. Eu acho que se nos preocuparmos mais com o que os outros precisam, do que com o que precisamos, o nosso virá por acréscimo.
Maria: Ai, filho, isso é fácil de dizer... mas quando a vida aperta...
Jesus: Mas, mamãe, foi você mesma que me ensinou. Você me dizia: “é mais feliz quem dá do que quem recebe”. Já não se lembra? “Ajude seus irmãos e Deus ajudará você”, isso você me repetia um dia atrás do outro. Pois eu quero ajudar meu povo a ser livre, ainda que tenha de pagar o preço que pagaram todos os profetas...
Maria: Não fale assim, filho, me dá medo... Jesus, eu lhe suplico, não se meta mais em confusão...
Jesus: Mamãe, eu lhe suplico, não tente agora entortar o caminho que você mesma me abriu. Com medo não se resolve nada. Por mais que você se angustie, não pode fazer-se um palmo mais alta, não é mesmo? Tampouco pode resolver os problemas que ainda não apareceram. A cada dia basta sua pena...

Meu irmão Tiago e eu havíamos ficado dentro de casa para não provocar ainda mais os nazarenos...

Tiago: Veja só que primo tem Jesus... Pela raiva que demonstra, parece até que um cachorro o mordeu!
João: Pois olhe que a Suzana também não fica atrás...
Tiago: E a mãe, nem se fala, com mais lamentações que Jeremias...!
Salomé: E o que mais pode fazer, a infeliz?... É filho dela. Tem de se preocupar e velar por ele!
João: Mas, velha, pelo amor de Deus, um homenzarrão como Jesus, com trinta anos nas costas...!
Salomé: Nem que tivesse sessenta. Para uma mãe, os anos de seus filhos não contam.
Tiago: Claro, e é aí que está o problema, que para vocês nós não crescemos e querem nos segurar a vida toda debaixo das saias.
Salomé: Debaixo das saias não, mas ao lado, sim, porque a gente tem coração, caramba, e se angustia pelas coisas que podem acontecer. Eu até agora tive sorte com vocês dois que me sairam bons e os tenho perto. Mas, quem sabe um dia desses...?
João: Olhe, mamãe, não vamos começar...
Salomé: Não, mas quem começa são vocês. Vocês estão balançando demais da conta desde que chegou esse bendito moreno de Nazaré. Mas me escutem bem, par de malucos, quem se põe a brincar com fogo, acaba chamuscado. Já que estão sabendo, parem de andar politicando, me ouviram? Saiam disso, moleques, olhem que...
Tiago: Está bem, está bem, mamãe, uma briga fora e outra dentro já é demais. Eia, vamos ver que raios está acontecendo na rua...

Quando saímos, o bate-boca dos nazarenos continuava. Simão, o primo de Jesus, tinha começado a impacientar-se...

Simão: Não perca tempo, Maria. Ele está transtornado, está louco. Você não o está ouvindo com seus próprios ouvidos?...
Maria: Jesus, por favor, volte com a gente para Nazaré.
Jesus: Não, mamãe, eu fico por aqui. Estamos tratando de fazer alguma coisa para que você e nós e todos os pobres de Israel alcancemos a herança que Deus nos prometeu.
Maria: Se não quiser fazer por mim... faça ao menos pela memória de José, que descanse em paz. Você não respeita nem ao menos os ossos de seu pai?
Jesus: Meu pai se alegraria por ver tudo isso, mamãe, não acha? Ele não se escondia diante dos perigos, pelo contrário.
Maria: Está me desobedecendo?... Você desobedece sua mãe? Jesus!... Eu lhe digo pela última vez... Eu lhe suplico, venha comigo para Nazaré.
Jesus: Não, não vou.

Maria mordeu os lábios num gesto desesperado. E então se pôs a chorar desconsoladamente...

Suzana: Vamos, Maria, acalme-se... Não fique assim...
Maria: O que você quer que eu faça, Suzana? O que me resta agora?... Tinha um marido e o perdi. Tinha um filho, um só. Também o perdi... O que  me resta ainda?...
Suzana: Fique tranqüila, mulher, não pense nisso agora...
Maria: Eu não o entendo, Suzana... Não entendo porque Jesus me faz isso, por que...?
Simão: É porque não tem vergonha. Porque é um rebelde, um desbocado. Vamos acabar com esse assunto de uma vez. Jacó, as cordas!... Se não quer vir pelos próprios pés, que seja arrastado como um animal.
Maria: Não, Simão, não faça isso... Deixe-o... se ele não quer, deixe-o...
Simão: Deixá-lo, prima Maria? Deixar que continue aprontando as suas e que continue metendo-se em política, expondo-nos ao ridículo, e arranjando perigo para todos nós, que somos seus parentes, que depois teremos de pagar por todas as suas velhacarias?... Não, nada disso! Ele volta com a gente para Nazaré, quer queira, quer não!

Simão e Jacó, com duas laçadas de corda na mão, se aproximaram de Jesus que continuava de pé, junto à porta de nossa casa...

Jesus: Eu não estive me metendo em política, primo Simão, mas você está se metendo com o que não é da sua conta. E faça-me o favor de parar de encher a cabeça da minha mãe com seus mexericos e suas intrigas, que isso é a única coisa que você soube fazer em toda a sua vida, intrigar e meter a língua onde não deve! Você não vive e não deixa ninguém viver, caramba!
Simão: Atreva-se a repetir isso, ande... atreva-se!
Jesus: Digo que você está se metendo no que não lhe...

Simão perdeu a paciência e lhe deu um bofetão em pleno rosto. As pessoas que nos rodeavam se amontoaram ainda mais. Jesus, cambaleando, limpou o sangue que começava a brotar do nariz...

Simão: Vamos, lute como um homem!... Ou nem isso você é?... Vamos lá, revide...  você que acha que é tão machinho... Defenda-se, covarde...! O que está querendo, ganhar outro pescoção...? Venha, seu porqueira, venha, que eu vou sovar você bem sovado...!

Jesus cruzou os braços e se aproximou de Simão...

Jesus: Primo, eu não tenho nada contra você. Por que não me deixa em paz?
Simão: Vamos lá, brigue comigo...!
Jesus: Não, não vou lhe dar esse gosto... Se quiser pode me bater. Eu não vou revidar...

Simão, com os punhos e os dentes apertados, esperava. Jesus permanecia tranqüilo, sem deixar de olhar seu primo que, uma vez mais, foi quem perdeu a paciência...

Simão: Imbecil... Mais do que imbecil... Sempre pensei que você era pouca coisa... mas você é ainda menos do que eu pensava... Puah!... Vamos embora, Jacó! E que esse traste fique onde quiser!... Andando, que temos muito caminho pela frente!...

Os nazarenos empreenderam o caminho de volta para sua aldeia. Simão e Jacó iam à frente do grupo, dando bastonadas contra as pedras, cheios de raiva... Maria, a mãe de Jesus, ia junto com Suzana, apoiada em seu braço, dando-lhe voltas e mais voltas no coração o que havia acontecido naquela tarde em Cafarnaum...



O conflito de Jesus com sua mãe se desloca um tanto neste episódio em que enfrenta seu primo Simão. A personalidade materialista e interesseira do primo é uma boa ocasião para enquadrar as conhecidas palavras de Jesus sobre as aves do céu e os lírios do campo, nada fáceis de explicar sem cair numa interpretação alienante. Além disso, estas palavras de confiança incondicional na providência de Deus podem se tornar ofensivas - se não se explica bem -  para aqueles que se vêm forçados, dada sua miséria, a viver procurando o que comer e com que vestir-se, premidos por necessidades básicas não satisfeitas.

Certamente se deve “comer para viver” e não “viver para comer”. Mas há situações de pobreza que obrigam o homem a ser “materialista” e a gastar todas as suas forças para conseguir a suficiente comida para cada dia. Esta é a situação das grandes maiorias em nossos países. O que Jesus denuncia não é esta urgência com que os pobres buscam com o que subsistir. Seria contraditório com todo o resto de sua mensagem. Jesus critica a ideologia ambiciosa de quem acumula ou açambarca, o materialismo do avarento, de quem só pensa em si mesmo, em seu benefício, em seu próprio lucro, esquecendo-se das necessidades dos outros. Para ele, que trata de romper o círculo vicioso do ganhar mais, do ter mais e colocar sua vida a serviço da felicidade dos outros, estas palavras de confiança em Deus soam de outra maneira. Aquele que luta pela justiça, em meio a dificuldades também econômicas, deve saber que Deus vela por ele e lhe dará “por acréscimo” o que necessita para continuar essa luta. O ser humano não dever ser uma máquina de produzir. Tampouco uma máquina de consumir. Ter mais pode chegar a ocultar o verdadeiro ideal cristão: Ser mais. Ser mais solidário com os irmãos, ser melhor filho de Deus. Ser mais feliz, dando e recebendo.

A viuvez de Maria acentua seus temores. Em Israel, uma mulher sozinha, sem um homem em casa, era duplamente indefesa. No relato, quando Salomé fala com seus filhos Tiago e João, manifesta uma grande compreensão pela atitude de Maria. Às mães, custa especialmente desprender-se de seus filhos, renunciar a influir sobre eles, aceitar que se vão por caminhos de risco. Para que o filho ao nascer tenha sua própria vida, é preciso cortar o cordão umbilical que o unia a sua mãe. Ao longo de toda a vida, este ato há de repetir-se mais de uma vez entre mãe e filho para que a personalidade dos dois cresça e amadureça.

(Mateus 6,25-34; Lucas 12, 22-34)

































34
OS FILHOS DE EFRAIM



Um par de lamparinas iluminava a casa de Pedro, enchendo de sombras as paredes. Naquela noite, como em quase todas, ficamos conversando depois do jantar e Jesus nos contou uma história, a história do velho Efraim.

Jesus: ... Sim, aquele homem tinha um coração do tamanho deste lago. Chamava-se Efraim e tivera seis filhos. As quatro primeiras foram meninas e os outros dois, homens. Sua mulher morreu quando nasceu o último. Efraim ficou viúvo e teve de trabalhar duro para tocar adiante com seus seis filhos. Ele tinha um pedacinho de terra à direita da colina de Nazaré. Ali suava da manhã à noite, arando e semeando. Trabalhava como um burro velho para que seus filhos tivessem todos os dias grãos-de-bico e pão.

Jesus: Passaram-se os anos, as filhas foram se casando e Efraim ficou com seus dois filhos varões, Rubem, o mais velho e Nico, o menor de todos...

Vizinho: Bom dia, Efraim!... Como vai essa vida, vizinho?
Efraim: Pois é o que você está vendo, meu caro. Aqui, como sempre, suando em bicas!
Vizinho: Mas os meninos já vêm ajudar, não é mesmo?
Efraim: Claro que sim. O maior está agora enfiando o arado naquele pedaço... Já estamos quase no tempo da semeadura, vizinho.
Vizinho: Ah, esse seu filho Rubem é um grande rapaz, sim senhor. Com ele se pode contar... mas o outro, heim?... que mau pedaço se saiu, não é mesmo?...
Efraim: Bem,  o pobre Nico...
Vizinho: Não o defenda, Efraim, não o defenda, que por aqui todos sabem de que pata manca esse seu outro filho. Ele só quer saber de correr atrás de rabo-de-saia. Um vagabundo e um sem-vergonha, isso o que ele é. Você devia falar sério com ele um dia desses. Endireita essa árvore enquanto é tempo. Ela está crescendo muito torta.
Efraim: Esse rapaz se criou sem mãe, vizinho. Eu tive de ser pai e mãe ao mesmo tempo, compreende? Eu o conheço bem. Não é um sem-vergonha, não. Acontece que ele anda um pouco desorientado...

Jesus: Naquela noite, Nico, o filho mais novo de Efraim, demorou muito a chegar em casa...

Efraim: Onde terá se metido?... É estranho, seu irmão chega sempre para comer...
Rubem: É, para isso ele sabe chegar a tempo... É um cara de pau... Não dobra o lombo para trabalhar, mas come que nem um boi... Bem, papai, já acabei... Eu vou dormir...
Efraim: Eu não posso dormir antes dele chegar, filho. Vou ficar esperando mais um pouco!

Jesus: Nico chegou passada a meia noite. E seu pai, o velho Efraim, o estava esperando...

Nico: Viva a vida, viva o amor...! Hip! Ei, papai, ainda está acordado...? Hip...!
Efraim: Filho, por que chegou tão tarde? Estava preocupado...
Nico: Ah, velho... A gente tem de viver a vida! Hip...! Eu estava com uns amigos... Temos planos, sabe? A gente vai embora desse povoadinho... Isso aqui é muito aborrecido, papai... muito aborrecido, aborrecidíssimo... Já não agüento mais.
Efraim: Mas, moleque, o que você está dizendo?
Nico: Que vou embora. Amanhã mesmo eu me mando. Não vou ficar aqui plantado que nem uma árvore. Quero conhecer o mundo...
Efraim: Nico, meu filho, você bebeu muito vinho. Não sabe o que está dizendo...
Nico: Escute, papai, eu sei que você tem aí guardado um dinheirinho da colheita anterior... Dê-me a parte que me toca... Eu vou gozar a vida... Viva a vida, viva o amor...!

Jesus: Na manhã seguinte, o velho Efraim tirou de um buraco do pátio as moedas que havia economizado da última colheita e separou as que tocavam por direito a seu filho, que já tinha idade para reclamá-las. Embrulhou-as num lenço e lhe deu... Até o último momento confiava que Nico não iria...

Efraim: Bem, filho, se é o que você decidiu...
Nico: O que é isso, meu velho, não seja tão sentimental... O dinheiro não é para ficar escondido, mas para se gozar com ele...
Efraim: E... para onde você vai?
Nico: Para qualquer lugar! Onde houver ambiente...!
Efraim: Filho, mande-me alguma notícia sua com os mercadores que passam por aqui...
Nico: Mas ninguém passa por aqui, papai, isso aqui é um povoado morto. E eu estou até o nariz disso tudo, de você e de todos... Vou indo, papai, adeus!

Jesus: Efraim viu seu filho afastar-se pelo caminho, sem que volvesse uma só vez a cabeça... Seguiu-o com os olhos cheios de lágrimas até que ele se perdeu no horizonte, por entre as oliveiras do caminho...

Rubem: Maldição, papai! Você deu a esse vagabundo um dinheiro que ele não trabalhou!
Efraim: Seu irmão é livre, filho. Se ele queria ir... Eu não vou mantê-lo amarrado aqui como um boi. Ele não é meu escravo. É meu filho...

Jesus: No porto de Jafa, Nico começou a gastar o dinheiro que seu pai lhe havia dado... E assim passaram-se os meses. Quando não eram mulheres, eram bebedeiras e, quando não, apostas nos dados... Todo o dinheiro que Efraim havia economizado trabalhando como um burro de carga, seu filho desperdiçou em muito pouco tempo... Enquanto isso, em Nazaré, seu pai não deixava de pensar nele...

Vizinho: E então, Efraim?... O de sempre?
Efraim: Sim, vizinho, aqui vamos indo, esperando... Qualquer hora dessas passam as caravanas do sul. Se meu filho viesse em uma delas...
Vizinho: Esse não volta mais, Efraim. Com todo aquele dinheiro que você lhe deu...
Efraim: Não tenho nenhuma notícia dele. É como se estivesse morto.
Vizinho: Isso mesmo. Considere-o morto e pare de sofrer! Esquece esse rapaz. Ainda lhe restam outros cinco e são bons. Esquece esse desatinado...

Jesus: Mas, pode uma mãe ou um pai esquecer-se do filho que criou? Pode deixar de preocupar-se com quem nasceu de suas entranhas?... Efraim não esquecia seu filho, ainda que seu filho tivesse se esquecido dele...

Nico: Escute aqui, ô pançudo, traga outra jarra de vinho para cá, que minha garganta já está fazendo cócegas! Hip...! E a menina aqui também quer continuar mamando, não é mesmo queridinha?... Rá, rá, rá...!

Jesus: Passou outro mês, e outro e mais outro... O dinheiro que Nico havia levado de Nazaré foi se acabando. Um dia apostou nos dados as últimas moedas que lhe restavam e perdeu tudo.

Nico: Maldita sorte, essa minha!... Que diabos vou fazer agora, heim?...

Jesus: Então procurou trabalho mas não encontrou. Em Jafa as coisas não iam muito bem. A colheita tinha sido ruim naquele ano. Havia pouco dinheiro e muita fome... Ao final, depois de muitos dias, um homem o contratou para cuidar de porcos a troco de um pagamento miserável...

Nico: Nojo de vida! De boa vontade comeria as algarobas que dão aos porcos... mas se o dono vir, me mói de pancadas...! Pelos chifres de Belzebu, nunca tive as tripas tão vazias!

Jesus: E assim passaram-se várias semanas. Nico morria de fome enquanto os porcos engordavam. Estava sujo, fedia mais que os porcos e não fazia outra coisa que lamentar-se...

Nico: Eu aqui, feito um esfomeado e a essas horas lá em casa estarão comendo um bom prato de grãos-de-bico... Lá são pobres mas não lhes falta comida... Tenho de voltar... Já não agüento mais isso... Direi ao velho: olhe, papai, sinto muito, me enganei, as coisas deram errado para mim. Diga-me o que quiser, pode gritar, fazer o que quiser, mas... ajude-me. Acho que o velho vai amolecer e me dará algum dinheirinho... Sim, tenho de voltar...

Jesus: Ele decidiu voltar...

Efraim: Hoje faz quarenta luas que seu irmão foi embora....
Rubem: Olhe, diga seu filho. Esse não é mais meu irmão, para mim é como se já fizesse quatrocentas luas...
Efraim: Se soubesse onde ele está eu iria buscá-lo...
Rubem: Você gastaria dez pares de sandálias e não o encontraria. Esse seu filho morreu. Esquece dele, papai, esquece de uma vez...

Jesus: Naquela manhã, como em todas as outras há quarenta luas, Efraim foi ao caminho por onde passam as caravanas do sul, esperando notícias de seu filho... E quando o sol apareceu no horizonte, iluminando o caminho, o pobre pai viu algo que se movia lá longe. Alguém vinha vindo. O coração lhe avisou que aquele era seu filho, e o velho Efraim, como se fosse um menino, saiu correndo para recebê-lo...

Efraim: Filho, filho!

Jesus: Quando chegou onde ele estava, o abraçou e o beijou...

Efraim: Filho, filho, você voltou...!
Nico: Papai, olhe... eu queria explicar...
Efraim: Você não tem de me explicar nada. Você voltou e essa é a única coisa que importa! Venha, vamos...! Vizinho, ajude-me, a trazer a melhor roupa que há no baú e procure por aí o anel de casamento da mãe dele para que ele o ponha no dedo, e sandálias novas também...
E você, rapaz, vai matar o bezerro que está engordando... E asse-o depressa. Ele tem fome. Está muito magro, precisa comer bem...
Não estava morto! Está vivo!... Estava perdido e eu o encontrei!

Jesus: Pouco depois, toda Nazaré estava na casa de Efraim. O velho havia corrido por todo povoado, avisando os vizinhos que Nico, seu filho, havia voltado, que estava ali outra vez...

Uma vizinha: E por onde você andou, seu sem-vergonha? Por aqui todos acreditavam que você havia saído do país...
Outra vizinha: Quantas namoradas você arranjou por aí?... Mas, veja como seu pai está feliz hoje, olhe, Serafina, ele está dançando com dona Suzana!...
Nico: De fato, nunca havia visto meu pai tão contente.
Uma vizinha: Ele o esperou todos os dias em que você esteve fora! Dizia sempre que voltaria!
Outra vizinha: E você voltou, rapaz, você voltou! Venha, vamos dançar comigo!

Jesus: Ao meio-dia, Rubem, o irmão mais velho, voltou do trabalho do campo. Quando se aproximou da casa, ouviu a música e achou estranho...

Rubem: Ei, você, O que está acontecendo em minha casa, para tanto alvoroço assim?...
Vizinho: Não está sabendo? Seu irmão Nico voltou! Há uma grande festa! Seu pai até mandou matar o bezerro cevado para comemorar! Venha, corra!

Jesus: Mas o irmão mais velho se aborreceu muito ao ouvir aquilo e não quis entrar em casa. Então foram contar a Efraim o que estava acontecendo e Efraim saiu correndo para buscar seu filho mais velho...

Efraim: Rubem, filho, Rubem... seu irmão voltou! Voltou são e salvo! Venha, entre, estamos todos esperando você....
Rubem: Mas papai, você sabe que este vagabundo gastou seu dinheiro com prostitutas, embebedando-se por aí, e ainda lhe dá o bezerro cevado para que ele o coma, e faz uma festa... ficou louco, papai?...
Efraim: Sim, filho, estou louco. Louco de alegria. Me diziam que seu irmão estava morto, e veja, está em casa outra vez. Nós o havíamos perdido e o encontramos! Como não ficar alegre? Se eu tivesse três bezerros, eu os teria matado também para comemorar ainda melhor!
Rubem: Claro, e eu que passei a vida toda junto de você, trabalhando e obedecendo-o em tudo, sequer ganhei um cabrito para comer com meus amigos...
Efraim: E por que você não me pediu, filho?... Você sabe que tudo o que é meu é seu também. Você sabe que eu amo os dois igualmente...

Jesus: E o velho Efraim abraçou seu filho mais velho com a mesma alegria com que antes abraçara Nico... E entraram em casa. Rubem abraçou Nico e sorriu. Fazia muito tempo que não sorria... E poucos dias depois, quando suas irmãs e seus cunhados vieram de visita a Nazaré, Efraim teve todos os seus filhos ao redor da mesa, sem que lhe faltasse um só...

Jesus: Esta é a história do velho Efraim, aquele pai que tinha o coração do tamanho deste lago. Quem a entende, entende como é Deus.

Foi Jesus quem nos ensinou a chamar a Deus com o nome de Pai.



A parábola “do filho pródigo”, deveria melhor chamar-se a “do bom pai”, porque é o pai que ocupa o lugar de verdadeiro protagonista na história de Jesus. Esta parábola pertence ao grupo das que Jesus empregou para explicar aos que o ouviam: Assim é Deus. Os sentimentos que há no coração do velho Efraim - generosidade, paciência, capacidade infinita de perdão... - são a melhor imagem dos sentimentos do coração de Deus.

Ao falar, Jesus não empregava uma linguagem abstrata de idéias e conceitos. Expressava-se com imagens. Nesta parábola - sem falar disso - Jesus diz como é o perdão de Deus. Ele o descreve com vários símbolos. Quando Efraim recupera o filho perdido, o veste com uma túnica nova. No Oriente, presentear alguém com uma roupa é sinal de grande apreço e, na linguagem bíblica, a veste nova é um símbolo de que chegou o tempo da salvação. Ele lhe dá também um anel e lhe calça sandálias. O anel é sinal de que se entrega ao outro total confiança; as sandálias são sinal de que o passado estava todo esquecido, sinal de plena comunhão. A partir de todas essas imagens Jesus descreve como Deus perdoa a quem se converte e volta para ele.

A parábola tem duas partes. Fala de duas atitudes diante desse modo de ser de Deus: a dos dois filhos. Para os dois, o pai é o mesmo: compreensivo, disposto ao perdão. Para os dois tem os braços abertos. Mas o filho mais velho não participa da alegria. Nunca fizera mal durante sua vida, mas tampouco havia compreendido quem era seu pai. Com esta história, Jesus está fazendo um convite aos que “cumprem”, aos que se acham bons e justos, para que se alegrem vendo como os que sempre estiveram fora - os irmãos menores - se sentam também à mesa e participam da festa. Para homens como o irmão mais velho, o evangelho é sempre um escândalo. Não só queriam que, por seus méritos acumulados - orações, cumprimento dos mandamentos, sacrifícios - Deus lhe desse em troca o céu, mas parece que lhes interessa e satisfaz mais que Deus o tire dos outros, dos maus, dos pecadores. É uma atitude tristemente freqüente entre muitos que se chamam cristãos.

Jesus comparou Deus com o pai de grande coração desta história. E ensinou seus discípulos a chamarem a Deus com o nome de “Pai”, como ele sempre fez. Em todos os livros do Antigo Testamento se diz que Deus é Pai e que age com seus filhos os homens, como um pai, mas em nenhuma ocasião alguém se dirige a Ele chamando-o de “Meu Pai”. (Existe a invocação “Pai nosso”, mas em orações coletivas, feitas em nome de todo o povo). A confiança imensa com que Jesus se dirigia a Deus, mais do que como “pai”, como “Papai” (= abbá), usando a mesma palavra aramaica com que os filhos se dirigiam familiar e carinhosamente a seu pai, é uma característica singularíssima de sua personalidade. Em toda a extensa  literatura de orações do judaísmo antigo, não se encontra nem um só exemplo em que se invoque a Deus como “Abbá”, nem nas preces litúrgicas, nem nas preces pessoais. Neste ponto, Jesus não foi herdeiro da tradição de seus antepassados, mas abriu um caminho novo, inédito, cheio de conseqüências teológicas que nos permitem conhecê-lo mais profundamente e, por ele, conhecer definitivamente a Deus como nosso “papai”.


(Lucas 15, 11-3































35
DEPENDURADO PELO TETO



Por aqueles dias, a casa de Pedro era a mais visitada de Cafarnaum. Quando o sol se escondia por trás do Carmelo, nos reuníamos nela todos os do grupo e muitos outros do bairro para conversar sobre nossos problemas...

Rufa: Sim, está bem, muita justiça e que as coisas mudem e todos iguais, está certo... mas, e o espírito, heim?
Pedro: Que espírito, sogra?
Rufa: Como que espírito? O seu, Pedro. O meu. A alma do homem. E se depois de toda essa confusão a gente morre e é condenado, eh, como fica então?
João: Mas, velha Rufa, e por que vamos ser condenados?
Rufa: Porque somos maus e temos pecados, puxa vida! E devemos nos preocupar de ter a alma limpa!
Um homem: Aqui o que temos de limpo são as tripas, com esta fome que está nos matando!
Pedro: Está bem, sogra. Deixe a alma para depois, porque primeiro é preciso colocar alguma coisa na pança, não acha? Eu lhe digo que o  Messias vem com um saco cheio de grãos-de-bico para repartir com todos!
Rufa: Pois eu digo, Pedro, que o primeiro é ter as contas claras com Deus e depois haverá muito tempo para os grãos-de-bico. Não é, Jesus, tenho ou não tenho razão?
Jesus: Eu não sei, vovó, mas me parece que uma pomba precisa das duas asas para voar. Se tiver uma asa quebrada, não voa. E se é a outra, muito menos.
Rufa: O que você quer dizer com isso, Jesus?
Jesus: Eu creio que Deus não separa as coisas. Tudo vai junto, a alma e o corpo, o céu e a terra, o de agora e o de depois...

Naquela noite soprava um vento frio do Hermon, e Rufina, a mulher de Pedro, se pôs a preparar um caldo de raízes. Todos os vizinhos sentiram o cheirinho bom e vieram beber do pote. Pouco depois, a casa estava repleta de gente...

Um homem: O que é que estão dizendo, daqui não se ouve nada?
Uma mulher: Eu sei lá, é coisa de uma pomba que tem duas asas para voar e... Olhe aqui, pare de empurrar, senão... Mas olhe só quem vem vindo, os filhos de Floro... e estão trazendo o velho também!
Outro homem: E para que tiraram aquela raposa da sua toca, heim?
Rapaz: Queremos entrar. Nós o trouxemos carregado desde a outra ponta do povoado...
Outra mulher: Pois voltem por onde vieram! Não estão vendo a quantidade de gente por aqui?

Quatro rapazes jovens carregavam uma maca improvisada, feita com uma rede de pescar e dois remos de barco. Sobre ela vinha um velho muito magro com os olhos vermelhos e saltados, como os dos sapos. Era Floro, o paralítico.

Rapaz: Por favor, deixem-nos entrar!
Homem: Mas como vão colocar este aleijado lá dentro?... Aqui não cabe nem uma pulga de lado!... Vão, vão embora daqui!

Os filhos de Floro tentaram passar pela porta, pela cozinha, pelo pátio... Impossível. Havia gente demais. Mas Floro não estava disposto a voltar sem ver o rosto de Jesus. Foi então quando lhe ocorreu uma idéia...

Rapaz: A coisa está ruim, papai. É melhor a gente ir embora...
Floro: De jeito nenhum. Eu não vou sem ver o forasteiro.
Rapaz: Mas, papai, o que podemos fazer? Aqui não há quem consiga entrar...
Floro: Pois me coloquem por cima.
Rapaz: Como por cima?
Floro: Me dependurem pelo teto, caramba!... Esses telhados são fáceis de levantar... Isso eu sei muito bem!

Os quatro rapazes tiraram os remos, envolveram o velho Floro na rede que lhe servia de maca, puxaram-no até o teto da casa e começaram a levantar os paus cobertos de barro amassado. Enquanto isso, Jesus continuava falando do Reino de Deus...

Jesus: Sim, sim, acontece com a pomba a mesma coisa que com uma barca sem os dois remos, e os dois têm de ir ao mesmo compasso para que a barca vá direito pra frente... Com o Reino de Deus é a mesma coisa, tudo vai junto, tudo...
Rufina: Mas, o que está acontecendo aqui? Pedro, por Deus, venha ver isso!... Estão abrindo um buraco no teto! Pedro!
Pedro: O que está acontecendo, mulher escandalosa...?
Rufina: Olhe, Pedro, há gente trepada no teto!
Pedro: Como no teto?... que raios estão fazendo aí?... Escutem, vocês, desçam imediatamente se não quiserem que... Mas, estão loucos? Traga-me a vassoura, Rufina, que eu vou quebrá-la na testa deles se não descerem daí...
Rufina: Ai, Pedro, aaaiii...!

Foi questão de segundos. Os filhos de Floro escorregaram, a viga central se partiu e o teto de argila se afundou sobre nossas cabeças. Junto com os paus e a poeira do desmoronamento, apareceu no meio de todos, como um polvo apanhado na rede, o paralítico Floro.

Pedro: Mas, o que é isso que vocês fizeram? Animais, velhacos, safados, filhos da cadela de Jezebel!... Me estragaram todo o telhado! Quem vai consertá-lo agora, heim?...
Rapaz: É que o velho escorregou e...
Pedro: Maldição, eu juro que vão recolher esse  barro com a própria língua!
Rapaz: É que os paus do teto da sua casa estão meio podres e por isso...
Pedro: Isso é assunto meu e não de vocês, seus patifes. E então, quem mandou trepar no teto dos outros, heim, heim?
Rapaz: Foi papai quem nos disse...
Pedro: Papai! Papai! É a esse arrepio da pele do diabo, que vocês chamam de “papai”?...vagabundo, porcaria de homem!...
Jesus: Acalme-se, Pedro, a coisa não é para tanto...
Pedro: Como não é para tanto? Mas, onde é que já se viu gente cair do céu como cocô de passarinho, heim? Se caíssem em cima da sogra Rufa, a teriam matado!
Jesus: Está bem, mas não caiu...
Pedro: Olhe só para isso, tudo quebrado, janela, escada, tudo quebrado!
Jesus: Amanhã eu conserto isso, Pedro, fique sossegado. Tenho experiência em consertar telhados.
Rufina: E este velho tem experiência em destruí-los, não é, Floro? Não, não tenha pena desta raposa velha. Sabe como ele quebrou as pernas?... Pulando cercas e trepando nos telhados para roubar...Seu grande sem-vergonha, vou moê-lo a pauladas!
Pedro: E pode-se saber  por que demônios você pula pelo teto se há uma porta para entrar, heim?... Fala, não fique calado agora. Você tem as pernas quebradas, mas a língua não...
Floro: Eu sou um aleijado.
Pedro: Um aleijado, sim, um aleijado... um bandido, isso o que você é. E esses seus quatro filhos, são ainda piores que você... Vamos, vamos ponham pra fora esse safado...
Jesus: Espere, Pedro, faça isso... Deixe-o falar primeiro. O que acontece, Floro, por que veio aqui?... Por que fez isso?
Floro: Porque eu queria entrar. Então uma velha na porta me disse: “fora, fora daqui, não há lugar”. E eu queria entrar. E um outro me empurrou e disse: “fora, fora daqui, a casa esta abarrotada”. Mas eu queria entrar.
Pedro: E por que não ficou escutando pela janela como os outros?
Floro: Não, pela janela não. Eu queria ver de perto esse tal Jesus que veio para cidade e que cura os doentes... Tenho as pernas aleijadas.
Rufina: Sua doença está nas mãos, pedaço de ladrão! Nem mesmo Deus cura você, desgraçado!
Pedro: Olhe, Jesus, este velho, que você está vendo, é um ladrão de sete mãos. Agora já não pode fazer muita coisa, mas antes, quando podia andar... se eu contar você não vai  acreditar!
João: O velho Floro roubou o candelabro da sinagoga sem apagar as velas!
Pedro: Se lhe faltar um denário, pode procurá-lo no bolso do Floro. Se lhe sumir o pão ou as azeitonas, é só procurar na pança do Floro ou na de seus filhos.
Uma mulher: Ladrão e bêbado!
Um homem: E jogador!
Rufa: E brigão!
João: Pro diabo com o Floro, as maldades deste velho são tantas quantos os filhos que ele tem!
Jesus: Isso que dizem, é verdade, Floro?
Floro: Sim, Senhor. Isto é verdade. Eu sou um sem-vergonha. Mas não se metam com os meus filhos. Meus filhos são bons.
Outro homem: Bons? Pois olhe que quando o Floro e seus filhos passam pelo mercado é como se passasse uma praga de gafanhotos!... arrasam com tudo!
Floro: Mentira! Meus filhos são honrados e decentes.
Jesus: Estes quatro são seus filhos, Floro?
Floro: Sim, Senhor, são os mais velhos. Dois pares de gêmeos.
Jesus: Você tem mais filhos?
Floro: Uhhh!... Mais dez em casa. Tenho catorze.
Jesus: Catorze?... Caramba, mais que as tribos de Israel!
Floro: É que minha mulher os pariu de dois em dois. Sempre gêmeos.
Jesus: E por que você roubava? Não tinha trabalho?
Floro: Sim, mas o que ganhava não dava. Catorze filhos, catorze bocas. Vão morrer de fome dizia minha mulher. Eu trabalhava de dia e roubava de noite. E não dava nem assim! Então me desesperei e maldisse a Deus. Sim, Senhor, cometi todos os pecados que a Lei proíbe. Eu não tenho perdão. Sou um sem-vergonha. Mas meus filhos não. Eu os criei e os toquei pra frente. São bons e trabalhadores.
Um homem: Seus filhos são tão sem-vergonhas quanto você, velho mentiroso!...
Floro: Não, não, não. Não digam isso. Eles não são como seu pai.
Outro homem: Filho de peixe, peixinho é!
Floro: Não, não, eles... eles são bons. Eles são bons! Pode crer, forasteiro, meus filhos têm bom coração, não são como eles estão dizendo...
Jesus: Vamos, Floro, não fique assim. Acalme-se. Olhe, você tem confiança em seus filhos. E Deus tem confiança em você. No Reino de Deus todos têm um lugar, ainda que se pendurem pelo teto. Anime-se, Floro: Deus perdoa seus pecados. Acredite no que lhe digo: Deus perdoa seus pecados.

O paralítico olhou surpreso para Jesus, com aqueles olhos saltados e um sorriso grande, de orelha a orelha. Todos estranhamos muito aquelas palavras que Jesus acabava de pronunciar...

Homem: Como é que você disse, forasteiro?
Jesus: Disse que Deus perdoou Floro.
Homem: E quem é você para dizer isso?... Esse velho é um canalha. Não há perdão para ele!
Jesus: Você acha mesmo?
Homem: Tanta certeza quanto as pernas quebradas que ele tem!
Jesus: Escutem isto... Que coisa será mais fácil: dizer “seus pecados ficam perdoados” ou dizer “suas pernas ficam curadas”?
Homem: Nenhuma das duas. A primeira é uma blasfêmia. A segunda... é impossível.
Jesus: Creio que você se engana, amigo. Para Deus nada é impossível. Não estávamos dizendo antes que no Reino de Deus tudo vai junto, a alma e o corpo...?  Vamos, Floro, levante-se e volte para casa com seus filhos...

Então aconteceu algo inacreditável. O velho Floro se levantou do chão, esticou as pernas com naturalidade e jogou no ombro a rede e os remos que lhe haviam servido de maca... Olhou para todos, radiante de alegria e começou a andar. Até que saiu da casa de Pedro, seguimos seus passos com medo e assombro, maravilhados com o que havia ocorrido. Nunca havíamos visto uma coisa assim.



Os telhados das casas no tempo de Jesus, e ainda hoje em grande quantidade de moradias orientais, são planos, como terraços. Descansavam sobre uma base de vigas cobertas com ramos, sobre os quais se colocava uma camada de barro amassado. Nas casas comuns esta armação de vigas se fazia com madeira de sicômoro. Nos edifícios maiores tinha que ser empregada uma madeira muito mais forte. A do cedro, por exemplo. Esta forma de construção leve e provisória - o teto era levantado em tempo de maior calor - explica como o paralítico Floro pôde ser dependurado por cima, no interior da casa de Pedro. Os vizinhos que estariam reunidos naquele dia não ocupariam somente o espaço da casa, que era reduzidíssimo, mas se amontoariam no pátio comum que compartilhavam as pequenas moradias de várias famílias.

No pensamento religioso está muito arraigada a idéia dualista: Fala-se de coisas, de pessoas e lugares sagrados, e por outro lado se fala de coisas, pessoas e lugares profanos. Diz-se que o homem tem, por uma parte a alma (espiritual, elevada, digna de estima) e por outra, o corpo (material, de baixos instintos, o qual temos de dominar). Fala-se do material e do espiritual, do natural e do sobrenatural, para contrapô-los. Em tempos mais recentes pretendeu-se diferenciar  assim, cortantemente, a salvação, da promoção humana. (Ou a libertação em Cristo, da libertação temporal). O futuro que aguarda o homem também é visto como diferente e oposto ao presente: A terra e o céu; o mais aqui e o mais além. Na realidade, nenhum desses pares de contrários encontram base na mensagem do evangelho. As palavras e a atitude de Jesus romperam para sempre estas falsas divisões, proclamando que todos os homens são iguais - todos sagrados -, que Deus enche o universo criado, e que a vida eterna começa a partir desta vida quando o homem opta por defender a vida de seus irmãos.

O milagre que Jesus realiza com o aleijado Floro é um sinal de que para Deus essas diferenciações não contam. Deus liberta o paralítico, de uma vez, de sua enfermidade e do peso de sua história de debilidades, de seus pecados. Para Deus - isso diz o sinal de Jesus - vão juntos a alma e o corpo. Para Deus interessa o homem todo. Diante do evangelho já não conta  nenhum desses dualismos. Tampouco o dualismo na ação: quando os homens lutam para transformar a história de miséria e injustiça em uma história autenticamente humana, estão fazendo história de salvação, construindo o Reino de Deus ou, dizendo em outras palavras, estão começando o céu. O céu começa na terra. E a Deus o encontramos no homem.

Deus conhece a história pessoal de cada homem, de cada mulher. Conhece, por isso, as últimas motivações de seus atos e, como juiz justo, tem presentes todos os atenuantes que tem o “mal”que fizemos. A extrema necessidade - e esse é o caso de Floro, cheio de filhos a quem alimentar - é um grande atenuante para as debilidades humanas. Frente a Jesus, o paralítico “vê” toda sua história, a aceita como é, com todas as suas limitações,  e a confessa sinceramente. Deus, por Jesus, também a vê e a aceita. Isto é, a perdoa, a limpa de todas as suas falhas e a enaltece: as contas ficam acertadas. Jesus é o mensageiro do perdão de Deus, um perdão sem limites, que leva alegria ao coração atormentado do homem.

Os milagres de Jesus não devem ser “lidos” como provas de sua majestade e do seu poder. O majestoso isola. O poderio nos faz tremer, nos atemoriza. Se os sinais que Jesus realizou entre seus patrícios tivessem esse efeito, tudo teria sido contraditório com o projeto de Deus, que quis precisamente aproximar-se de nós em Jesus. Cada um daqueles sinais tornou mais próximos de Jesus os homens pobres e humildes de seu povo, que viam nele um deles, um amigo a quem querer, um líder a quem seguir: os que se distanciaram - e não precisamente por sua admiração - foram os que acreditavam que com suas orações e suas leis tinham já Deus metido no seu bolso, e não suportaram que um camponês pobre falasse com tanta intimidade das coisas religiosas e fosse capaz de pôr em pé a esperança de um povo prostrado por tantos sofrimentos.


(Mateus 9, 18; Marcos 2,1-12; Lucas 5,17-26)











































36
TÃO PEQUENO COMO MINGO



Carlito: Jesus! Jesus!... Espere!
Jesus: O que foi, Canilla?
Carlito: Jesus, faz de novo aquele truque dos três dedos?
Jesus: Outra vez? Mas eu já fiz isso ontem mesmo para você.
Carlito: Eu me esqueci.
Jesus: Eu faço de novo amanhã.
Carlito: Não, não, agora.
Jesus: Bem, então preste atenção para poder aprender... O dedão você esconde assim... o mindinho você torce até aqui e...
Carlito: Já sei! Já sei!...Olhe, já não estou fazendo direito?
Jesus: Melhor do que eu. Ande, vai e ensine ao Nino, que ainda não sabe...
Carlito: Sim, eu vou ensinar ao Nino.
Jesus: E mais tarde, venha com ele à casa de Pedro, que hoje eu vou ver se vocês estão aprendendo a juntar as letras na sinagoga...
Carlito: Tchau, Jesus!
Jesus: Tchau, Canilla!

Eu creio que em pouco tempo os meninos de Cafarnaum se fizeram amigos de Jesus. Andavam sempre atrás dele para que lhes ensinasse algum truque ou lhes contasse uma história. Lá os meninos passavam quase o dia todo correndo na rua. O rabino os reunia só uma vez por semana para ensiná-los a ler, e o resto do tempo passavam brincando e fazendo travessuras. Na casa de Pedro e de Rufina acontecia a mesma coisa...

Mingo: Cabeludo, piolhento, cabeludo, piolhento, cabeludo, piolhento...!

Seus quatro garotos bagunçavam da manhã até à noite e nunca faltavam os choros, os risos e os pescoções. Rufina passava o dia, do fogão ao quintal, e do quintal ao fogão, brigando com eles. A velha Rufa também andava com seus afazeres. E quando Pedro chegava da pesca sempre encontrava alguma surpresa...

Pedro: E então, mulher? Como se comportaram hoje?
Rufina: Mal, como sempre. Simãozinho abriu a cabeça do Mingo com este pedaço de ferro...
Pedro: O que? Abriu a cabeça dele?... E você, o que fez?
Rufina: O que é que eu vou fazer? Lavei o corte com água do lago e coloquei em cima uma teia de aranha. Ai, Pedro, eu não sei como esses moleques não se matam...
Pedro: Eles não se matam, não, mas vão acabar matando a gente. Cambada de safados!... Zinho! Zinho, venha cá!
Rufina: Não lhes faça nada, Pedro. A avó já lhes deu uma boa surra. Deixe prá lá!...
Pedro: Eles têm de aprender, Rufina. Se não os endireitamos a tempo...
Rufina: Mas eles ainda são tão pequenos ... Dá na mesma se vão direitos ou tortos...
Pedro: Zinho, já lhe disse pra vir aqui!
Rufina: Olhe, melhor que a surra é você tirar os piolhos dele, minha mãe ainda não teve tempo pra isso e ele deve estar com a cabeça cheia...

Um dia, como em muitos outros dias, as três meninas do meu irmão Tiago tinham ido brincar com os meninos de Pedro e Rufina. Quando os sete se juntavam, o quintal da casa do velho Jonas parecia o lago da Galiléia em dia de tempestade...

Simãozinho: Agora eu dou risada e vocês choram! Ha, ha, ha, ha...!
Uma menina: Agora o contrário! Eu choro e vocês dão rizada! Buáááá... Buááá...!
Outra menina: Isso está muito chato! Vamos brincar de outra coisa, Zinho!
Mingo: De soldados!
Simãozinho: Isso mesmo, vamos brincar de soldados!
Menina: E nós?
Simãozinho: Mila e você são dois leões...! Venha! Vamos buscar as espadas!
Menina: E eu vou ser o que?
Simãozinho: Outro leão!... As espadas, as espadas!

Depois de algum tempo, no meio da tarde, Jesus chegou à casa de Pedro...

Jesus: Como vai, Rufina?
Rufina: Aqui, Jesus, no fogão. Como sempre.
Jesus: Hummm...! O cherinho desta sopa está uma delícia...!
Rufina: Se quiser ficar pra comer... logo estará pronta. Com essa molecada tudo se atrasa. Agora é o Rubem que está com diarréia, e está se borrando todo, veja só...
Jesus: Deve ser lombrigas...
Rufina: Acho que sim, o que mais poderia ser!? Mas quando não são as lombrigas são os vômitos. Não acaba nunca...! Bem, o que se vai fazer!? E então, Jesus, fica para jantar?
Jesus: Não, Rufina, obrigado. Vim só para buscar umas varas que Pedro guardou por aqui. Vou fazer um trabalhinho com elas... Você sabe onde é que ele as pôs?
Rufina: Ai, Jesus, eu não sei nem mesmo onde pus minha cabeça. Eu vi essas varas ontem, mas... agora não tenho nem idéia onde estarão! Pergunte ao Pedro...
Pedro: As suas varas, sim...! Mas elas estavam aqui neste canto...! Eu as coloquei aqui!
Jesus: Queria aproveitar para fazer um conserto que a vizinha aqui do lado me pediu... Antes que chegue a noite...
Pedro: Sim, é claro... Mas, onde diabos estão essas varas? Rufina!
Rufina: Nem me pergunte, Pedro, eu não sei de nada!
Menina: Ai, ai, ai...!
Simãozinho: Eu te matei, eu te matei!
Menina: Ai, ai, tio Pedro, olhe o Zinho! Tio Pedro!
Pedro: Maldição com esses moleques!... Simãozinho!
Jesus: Está sangrando, Pedro, veja...
Pedro: Rufina! Rufina, corre!... Simãozinho, vem cá imediatamente!... Olhe só onde estavam suas varas, Jesus! Eles as quebraram todas! Muito bem! Quem deu permissão para vocês pegarem essas varas, heim, quem deixou?
Simãozinho: Eram as espadas, papai...
Pedro: As espadas, heim?... E pra que vocês queriam essas espadas?
Simãozinho: Para matar leões. Ela era o leão.
Pedro: Essas varas não eram suas, porcaria! Eram de Jesus e ele precisava delas para trabalhar... Muito bem, comece a baixar as calças depressinha...! E você também, Mingo, bunda de fora!
Rufina: Não bate nele, Pedro... é muito pequeno...
Pedro: Sim, muito pequeno para apanhar, mas veja só as senvergonhices que faz... Rufina, leve as meninas para a casa de Tiago... Agora esses moleques vão ver...! Toma...! Vamos ver se não aprendem a respeitar o que não é deles...
Jesus: Pedro...
Pedro: Condenado...! Desobediente...! Atrevido...!
Jesus: Pedro, pare com isso...
Pedro: Erva daninha! Moleque safado...!
Jesus: Pedro, pelo amor de Deus, eu posso arranjar outras varas...
Pedro: Cale a boca você também, Jesus. Esses moleques vão ter de aprender...!
Mingo: Ai, ai, ai, aiiiii...!
Pedro: E agora os dois vão ficar aqui, de joelhos em cima dessas pedras até que eu mande sair. Ouviram?... Ouviram bem?...
Simãozinho: Papai, perdoe a gente... Estou com medo. Está ficando escuro... Perdoe a gente!...
Pedro: Está com medo, não é? Pois podem se mijar de medo que daqui vocês não saem até que eu mande sair. E prestem atenção. Se alguém se mexer virá a bruxa malvada com um gancho deste tamanho e enganchará os dois pelos fundilhos e os jogará no fundo do lago...
Rufina: Não os assuste, Pedro...! Caramba, você tem cada idéia...!

Pedro deixou Simãozinho e Mingo no quintal, ajoelhados de castigo sobre as pedras, e entrou em casa... Jesus estava junto de Rufina, no fogão...

Pedro: Puff...! Sinto muito, Jesus, se estragaram seu trabalho. Eu vou arranjar outras varas...
Jesus: Não se preocupe, Pedro. Sinto mais pelos garotos. Você os pegou muito duro. São apenas crianças...
Pedro: Sim, são crianças, mas olhe o que fazem. Não, não os defenda!
Jesus: Perdoe os garotos, homem... Eles não fizeram por mal...
Pedro: Não fizeram por mal, mas fizeram, e isso é que importa.
Rufina: Vamos, Pedro, escute Jesus, e deixe os meninos entrarem.Ali fora irão pegar um resfriado. Anda, mande que venham tomar a sopa, já...
Jesus: Vamos lá, Pedro, amoleça um pouco. Não seja tão duro com os garotos...

Simãozinho: E então, papai... A Mila fez “grrrr”... e o Mingo a agarrou pelo rabo e...
Jesus: Está vendo, Pedro, já se esqueceram do castigo que você lhes deu. As crianças são assim, esquecem... e também perdoam logo. Isso é o bom que têm.

No meu país as crianças não contavam para nada, essa é a verdade. Ensinavam-lhes meia dúzia de coisas, batiam nelas por quase tudo e os adultos quase nunca conversavam com elas nem pediam sua opinião. As crianças só valiam porque iam crescer e então poderiam trabalhar. Para Jesus não. Ele soube ver algo muito grande nos pequenos.

Quando Jesus passava pela casa de Pedro, gostava de conversar com a garotada. Sentava-se no quintal, debaixo do limoeiro e, em pouco tempo, os meninos de Pedro e os dos vizinhos e as meninas de Tiago vinham correndo para que ele lhes contasse histórias. Naquele dia, Jesus estava lhes ensinando travalínguas....

Jesus: E esta é mais difícil ainda: Escutem bem... Um ninho de mafagafos com cinco mafagafinhos, quem os desmafagafizar, bom desmafagafizador será.
Simãozinho: Ui, que difícil! Fale de novo, Jesus!
Menina: Não é difícil. Eu já aprendi! Um ninho de mafagafos com... Quantos mesmo que tinha, Jesus?
Jesus: Está bem. Vou repetir bem devagar. Prestem atenção: um ninho de mafagafos com cinco mafagafinhos, quem os desmafagafizar....

Eu não sei de que manhas Jesus se valia para ganhar a garotada. Parece-me que ele se fazia um pouco como eles e brincava com aqueles pirralhos como se fosse um deles... Quando naquele dia Pedro e André voltaram da pesca e apareceram na janela, o quintal da casa parecia um enxame de abelhas. As crianças eram tantas que não deixavam ver nem mesmo onde estava Jesus...

Rufina: Fico pensando, cá comigo, por que esse Jesus não se casou para ter seus próprios meninos. Leva muito jeito com eles. Veja, já faz um bom tempo que estão ali, meio abobados. Ele lhes conta cada coisa...!
Pedro: Pois eles vão desabobar agora mesmo. Temos de resolver um assunto lá na casa do velho Zebedeu. E Jesus tem de vir conosco. Eh, eh, molecada...! Vamos lá, todo mundo pra fora! Chega de amolação. Temos muito que fazer, vamos, fora!
Jesus: Mas, Pedro, os garotos estão sossegados. Deixe-os aqui comigo.
Simãozinho: Papai, papai, você não sabe dizer isto: Um ninho de mafagafos, com cinco mafagafinhos, quem os demafagafizar, bom desmafagafizador será...
Pedro: E pra que eu vou dizer isso, heim?
Simãozinho: Não sabe! Não sabe! Papai não sabe!
Pedro: Quem disse que não sei? Falar isso é moleza, veja: Um ninho e mafagafos com cinco magafazinhos...

E quando caiu a noite...

Jesus: Você não sabe, Pedro, não sabe.
Pedro: Demônios, você tem mais paciência com as crianças que o santo Jó!
Jesus: A verdade é que eu gosto das crianças, Pedro...
Pedro: Claro que sim, porque não são seus... Se você  tivesse de suportá-los hoje, amanhã e depois de amanhã, outro galo cantaria.
Jesus: Mas, Pedro...
Pedro: Sim, já sei, são uns peraltas, mas...
Jesus: ... E é isso o que eles têm de melhor. São pequenos e não se fazem maiores do que são e estão contentes sendo pequenos. Nós adultos não somos assim. Nós nos achamos importantes, ficamos sérios, quebramos a cabeça discutindo os grandes problemas do mundo... E enquanto isso, olhe este aqui, dormindo a sono solto...
Rufina: Este está entregue, Jesus. Dormiu mamando....
Jesus: Observe como está bem no colo de sua mãe, Pedro. Aí, em seus braços, não tem medo de nada, nem sequer das suas broncas... Às vezes fico pensando que a porta do Reino de Deus deve ser também pequena, uma portinha assim, para que só as crianças possam entrar por ela... É isso... Nós, os adultos, teremos de dobrar o pescoço e nos agacharmos e deixar de fora o orgulho, o rancor, o medo, todas essas coisas... Sim, teremos de nos fazer pequenos como o Mingo... ou como o Simãozinho... ou como a Mila para que nos deixem passar por essa porta...

Antes de irem dormir, Jesus acariciou Mingo, o pegou um pouco em seus braços e lhe deu um beijo. E Mingo, sem perceber nada, continuou dormindo no colo de sua mãe.



No ambiente em que viveu Jesus, as crianças valiam bem pouca coisa. Os filhos, certamente, eram considerados como uma bênção de Deus. Mas a importância de um homem, seu valor pessoal, não era real até que não chegasse à maioridade. Do ponto de vista das leis e das obrigações e direitos religiosos, este pouco valor se descrevia incluindo as crianças nesta fórmula, habitual nos escritos da época: “surdo-mudos, idiotas e menores de idade”. Também apareciam citados junto com os anciãos, enfermos, escravos, mulheres, aleijados homossexuais, cegos etc. Do mesmo modo que Jesus teve uma atitude revolucionária diante da mulher, sua atitude diante da criança - tão relacionada com a mulher - foi surpreendente em seu tempo. Ele as fez destinatários privilegiados do Reino de Deus enquanto crianças, dando a entender que os pequenos estão mais perto de Deus que os adultos. Para ele, tinham valor não porque seriam adultos, mas pelo que já eram. Esta postura de Jesus não tem nenhum precedente nas tradições de seus antepassados. Ele foi absolutamente original.

A atitude de Jesus para com os pequenos não foi unicamente uma teoria, ou uma idéia no ar. Foi também uma prática. Jesus compartilhava com as crianças horas de brincadeira, risos, passatempos, sua linguagem, seus pequenos problemas. E neste compartilhar - sem ficar dando sermões nem dizendo muitas palavras - está a raiz do que deve ser a atitude dos adultos com as crianças. Uma atitude baseada no respeito à sua pequenez sem exigir deles o que não podem dar na sua idade. Ou, segundo a fórmula clássica de Paulo: Fazer-se criança com as crianças para ganhar as crianças (I Cor. 9,23).

Os meninos próximos de Jesus não são os meninos dos santinhos: bem penteados, com túnicas sem uma mancha sequer ou um amarrotado, que lhe pedem piedosamente a bênção com cara de anjinhos. Os meninos do bairro de Cafarnaum eram meninos de rua, acostumados desde pequeninos às necessidades e ao trabalho, meninos com nariz sujo e piolhos, com sandálias meio gastas, semelhantes em tantas coisas com os meninos de rua de nossas cidades, com nossos meninos camponeses gastos pelo trabalho e pela fome, muito antes que termine sua infância. Assim seriam os filhos de Pedro, os que teve Tiago ou qualquer outro discípulo de Jesus, homens que viveram em sua própria carne as preocupações e as alegrias de levar adiante uma família.

Quando Jesus fala aos adultos e lhes diz que para entrar no Reino de Deus têm de “fazer-se como meninos”, não esta se referindo a recobrar a pureza das crianças (pureza como castidade). A idéia de que a criança é mais pura, neste sentido, que o adulto, era totalmente estranha ao pensamento israelita. Jesus se refere muito mais à atitude que devemos ter diante de Deus, que é um Pai que nos recebe em seus braços. Tornar a ser menino significa fundamentalmente aprender de novo a dizer “Abba”, isto é, “papai”, “papaizinho”. Jesus se dirigiu sempre a Deus com esta palavra, cheia de confiança, de carinho, de familiaridade. “Abba” é a palavra aramaica com que os filhos chamavam seu pai, a primeira palavra que balbucia o bebê. Falar com Deus com esta palavra significa ter lançado fora o temor de um Deus mau que leva em conta nossos erros. Significa ver em Deus um lar, um colo, um grande coração.

(Mateus 19,13-15; Marcos 10,13-16; Lucas 18,15-17; Mateus 18,1-5;
Marcos 9.33-37; Lucas 9, 46-48)


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