segunda-feira, 16 de maio de 2011

Novela um tal Jesus do capítulo 49 ao capítulo 60

49
NA CIDADE DO REI DAVI



Ainda era muito cedo quando nos pusemos a caminho. Atrás de nós, o sol começava a acariciar o lago redondo e azul da Galiléia que refletia os primeiros raios. Junto com ele, preguiçosamente Cafarnaum despertava do sono. Mas não volvemos a cabeça para dizer adeus à nossa cidade. Só tínhamos olhos para Jerusalém. A alegria da Páscoa enchia nossos corações e nos fazia andar depressa...

Pedro: Vamos, companheiros, amarrem bem as sandálias e firmem seus bastões, pois ainda temos três dias de estrada pela frente!

Na primeira noite acampamos em Jenin. Depois, tomamos o caminho das montanhas até Guilgal... Logo seguimos pelas terras secas e amareladas da Judéia... Nossos olhares saltavam de colina em colina buscando algum indício da cidade santa para onde estávamos indo... Subitamente, todos nós demos um grito de alegria...

João: Corram, corram, já dá pra ver a cidade!!

Num certo ponto da caminhada, à altura de Anatot, apareceu resplandecente à nossa frente. Sobre o monte Sion brilhavam as muralhas de Jerusalém, seus palácios brancos, suas portas reforçadas, suas torres compactas... E no centro, como jóia maior, o templo santo do Deus de Israel.

Pedro: Que viva Jerusalém e todos os que vão visitá-la!

Jerusalém, cidade da paz, era a noiva de todos os israelitas: capital de nosso povo, conquistada pelo braço astuto de Joab mil anos antes, onde o rei Davi entrou dançando com a Arca da Aliança e onde o rei Salomão construiu, mais tarde, o templo de cedro, ouro e mármore que foi admirado por todo mundo...

As últimas milhas de estrada seguimos em caravana com muitas centenas de peregrinos que vinham do Norte, da Peréia e da Decápole, para comer o cordeiro pascal em Jerusalém. Entramos pela porta do Peixe. Junto a ela, erguia-se a Torre Antônia, o edifício mais odiado por todos nós: era o quartel general da guarnição romana e o palácio do governador Pôncio Pilatos, quando visitava a cidade. 

Pedro: Cuspam e vamos embora daqui! Minhas tripas se revolvem só de ver a águia de Roma!
João: Porcos invasores, eu os estrangularia de dois em dois para acabar mais rápido!
Jesus: Não estrangule ninguém agora, João e vamos procurar um lugar onde pernoitar. Com tanta gente, acabaremos dormindo na rua!
Pedro: Sigam-me companheiros! Tenho um amigo perto da Porta do Vale, que é como um irmão. Chama-se Marcos.

Pedro: Puxa, Marcos, até que enfim o encontrei! Amigo, amicíssimo, toca aqui!
Marcos: Pedro?!... Pedro pedrada, o maior pilantra de toda Galiléia! Mas, o que faz você aqui, condenado? Está fugindo da polícia de Herodes? Rá, rá, rá!
Pedro: Viemos celebrar a Páscoa em Jerusalém como fiéis cumpridores da lei de Moisés. Rá, rá, rá!
Marcos: Deixe de conversa, Pedro, aposto que algum contrabando você deve estar trazendo de Cafarnaum!
Pedro: Mas é claro, trouxe uma dúzia de amigos de contrabando. Camaradas: este é Marcos. Gosto mais dele do que da minha barca Clotilde, sem exagero! Marcos, todos estes são de confiança! Formamos um grupo. Estamos nos organizando para fazer alguma coisa. Olha, este moreno é Jesus, o mais bagunceiro de todos nós. Este das sardas é Simão...
Marcos: Bom, bom, deixe as apresentações e vamos entrar. Tenho meio barril de vinho suplicando para que uma dezena de galileus o beba!
Pedro: Beber agora? Está louco? Acabamos de chegar!
Mateus: E o que importa isso? Estamos cansados da viagem... Podemos... podemos brindar porque os ladrões da Samaria não nos quebraram o espinhaço!
João: Que coisa, esse Mateus só pensa em beber!
Pedro: Seria melhor se pudesse nos dizer onde podemos encontrar um lugar para passar a noite.
Marcos: Pois vamos à pousada de Siloé! Ali podem meter-se durante esses dias! É um lugar grande e tem um bom cheiro de romã, como gostam os galileus! Venham, vamos lá! Mas não se separem. Há muita gente. Qualquer um se perde nesse tumulto.

Nos dias da Páscoa, Jerusalém parecia uma caldeira enorme onde borbulhavam os 40.000 moradores da cidade, os 400.000 peregrinos que vinham de todas as partes do país e os imensos rebanhos de cordeiros que se amontoavam nos átrios do templo esperando ser sacrificados sobre a pedra do altar...

Tomé: Um momento, um momento! Antes de procurar po-po-pousada, temos de visitar o templo. Pri-pri-primeiro as coisas de Deus. Quem não vai ao templo quando chega a Jerusalém, se-se-seca a mão direita e a li-li-língua fica pregada.
João: Tomé fala por experiência própria...
Pedro: Sim, companheiros, vamos ao templo saudar os querubins.
João: E dar graças porque chegamos sãos e salvos!
Jesus: Isso. E que o Deus de Israel abençoe a todos nós que viemos esse ano para celebrar a Páscoa!

Milhares de peregrinos se atropelavam para passar sob os arcos do famoso templo de Salomão. No ar ressoavam os gritos, as rezas e os juramentos, misturados ao odor penetrante da gordura queimada dos sacrifícios. Junto aos muros, ficavam os cambistas de moedas e toda classe de camelôs gritando suas mercadorias... Aquilo parecia a torre de Babel...

Marcos: Esses vendedores malditos! Arrebentam os ouvidos da gente...! Ei, vocês, vamos ao átrio dos israelitas!... Certamente já estarão subindo a escadaria.
João: Quem são aqueles lá, Marcos?
Marcos: Os penitentes. Vêm cumprir as promessas que fizeram durante o ano... Olhem eles lá!

Um grupo de homens, vestidos de saco e jogando punhados de cinza na cabeça, subiam de joelhos as escadarias do átrio. Em seus pescoços e braços penduravam grossos rosários de amuletos. Seus joelhos tornaram-se calejados como os dos camelos, depois de tanto se esfregarem sobre as pedras...

Pedro: E para que fazem isso, Marcos?
Marcos: Jejuam sete dias antes da festa e agora se apresentam aos sacerdotes.
Jesus: E estes sacerdotes não explicaram a eles que Deus prefere o amor aos sacrifícios?
Marcos: É o que eu sempre digo também. Querem jejuar? Pois que lavem a cara e se penteiem bem para que ninguém fique sabendo o que estão fazendo, não é verdade Jesus?... Venham, vamos subir...

Subimos a escadaria. Lá, na esquina, em frente ao átrio dos sacerdotes, um coro de homens, com a cabeça coberta com o manto negro das orações, rezava sem parar os salmos da congregação dos piedosos. Eram os melhores fariseus de Jerusalém...

Pedro: Pois olhem esses aí... Parecem maritacas, repetindo a mesma coisa sem parar. Não sei como não travam a língua...
Marcos: Dizem que estão rezando a Deus, mas com o rabo do olho estão bisbilhotando tudo...
Jesus: Isto é o que procuram: que as pessoas prestem atenção neles. Se buscassem a Deus, rezariam em segredo, com a porta fechada.
Marcos: Ouçam, olhem só quem vem lá...!

Ao sair, quando íamos atravessar a Porta Formosa, ouviu-se soar as trombetas e a multidão se afastou para um lado... Em seguida se formou uma fila de mendigos junto ao arco da porta. Então apareceram quatro levitas, carregando uma liteira nos ombros. Detiveram-se junto aos mendigos e descansaram a liteira no chão... Abriram as cortinas e José Caifás, o sumo sacerdote daquele ano, desceu lentamente, vestido com uma túnica branca... Com seus olhos de coruja, olhava inquieto de um lado para o outro. Queria que o povo o visse dando esmola. Mas não queria correr nenhum risco. No ano passado, durante a festa, um fanático tinha lhe atirado um punhal...

Mateus: Olhem só a cara desse sem-vergonha!
Tomé: Não diga uma coisa dessas, Ma-ma-mateus. É o sumo sacerdote de-de-de Deus.
Mateus: Que sumo sacerdote que nada! Esse tipo só quer que falem dele...! Olhe o que está fazendo...

Caifás se aproximou dos mendigos e lhes distribuiu denários como quem reparte doces para as crianças... Com uma mão dava a esmola e com a outra mostrava o cordão de ouro, símbolo de seu cargo, que os mendigos beijavam com gratidão...

Jesus: Se fosse sumo sacerdote de Deus, não deixaria que sua mão esquerda soubesse o que faz a direita. Esse não é mais que um hipócrita.
Pedro: Natanael, Jesus, André... vamos embora! Já está ficando tarde e ainda não temos onde dormir!
Marcos: Não se preocupem tanto com a pousada. Se não tiver lugar em Siloé, vamos para Betânia. Lá existe o acampamento dos galileus. Mas agora, vamos beber o meio barril que ofereci, ou se não, os denuncio à polícia romana!

Marcos: Um brinde por esses treze compatriotas que viajaram desde a Galiléia para visitar a casa deste humilde mercador de azeitonas!
Pedro: Espere aí, Marcos, que não viemos aqui para ver você, seu pilantra. Viemos por Jerusalém... Um brinde pela cidade santa de Jerusalém...
Marcos: Pedro, não se iluda. Desta cidade não sobrou nem o “s” de santa. “O templo de Jerusalém, o templo de Jerusalém...!” Sabem o que dizem os que vivem aqui? Que no templo de Jerusalém está guardado o maior tesouro de fé do mundo... E sabem por quê? Porque todos os que vêm visitá-lo, perdem a fé e a deixam ali! E se fosse só o templo...! Olhem, estão vendo aquelas luzes?...  são os palácios do bairro alto... Olhem depois os barracos de Ofel e as casinhas de barro junto à Porta do Lixo... Um formigueiro de camponeses que veio buscar trabalho na capital... E o que encontraram foi a miséria e a febre negra. Esta cidade está podre, é o que eu digo, pois eu a conheço.
Jesus: Sim, Marcos. Está construída sobre areia. Acabará se afundando.
Tomé: Dizem que os alicerces de Jerusalém são de rocha pu-pu-pura.
Jesus: A justiça é a única rocha firme, Tomé. E esta cidade foi erguida sobre a ambição e as desigualdades...
Marcos: Bom, rapazes, agora sim temos de ir caminhando para Betânia. Vamos!

As ruas estavam abarrotadas de gente e animais. Já se sentia o cheiro dos ázimos nos fornos de pão. Sentíamos também o cheiro dos perfumes das célebres prostitutas de Jerusalém que, sem esperar a noite, se exibiam muito pintadas junto ao muro dos asmoneus... Em todas as esquinas do bairro baixo se apostava nos dados e se jogava o reizinho. As tabernas estavam repletas de bêbados e as crianças saíam para roubar as sobras das mesas... Saímos pela muralha do Oriente. Atravessamos o riacho do Cedron, que na primavera escoava muita água... Subimos o Monte das Oliveiras e chegamos a Betânia, onde os galileus sempre encontravam guarida para passar os dias da Páscoa... Atrás ficava Jerusalém, cheia de luzes e ruídos. A fome, a injustiça e a mentira guardavam, sonolentas e satisfeitas, as portas muradas da cidade do rei Davi.    
  

A viagem a Jerusalém, por ocasião das grandes peregrinações de Páscoa, era feita a pé. Cafarnaum está separada de Jerusalém por uns 200 quilômetros, com o que seguramente Jesus e seus companheiros de caravana fariam o trajeto em quatro ou cinco dias de caminhada. Quando já se aproximavam da cidade santa os peregrinos tinham o costume de cantar os chamados “salmos das subidas” (Salmos 120 a 134). Entre os mais populares estava o que ainda hoje cantamos: “que alegria quando me disseram: Vamos à casa do Senhor... Nossos pés já estão pisando seus umbrais, Jerusalém...” (Salmo 121).

Jerusalém (seu nome significa “cidade de paz”: Paz = “shalom”) é uma das cidades mais antigas do mundo. Está construída sobre uma meseta rochosa, flanqueada por dois profundos vales: o do Cedron e da Geena. Mil anos antes de Jesus nascer, Jerusalém foi conquistada dos jebuseus pelo rei Davi e se tornou a capital do reino. Ao longo da história, Jerusalém foi destruída total ou parcialmente em mais de 20 ocasiões. Uma das destruições mais terríveis aconteceu quinhentos e oitenta e seis anos antes de Jesus, quando os babilônios a arrasaram até os alicerces. Outra, setenta anos depois da morte de Jesus. Neste caso, pelas mãos das tropas romanas para sufocar a insurreição dos zelotas. Jerusalém era – e ainda é hoje – uma cidade rodeada de muralhas, nas quais se abriam uma dúzia de portas. As numerosas guerras e destruições suportadas pela cidade fazem com que na atual Jerusalém se superponham zonas e construções mais ou menos antigas com outras mais recentes. No entanto, são inumeráveis as ruínas autênticas do tempo de Jesus. Jerusalém foi desde o tempo dos profetas, até os escritos do Novo Testamento, o símbolo da cidade messiânica, da cidade em que vive Deus, da cidade onde ao final dos tempos se congregarão todos os povos para a festa do Messias (Is 60, 1-22; 1-12; Mq 4, 1-5; Ap 21, 1-27). A Jerusalém é dado também o nome de Sion, por estar construída sobre um pequeno monte que com esse nome.

Jerusalém era capital do país e o centro da vida política e religiosa de Israel. Calcula-se que nos tempos de Jesus viviam dentro das muralhas umas 20.000 pessoas e fora delas, na cidade que ia se estendendo pelos arredores, entre 5.000 e 10.000 habitantes. (A população total da Palestina era de 500.000 ou 600.000 habitantes). Nas festas da Páscoa chegavam a Jerusalém uns 125.000 peregrinos, com o que a cidade ficava abarrotada de gente. As multidões de visitantes – nacionais e estrangeiros – multiplicavam os negócios e seus lucros, favoreciam todo tipo de revoltas e tumultos e convertiam a cidade em uma autêntica maré humana, na qual a gente do campo ou dos povoados pequenos devia ficar surpresa e confusa.

Dentro das muralhas, entre as grandes construções da cidade, destacava-se o templo, edifício descomunal e luxuoso que equivalia por sua superfície à quinta parte da extensão de toda a cidade murada. Isto pode dar uma idéia de tão impressionante construção, centro religioso do país e sede de uma potência econômica de primeira ordem. Encostada à parte norte do templo, estava a Torre Antônia, fortificação murada, que nos tempos da dominação de Roma servia como quartel de uma guarnição romana. Da Torre Antônia, os soldados vigiavam continuamente a explanada do templo, que se comunicava com a torre através de duas escadas. Esta vigilância aumentava nos tempos da Páscoa, quando a movimentação de pessoas no templo era maior que de costume.

Marcos é mencionado pela primeira vez no livro dos Atos dos Apóstolos (12, 25), acompanhando Paulo em sua viagem de Jerusalém a Antioquia. Era primo de Barnabé, outro companheiro de Paulo em suas viagens. Em diferentes ocasiões Marcos – seu nome inteiro era João Marcos – aparece junto a Paulo e também junto a Pedro, que lhe tinha tanto carinho, que o chama em uma carta de “seu filho” (1Pd 2, 13). Sabemos, por vários dados do Novo Testamento, que Marcos era de Jerusalém, onde vivia sua mãe, que Pedro foi amigo dele e de sua família e que os primeiros cristãos se reuniam habitualmente em sua casa (At 12, 12). Desde o século II foi considerado como o autor do segundo evangelho. Baseando-se em tudo isso, Marcos aparece no relato como um cidadão de Jerusalém e amigo de Pedro. É um homem expansivo, alegre e prático.

Em torno do templo de Jerusalém abundavam sempre e, especialmente nos dias de Páscoa, homens e mulheres que cumpriam promessas religiosas, mendigos que pediam esmola, multidões que oravam e faziam penitências. O que Jesus ensina sobre a esmola, o jejum ou a oração neste episódio pode ser resumido em algo bem simples: uma crítica ao exibicionismo, ao palavrório desmedido, ao desejo de chamar a atenção que tinham muitos dos que acreditavam serem religiosos. Era costume, por exemplo, que a hora da oração da tarde fosse anunciada com o soar de trombetas. Alguns fariseus preparavam tudo para que, no instante em que se ouvisse este chamado, se encontrassem – como que por acaso – no meio da rua e assim tivessem que rezar diante de todo mundo e as pessoas os tomassem por muito piedosos. Criticando hipocrisias deste tipo, Jesus fala de rezar em segredo, com a porta fechada, de dissimular quando estiver jejuando e de dar esmola sem apregoar aos quatro ventos.

Jerusalém era uma cidade formosa, grande, com bonitos e luxuosos edifícios, famosa em todo o mundo antigo. Mas no meio de todo seu luxo, junto às casas dos poderosos comerciantes e das famílias ricas, aglomeravam-se os casebres dos pobres artesãos que ganhavam apenas para seu sustento, os bairros dos assalariados, que praticavam ofícios mais ou menos mal vistos e subsistiam com dificuldade. Sem falar dos mendigos, que enchiam as ruas e os arredores da cidade. No episódio, Jesus compara esta Jerusalém de ricos muito ricos e pobres muito pobres com uma cidade edificada sobre a areia (Mt 7, 24, 27). Trata-se de uma parábola de advertência: para Deus é intolerável essa desigualdade. Se não há justiça não há alicerces firmes, e uma sociedade assim corrompida terminará vindo abaixo. Jesus denuncia os grandes responsáveis por esta situação: os chefes, os sacerdotes, os homens religiosos, que alienam o povo com uma falsa idéia de Deus para assim manterem sua situação privilegiada.

(Mateus 6, 1-18)



50

A TABERNA DE BETÂNIA




A pouca distância de Jerusalém, do outro lado do Monte das Oliveiras, está Betânia, um povoado pequeno e branco, rodeado de tamareiras. Aliás, seu nome quer dizer isso mesmo: terra das tâmaras. Quando os galileus iam a Jerusalém, terminavam sempre buscando pousada ali, em algumas das pensões de Betânia...

Lázaro: Marta, veja esse pão que você pôs no forno! Está cheirando a queimado!... E você, Maria, pare de falar e prepare outras seis esteiras...! Lá, lá, rá, lá, ri! Esta é a melhor época do ano, sim senhor! Jerusalém arrebenta de peregrinos!
Maria: E eu vou arrebentar os meus rins! Não faço outra coisa que agachar-me e levantar-me preparando esteiras... Escute, irmão, isso já está muito cheio. Não cabe mais nem uma agulha. Se alguém chegar pedindo pousada, diga que não, que não há mais lugar.
Lázaro: Mas, menina, você não sabe que quem diz não a um galileu fica com a língua seca e começa a sair lombrigas pelas orelhas? Dá azar dizer não a um galileu. Aqui há lugar para mais uns vinte, pelo que eu sei, e eu conheço esta taberna melhor que a palma de minha mão!... Epa, Marta, me ajude com esta sopa, que os clientes estão esperando!
Marta: Já vou, homem, já vou! Não tenho sete mãos!...

“A Palmeira Bonita” era o nome da taberna de Lázaro em Betânia. Nela se amontoavam, mulas, homens e camelos nas grandes festas que ocorriam em Jerusalém, três vezes ao ano. E, sobretudo, na Páscoa. Então, quando a taberna estava transbordando de gente e de animais e o ar ficava espesso com o cheiro de vinho, suor e estrume, era quando Lázaro se sentia completamente feliz...

Lázaro: Que me dizem dessa sopa, hein?... Sirvam-se, sirvam-se um pouco mais, que ainda tenho outro caldeirão cheio! Não quero que ninguém passe fome na minha casa! Aqui se dorme bem e se come melhor ainda! Depois, espalhem isso por todo o norte!

Lázaro era um homem gordo e alto, com uma tamanha barba que terminava onde começava sua abundante barriga. Tinha nascido na Galiléia, em Séforis, e foi muito jovem para a Judéia. Desde então, se encarregou de levantar aquele negócio. Não tinha mulher. Quando lhe perguntavam, dizia sempre que ele estava casado com sua taberna e retorcia com gosto seus bigodes negros.

Lázaro: Marta, vai preparando quatro cabeças de cordeiro!... Estes conterrâneos querem provar a especialidade da casa!
Marta: Vou avisando que demora um pouco para ficar pronto. Não posso estar em toda parte ao mesmo tempo...
Lázaro: Não tenha pressa, mulher, não se afobe...
Marta: Você não tem pressa, mas estes aí estão com fome. E eu não gosto de fazer as pessoas ficarem esperando...
Lázaro: Prepare as cabeças de cordeiro e cale essa matraca. Se eles não quiserem, a gente mesmo manda para dentro...
Marta: Mas você acabou de comer Lázaro! Parece um saco sem fundo!

Marta, a irmã mais velha de Lázaro, era uma mulher forte, de braços robustos e pernas ágeis. Trabalhava na pensão fazia já alguns anos, desde que ficara viúva. E trabalhava muito. Lázaro confiava plenamente e gostava muito dela. Desde que Marta começou a ajudá-lo na taberna, o negócio cresceu como a espuma do vinho ao fermentar... Maria, a outra irmã de Lázaro, era muito diferente...

Maria: Ai, Lázaro, ai...!
Lázaro: O que foi, Maria?
Maria: Você nem sabe o que me contou o Salim, o mercador de camelos que acaba de chegar... Diz que por Samaria encontrou-se com uma dezena de ladrões. Levavam uma faca na boca e saiam debaixo das pedras, como caranguejeiras...!
Lázaro: Conversa, conversa...
Maria: Mas, Lázaro, imagine se algum dos que chegaram ontem do norte for um deles!... Há um manco que não me cheira nada bem...
Lázaro: Se é manco, como pode ser ladrão, Maria?
Maria: Sobram-lhe as mãos, Lázaro! Esse homem é muito estranho, olhe o que estou dizendo. Estive observando seu casaco e lá no fundo brilhava uma coisa... Não será desse bando? Esse mercador de camelos que eu falei, me contou que esses ladrões procuram jóias...
Lázaro: Bom, pois se é isso o que procuram, vão sair com as mãos abanando. Aqui a única coisa que encontrarão são caldeirões de sopa e ratos!
Maria: Lázaro...
Lázaro: O que é, Maria? Não me assustam suas histórias de ladrões.
Maria: Não, não é isso... Olhe, esse mercador de que falei... eu acho que seria um bom marido para Marta, não acha?... Parece muito honrado... E tem as mãos grandes e fortes. Saberia defendê-la...
Lázaro: Defendê-la de quem? Marta sabe se defender sozinha!... Vamos, chega de fuxico. Já preparou as esteiras que eu mandei?
Maria: Ui, tinha me esquecido...! Conversando com o mercador de camelos...
Lázaro: Que diabo, você esquece de tudo! Corre prepará-las! Anda, corre!

Maria era a outra irmã de Lázaro. Tinha os olhos grandes e um pouco vesgos, como dois pássaros soltos que iam atrás de tudo o que viam. Era feia, mas tão alegre, que pouco tempo depois de estar conversando com ela, a gente só tinha olhos para sua boca, que sorria sempre. Seu marido a tinha abandonado há alguns meses. E desde então, também trabalhava com Lázaro na taberna.

Lázaro: Maria, vai preparando mais esteiras, além daquelas que lhe disse! Aí vêm outros galileus!

Era pouco mais de meio-dia quando chegamos à Palmeira Bonita. Em Jerusalém nos disseram que lá poderíamos encontrar pousada. Chegamos cansados da caminhada, cheios de pó e com as tripas vazias. Quando nos aproximamos da taberna, Lázaro saiu para nos receber à porta...

Lázaro: Ei, vocês, quantos são?
João: Conte, conte... todos os que você vê aqui...
Lázaro: Seis, oito, doze... treze. Treze: dizem que este número dá azar.
Tomé: É o que eu di-di-disse.
Lázaro: Mas para mim um galileu nunca trouxe má sorte! Ao contrário!... São das bandas de lá, não?
Pedro: Quase todos. Bom, este do lenço amarelo, não. E o de sardas, também não.
Tomé: Eu sou da Judéia, tam-tam-também.
Jesus: Bom, amigo, há lugar para nós ou não?
Lázaro: Pois é claro que sim, galileus, claro que há! Onde cabem sete ovelhas, cabe um rebanho inteiro, não é assim? Além disso, vocês chegaram na hora de fincar os dentes em umas cabeças de cordeiro que estão saindo. Ó? Estão sentindo o cheiro?... Outros clientes iam comê-las, mas não tiveram paciência de esperar até que os miolos ficassem bem macios...! Estava escrito no livro dos céus que essas cabeças iriam parar na pança de vocês! Vamos, entrem!

Quando entramos na taberna de Lázaro, Marta estava recolhendo as sobras de comida que tinha sido servida pouco antes a quatro dezenas de conterrâneos. Pelos cantos do amplo pátio ainda ficaram alguns bebendo e jogando dados. Os bodes mordiscavam pedaços de pão no chão e um camelo passava lentamente com suas corcovas diante de nossos olhos...

Lázaro: Ei, Marta, prepare também uma panela de grão-de-bico! E traga o vinho!... Chegaram mais fregueses e estão com fome!... E você, Maria, venha cá correndo!... Sentem-se por aí, camaradas, a comida já está saindo... Bom, e contem-me, que novidades trazem da Galiléia? Quando vão cortar o pescoço de Herodes? De onde estão vindo agora?
João: De Cafarnaum. Nos juntamos lá para vir celebrar a Páscoa.
Pedro: E conte-nos você o que há por Jerusalém. Vimos muitos soldados...
Lázaro: Todos os anos é a mesma coisa... Mas este ano há mais guardas que ratos... E cada um tem quatro olhos na frente e outros quatro atrás... Temos de andar com muito cuidado!
Maria: Como, Lázaro?... Quantos vieram?
Lázaro: São treze, Maria. Vai preparar treze esteiras.
Maria: Mas, Lázaro, não sabe como está isso? Estão pisando uns nos outros...
Lázaro: Procure treze brechas onde Deus quiser, Maria. Mas antes atende estes compatriotas enquanto eu vou recolhendo os pratos por aí... E vocês, não dêem bola para esta minha irmã. Se se descuidam, os enreda em seu novelo e daí não saem mais.
Maria: De onde você é? Galileu, não é mesmo?
João: Sim. Vivo em Cafarnaum.
Maria: Ai, Cafarnaum! Foi lá que conheci um tal Panfílio... me contava cada coisa!... Dizia que Cafarnaum é uma cidade muito bonita e com mais jardins que a Babilônia, e tão grande que só um par de sandálias não dá para percorrê-la de uma ponta a outra. E me dizia também que no lago tem uns peixes assim de grandes, de quatro cores – bendito seja Deus –, e umas palmeiras assim de altas, que tapam o sol com suas folhas... Puxa vida, eu adoraria ira ao norte e conhecer tudo aquilo...! Mas, imaginem, compadres, a gente aqui, amarrada nessa taberna para tocar os negócios... Ah, mas quando eu ficar velha, vocês vão ver, então eu vou dar a volta no país inteiro, nem que seja montada nesse camelo. Então você é de Cafarnaum como Panfílio... E você, de onde é? Também é de lá?
Pedro: Não, eu sou de um lugar mais pra cima. De Betsaida.
Maria: Da grande ou da pequena? Esteve por aqui um tipo de Betsaida que andava me paquerando... Mas era vesgo, assim como eu. Bom, um pouco pior que eu. Não nos entendíamos. Quando eu olhava para um lado, ele olhava para o outro... era uma confusão só! Dois vesgos não podem se casar!... Escute, e você de onde é?
Jesus: De Nazaré.
Maria: De Nazaré? Ui, nunca tinha ouvido falar desse lugar!
Jesus: Eu também não, Maria, até ter nascido nele.
Maria: E onde fica isso?
Jesus: Longe, muito longe... Onde o diabo deu os três berros, e ninguém escutou...
Maria: Ai, que piada!
Jesus: Aquilo é muito pequeno, sabe? Não é como Cafarnaum. Mas as coisas pequenas também são importantes, não acha? Escute esta: O que é o que é: pequeno como um camundongo e guarda a casa como um leão.
Maria: Pequeno como um camundongo e... a chave! Adivinhei, adivinhei!
Jesus: Escute esta então: Pequeno como uma noz, sobe o monte e não tem pés.
Maria: Espera... uma noz sobe o monte... o caracol!... Rá, rá, rá, Outra, outra!
Jesus: Esta você não acerta. Escute bem: Não tem osso, nunca está quieta, e com mais fio que uma tesoura.
Maria: Não tem osso... Esta eu não sei...
Jesus: A sua língua, Maria, a sua língua que não se cansa de falar!
Maria: Ah, não, isso não vale, não... que engraçado!... Escute, como você se chama?
Jesus: Jesus.
Tomé: O cha-cha-chamam de mo-mo-moreno.
Maria: Está com alguma coisa na garganta? Se quiser, lhe dou uma receita: duas medidas de água e duas de erva-doce que já ficou de molho durante três dias. Faça gargarejos e a língua se solta para falar com gosto.
João: Essa aí já deve ter tomado muito deste xarope, não?

No fundo da taberna, Marta começou a ficar impaciente...

Marta: Lázaro, Lázaro! Mas você não percebe que Maria não pára de conversar e me deixa todo o trabalho que há na cozinha?... Diga-lhe que me ajude!
Lázaro: Que diacho de mulheres! Arrumem-se como bem entenderem!

Então Marta se aproximou de onde estávamos sentados. Sobre o seu vestido de listrado tinha um avental grande, engordurado, que cheirava a cebola e alho.

Marta: Olhem, vocês me perdoem, mas é preciso preparar comida para treze e se esta minha irmã não faz mais do que tagarelar, não vamos acabar nunca. Não falem mais com ela, para ver se ela vem me dar uma mão...
Maria: Marta, escute isso: “pequeno como um camundongo e guarda a casa como um leão”... Hein?... A chave!
Marta: Venha, Maria, pelo amor de Deus, senão não acabamos nunca...
Jesus: Mas, Marta, não se preocupe tanto. Temos fome e para boa fome não tem pão duro. Com qualquer coisa nos arranjamos. Não se aflija, não é necessário... Olhe, Maria, escute esta agora: pequeno como um pepino e vai dando gritos pelo caminho...

Maria ficou ainda um bom tempo conversando. Ria conosco e a gente ria com ela. Sua alegria contagiante era mais necessária que o pão e o sal. De qualquer forma, quando Marta nos trouxe aquelas cabeças de cordeiro que Lázaro tinha elogiado tanto, engolimos tudo em um segundo. Lembro-me que não deixamos nem os ossos.



Nos dias de festa era difícil encontrar alojamento em Jerusalém, tamanha a aglomeração de peregrinos. Reunia-se tanta gente que um ditado popular da época afirmava que um dos dez milagres que Deus realizava de seu templo era que todos coubessem na cidade. Embora fosse impossível que todos se alojassem nos albergues situados dentro das muralhas, tendo que ir alojar-se nos povoados vizinhos. Por outro lado, é improvável que acampassem ao relento, pois no tempo da Páscoa, as noites em Jerusalém, próxima do deserto, são muito frias. Sabe-se que assim como os diferentes setores da população tinham seus bairros fixos na capital, assim também os diferentes grupos de peregrinos tinham seus lugares habituais de hospedagem. Tudo leva a crer que o acampamento dos que vinham da Galiléia estava situado na parte ocidental da cidade, onde fica Betânia.

Betânia é um pequeno povoado situado a uns seis quilômetros a leste de Jerusalém, pouco além do Monte das Oliveiras, no caminho que vai para Jericó. Atualmente se chama também El-Azariye, em homenagem a Lázaro. No porão de uma igreja dedicada a Marta, Maria e Lázaro, conserva-se uma grande prensa de azeitonas e um poço da época de Jesus.

Em toda cidade israelita relativamente grande havia albergues para alojar os peregrinos que iam a pé ou as caravanas de comerciantes. Estas hospedarias – os hotéis daquela época – consistiam em um grande pátio cercado, com pequenos quartos ao redor, onde encontravam abrigo tanto os homens como as cavalgaduras e outros animais. Atualmente, nos países orientais há ainda hospedarias deste tipo, as chamadas “kans” (caravassares). Em Israel há uma construção antiga na cidade portuária de São João de Arce (Akko), lugar histórico durante o tempo das Cruzadas.

Em uma destas tabernas, cheia de desordem e algazarra em contínuo trânsito de gente, é que situamos o relato de Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria. Embora os evangelhos nos dêem poucos dados sobre os três, uma tradição piedosa bastante antiga, os apresenta como uma família de classe média, ou média alta, que recebia Jesus, em uma casa cômoda e tranqüila, como um conselheiro espiritual que lá iria quando estivesse cansado de se misturar com o povo. Esta imagem não tem base alguma nos textos evangélicos. Ao contrário, os dados históricos sobre as hospedarias que havia na região de Betânia, dão base para situá-los em outro marco: gente do povo, que vivia de seu trabalho e certamente, sem refinamentos. Sua amizade com Jesus era fruto do freqüente contato que tiveram com ele e seus amigos quando viajavam à capital. No relato, Lázaro aprece como um homem vitalista, expansivo e generoso, feliz com o seu trabalho, bom comedor e ainda melhor bebedor. Marta é viúva. Uma mulher prática, trabalhadora e séria. Maria, a irmã mais nova, – a quem o marido abandonou – é alegre, faladeira, espontânea, atrapalhada. Os três irmãos dedicam todos os seus esforços para tocar “A Palmeira Bonita”, que é seu negócio e seu lar.

O texto de Lucas que serve de base a este episódio serviu em muitas ocasiões para contrapor oração e ação, vida contemplativa e vida ativa e, inclusive, chegou-se a limitar a mensagem destas palavras aos religiosos: os de vida ativa, frente aos da clausura. No episódio procuramos evitar deliberadamente semelhante contraposição que não tem nada de cristã. Para o crente não há uma dupla alternativa. Enquanto falarmos de oração e ação como realidades separadas ou contrapostas, estamos separando a fé da vida. E isso não tem nenhuma base, nem na atuação de Jesus nem em sua mensagem.

O desafio para o cristão que luta pela libertação de seus irmãos é o de viver a oração na ação. Não se trata de orar por um lado e atuar por outro, mas de orar no próprio processo de libertação, de contemplar a Deus ali onde Ele está: no rosto do pobre. A coragem necessária para “dar a vida” pelo povo e a paciência necessária para acompanhar, por dentro, a caminhada dos pobres rumo à libertação, amadurecem na oração.

(Lucas 10, 38-42)

















































51
DUAS MOEDINHAS DE COBRE



Naquela manhã, bem cedo, subimos ao templo para rezar as orações de Páscoa, conforme o costume de nossos pais. Atravessamos o átrio dos gentios e chegamos à Porta chamada Formosa. Junto dela, como sempre, uma longa fila de mendigos e doentes levantavam suas mãos suplicando uma esmola...

Um mendigo: Pelo amor de Deus, uma ajuda para este pobre cego. Deus lhe pague, amigo, Deus lhe pague!
Uma mendiga: Forasteiros, olhem estas feridas e tenham pena de mim!

Judas, de Kariot, foi o primeiro a pegar um par de moedas para dá-las àquela mulher que nos mostrava suas pernas cheias de úlceras.

Mendiga: Que Deus lhe dê vida longa e saúde!
Judas: Vamos Natanael, não seja pão-duro. Dê alguma coisa também para esta infeliz.
Natanael: Não é que não queira dar, Judas. Meu coração fica mais enrugado que uma uva passa quando vejo esta miséria. Mas...
Felipe: Mas, o que? Vamos lá, Nata, afrouxa esse bolso. Nós estamos mal, mas estes infelizes estão pior.
Natanael: Não sei, Felipe. Mas não é esse o problema.
Felipe: E qual é o problema?
Natanael: O que se resolve com um par de moedas, diga-me?
Felipe: Menos se resolve não dando nada.
Natanael: E a quem devo dar a esmola, Felipe? A esta com as pernas podres, àquele que está inchado como um sapo, ou ao cego lá de baixo, ou...?
Outra mendiga: Pelo amor de Deus, olhem estas chagas e tenham pena de mim!
Felipe: Você pensa muito, Nata. Pegue um denário e dê a esta pobre mulher. Ao menos hoje poderá jogar alguma coisa quente nas tripas.
Natanael: Hoje, Felipe, hoje. E amanhã, heim?
Felipe: Amanhã passará outro por esta porta e lhe dará outro denário.
Natanael: E se não der...?
Felipe: Bem, Nata, o que vamos fazer? Ninguém consegue carregar o mundo nas costas.
Natanael: Nós estaremos dormindo tão tranqüilos e esta infeliz aqui morrendo de fome.
Felipe: Está bem, você me convenceu. Então dê dois denários pra ela...
Natanael: E depois de amanhã, Felipe...?
Felipe: Ah, vai caçar sapo, Natanael! Você não quer soltar um cobre e ainda fica me atazanando! Eu não sou o tesoureiro do céu!
Judas: Ei,vocês, o que acontece?!... Vamos depressa!
Natanael: Já vamos, Judas, já vamos...

Passamos pela Porta Formosa e entramos no átrio das mulheres, onde está o Tesouro do Templo. Ali, debaixo de um pequeno pórtico, encontravam-se as caixas de bronze onde os israelitas entregavam os dízimos. Naqueles recipientes também se recolhiam as oferendas voluntárias das pessoas. Durante os dias da Páscoa, eram muitos os peregrinos que vinham dar suas esmolas para o culto e a manutenção do Templo. Quando nós chegamos, um rico comerciante, com turbante vermelho e sandálias de seda, ia deixando cair no recipiente, um a um, um punhado de siclos...

Rico: Para que nosso Templo brilhe sempre como brilham estas moedas de prata, amém!
Uma mulher: Psiu, vizinha! Sabe quem é aquele ali? Um dos sobrinhos do velho Anás. Vive no litoral e toca um negócio de vacas por lá... Olhe só o anel que ele tem! Só com o valor desse anel daria para matar a fome de todos os infelizes que estão ali junto à porta.
Outra Mulher: Pois então olhe aquele outro que está ao lado dele... aquele que está vestido de grego...!
Mulher: Ele não é o filho do mercador Antonino?
Mulher: Ele mesmo. Um bom homem este, sim senhor.
Mulher: Um o que? Rá! Bem se vê que você não o conhece! Ele trata melhor seus cavalos do que seus empregados!... Grande safado!
Um homem: Para que nunca falte incenso no altar de Deus, amém!
Uma mulher: Olhe só esse! O que falta por aqui é pão na barriga dos pobres!
Outra mulher: Cale a boca, menina! Como pode dizer isso? Estou achando que você está perdendo a fé. Parece que esse seu noivo anda metendo umas idéias muito esquisitas na sua cabeça...

Nós também nos aproximamos para lançar nossas esmolas no Tesouro do Templo...

Felipe: Olhem só o tamanho da fila, companheiros. É do tamanho do rabo do Leviatã!
Judas: Isso vai longe. Acho que daqui não saímos nem pela hora nona.
Felipe: E ainda mais com este sol! Vai, Natanael, ponha logo um trapo na cabeça, que sua careca já está brilhando. Você vai acabar pegando uma insolação... Mas, o que é isso? Quem está me empurrando?... O que acontece aqui...? Não empurrem, caramba, que não há pra onde se mexer!... Estou com o cangote desse cara encostado bem na minha boca e ainda por cima...! Mas quem, diabos, está me fazendo cócegas...?
Natanael: Olhe só, Felipe. É esta senhora, querendo furar a fila de qualquer jeito...!
Viúva: Vamos lá, meu filho, deixe-me passar... anda, vamos, deixe-me passar...
Felipe: Escute aqui, velha, ponha-se na fila como todo mundo e pare de empurrar...
Um homem: Mas veja só essa velha enrugada! Quem ela pensa que é?
Viúva: Seja bonzinho, meu filho, vamos, deixe-me passar, sim? É que meus netinhos estão me esperando em casa.

Um velha magrinha foi abrindo caminho no meio de todos. Seguramente era viúva, porque estava vestida de preto e tinha o rosto coberto por um véu também preto. Sem se importar com os protestos, a mulher se adiantou e conseguiu se pôr em frente da caixa das oferendas...

Um homem: Qual é a dessa velha? Chega por último e quer ser a primeira!
Uma mulher: Muito bem, se você já aprontou essa presepada, pelos menos ande depressa...!

A viúva começou a procurar o lenço onde guardava suas moedas...

Viúva: Espere um pouco, meu filho... Onde será que coloquei o dinheiro?

E procurava nos bolsos da saia, no cinto, no xale... mas não encontrava seu lenço. As pessoas começaram a se impacientar.

Um homem: Muito bem, vovó, você veio para dar esmola ou para rezar diante do cofre para ver se lhe dão algum?
Uma mulher: Ei, você, tire esta velha daí! O que ela está pensando? Que vai fazer a gente ficar esperando até amanhã?
Viúva: Mas, onde é que eu pus o dinheiro, meu filho?... Ou será que me roubaram?... Nessa época tem muita gente má na cidade, muitos ladrões!
Um homem: Quem é que vai lhe roubar alguma coisa, saco de ossos? Nem o diabo quer nada com você!
Outro homem: Se não sabe onde diabos guardou o dinheiro, vai tomar um ar fresco e volte quando encontrar!
Uma mulher: Tirem essa bruxa daí!

Os protestos foram subindo de tom. Mas a viúva não perdeu a calma por causa disso. Continuou buscando e rebuscando seu lenço até que por fim o encontrou em uma das mangas do vestido...

Viúva: Aqui está, aqui está. Por isso é que meu pai sempre dizia: dinheiro bem guardado é dinheiro assegurado!
Um homem: Vamos, velha, acabe de uma vez com isso, e vai embora...!

A viúva desatou com cuidado o lenço e dentro dele apareceram os dois cêntimos de cobre que vinha oferecer...

Um comerciante: Tanta história para dois miseráveis cêntimos! Vai embora daqui ranhosa, e não emporcalhe o Tesouro do Templo com suas moedinhas sebentas.
Viúva: O que você disse, meu filho? Fale mais alto que eu estou um pouco surda!
Comerciante: Que é melhor engolir essas asquerosas moedas! Elas não fazem falta por aqui!
Viúva: Que eu engula as moedas?... Mas, o que você está dizendo, meu filho? Um netinho meu engoliu um dia um cêntimo e entupiu isso aqui, ó e...
Comerciante: Vai pro diabo, maldita velha! Já esgotou minha paciência. Vai, vai!
Viúva: Mas, meu filho, eu...
Comerciante: Estou dizendo para ir embora!

O homem agarrou a viúva por um braço e a empurrou para fora do pórtico. Os dois cêntimos rolaram sobre as pedras do piso...

Comerciante:Vai lá pra junto da porta com os outros mendigos, que é o seu lugar!

Mas a viúva, agachada no chão, procurava as duas moedinhas que haviam caído...

Jesus: Aqui está uma, vovó...! Pegue!
Viúva: Ai, meu filho, obrigada, é que estou mais cega que uma topeira... Estes meus olhos...!
Judas: Aqui está a outra!
Viúva: Ai, quantas vezes obrigada devo dizer a vocês!... Que moços tão educados!...
Jesus: Guarde seus agradecimentos, vovó, senão vão tirar-lhe a vez. Vamos, vocês, abram passagem...

A viúva se aproximou novamente da caixa das oferendas, acompanhada por Judas e Jesus, que lhe haviam devolvido as moedas de cobre...

Viúva: Vamos, meu filho, deixe-me passar, ande, dê um lugarzinho...
Comerciante: Outra vez?... Eu não disse para cair fora daqui, velha atravessada!
Jesus: E por que ela tem de sair, se é que se pode saber?
Comerciante: Porque ela já encheu as medidas.
Jesus: Ela veio dar sua esmola ao Templo, como você e todos nós!
Comerciante: Ela veio dar dois cêntimos ensebados que não servem nem para comprar a mecha de uma das velas do candelabro, está ouvindo?
Jesus: Pois olhe, esta velha atravessada, como diz você, vai jogar no cofre mais esmola que você.
Comerciante: Ah, sim? Não me diga! E como você sabe o quanto eu vou dar?
Jesus: Eu não sei. Mas estou certo de que você dará o que lhe sobra. E esta pobre viúva dá o pouco que tem para viver. A esmola dela vale mais aos olhos de Deus.
Comerciante: Ah, que gracinha este galileu! Aos olhos de Deus, aos olhos de Deus!... Acontece que as cortinas e os cálices do altar e os paramentos dos sacerdotes não se pagam com centavinhos de viúva, mas com muita prata e muito ouro.
Judas: E você não acha que existe algo muito atravessado nisso tudo?

Judas, de Kariot, se aproximou do comerciante...

Judas: O templo de Deus tem as paredes cobertas de ouro e mármore, enquanto os filhos de Deus morrem de fome aí fora... Não lhe parece que alguma coisa está muito errada?
Comerciante: O que me parece é que vocês estão se metendo naquilo que não lhes compete. O templo é um lugar santo e tudo o que se faz para embelezar o templo é pouco, porque Deus merece isso e muito mais.
Jesus: O verdadeiro templo de Deus é o homem. Deus não vive entre pedras, mas na carne de todos esses que estão gritando de fome junto à porta.
Comerciante: Era só o que me faltava ouvir! Já não há mais respeito pelas coisas sagradas nem pela religião!
Um homem: Maldição! Mas o que está acontecendo hoje por aqui? Primeiro a velha, agora vocês! Ei, chamem um levita para pôr um pouco de ordem nessa bagunça!...

Nesse momento passou um sacerdote perto das caixas das oferendas...

Sacerdote: Que confusão vocês estão aprontando por aqui, heim? Se não vão dar esmola vão para outro lugar e não incomodem mais!
Jesus: Vamos, vovó, jogue as moedinhas e volte para sua casa...
Viúva: Como você disse, meu filho?
Jesus: Disse pra jogar as moedas e voltar pra casa...
Viúva: Ah, sim, claro... as moedas... valha-me Deus, mas onde é que as coloquei agora...? Vocês as deram pra mim, não é mesmo?... Espere um pouco, meu filho, deixe-me ver onde as coloquei...
Jesus: Olhe, se quiser não ponha nada aqui. Dê essas moedas para aqueles mendigos da porta...
Viúva: Fale mais forte, meu filho, que eu estou surda e não entendo nada.
Jesus: Não, você não está surda, vovó. Os surdos somos nós que não queremos ouvir o grito de tantos que morrem de fome, enquanto a casa de Deus tem os baús cheios.
Sacerdote: Vamos, vamos, não se demorem que tem muita gente esperando!... Bendito seja Deus que sempre encontra almas generosas para sustentar o culto e o esplendor de seu santuário!

A viúva acabou encontrando suas duas moedinhas de cobre e as jogou no Tesouro do Templo. Depois foi embora devagarzinho pela rua dos tecelões, até sua humilde casinha onde vivia, lá no bairro de Ofél.



No tempo de Jesus, Jerusalém era um centro de mendicância. Como se considerava especialmente agradável a Deus o dar esmola em Jerusalém, isso fomentava ainda mais o número de mendigos. Os esmoleres se concentravam especialmente perto do templo, onde muitos deles não podiam entrar se padeciam de alguma das muitas enfermidades consideradas impedimento para estar na presença de Deus: leprosos, aleijados, doentes mentais etc.


Para a piedade judaica, a esmola era um ato muito importante. Jesus não se opôs à esmola. Ao contrário, em várias ocasiões fala em vender as próprias riquezas para dar o dinheiro aos pobres (Lc 12, 12, 33). O que Jesus critica é a atitude daqueles que dão esmola para serem vistos ou para encobrir a injustiça com que tratam seus trabalhadores. Em todo o mundo antigo, a esmola e a beneficência para com os pobres era uma forma de favorecer a igualdade entre os homens. Na atualidade, num mundo tão complexo economicamente como o que vivemos, a esmola, a beneficência, as “ajudas para o desenvolvimento” podem ser uma bela forma de encobrir as injustiças que não se quer resolver radicalmente. Quando a esmola substitui a justiça, deve ser rejeitada, Quando a esmola impede aquele que a recebe de crescer como ser humano, não é cristã. A ajuda benéfica sempre será necessária em momento de emergência, mas se não se ataca as causas das injustiças estruturais, que são a razão da existência dos pobres, esta “caridade” não faz outra coisa que perpetuar a pobreza. A esmola assim, portanto, não pode ser querida por Deus.


Junto ao átrio das mulheres estava o chamado “tesouro” do templo, no qual os israelitas entregavam oferendas para o culto. Na fachada exterior do átrio havia 13 cofres de madeira em forma de trombetas para recolher as oferendas obrigatórias e as voluntárias. Entre as obrigatórias estava o dízimo que todo israelita homem e maior de vinte anos pagava anualmente ao templo. No tempo de Jesus eram duas dracmas (dois denários, isto é, o salário de dois dias). Havia outras contribuições, também obrigatórias que deviam ser oferecidas para o culto: para o incenso, ouro, prata, rolinhas etc. As ofertas voluntárias eram de espécie diferente: para expiação de uma falta, para purificações etc. Nas festas havia maiores aglomerações no tesouro, pois pessoas de todo o país acorriam para cumprir seu dever religioso de sustentar o culto.

O tesouro do templo sempre teve fama de luxuoso e opulento. Os poderosos do país deixavam ali riquezas de valor incalculável, em objetos preciosos e também em dinheiro. O tesouro fazia também as funções de um banco. Muitas famílias depositavam ali seus bens, sobretudo as da aristocracia e as dos sacerdotes. Isto fazia do templo a instituição financeira mais importante do país. O edifício refletia riqueza e poder. Por qualquer entrada, tinha que se atravessar portões recobertos de ouro e prata. Tudo isso dá o exato valor ao elogio que Jesus faz à oferenda da viúva. O que ela jogou no tesouro foram uns cêntimos que não dava para pagar o pão necessário para se comer um dia. Ao engrandecer a generosidade da viúva, Jesus, fiel à tradição profética, está denunciando o luxo da chamada casa de Deus e, ainda mais, a segurança com que os ricos pensam em comprar com dinheiro a benevolência do Senhor. (Jer 7,1-11)

O verdadeiro Deus não se agrada com dinheiro. O templo de Deus é o homem (1Cor 3,16). E a melhor tradição da Igreja sempre foi crítica diante das riquezas dos templos: “A Igreja não é um museu de ouro e prata... Querem de verdade honrar o corpo de Cristo? Não permitam que ele esteja nu. Não o honrem (no templo) com vestes de seda e fora o deixam perecer de frio e nudez...” (São João Crisóstomo, homilia L 3 e 4)

(Marcos 12, 41-44; Lucas 21,1-4)







































52
AS DEZ DRACMAS




Pedro: Levantem-se, rapazes, que já é dia! Hummm... Ei, Felipe, Tomé, Judas!... Vamos, Natanael, não se esconda debaixo da esteira!... E você, Jesus, deixe de se fazer de surdo que eu já conheço bem esse truque!... Eia, vamos, apressem-se!
Tiago: Vai pro inferno, Pedro, você não deixa ninguém dormir! Durante a noite você ronca mais que um porco e agora se levanta antes dos galos!
Pedro: Pare de resmungar, cabelo-de-fogo e levante-se de uma vez.

Pedro nos despertou quando ainda brilhavam algumas estrelas no céu. E, resignadamente, todos nós fomos nos espreguiçando e nos acercamos de uma fonte que havia em um canto do pátio para jogarmos água fresca no rosto. Embora ainda fosse cedo, a taberna de Lázaro, em Betânia, já fervia com uma centena de peregrinos que a lotavam... Ao sair do pátio, passamos pelo fogão da taberna. Ali estava Marta, a irmã de Lázaro...

Marta: Bons dias, rapazes! E então, dormiram bem?
Pedro: Muito bem, sim, senhora! Agora, o que temos é um pouco de fome... bem, melhor dizendo, muita fome...!
Marta: Pois metam a mão e tirem um punhado de tâmaras deste barril. Estão aí para isso, para entreter a barriga...
Lázaro: Uff... Esta Dorotéia tem mais leite que a defunta Gracinha que criou todos os moleques de Betânia... Tome, Marta!... E então, amigos, querem provar? Está bem quente e com espuma!... Não existe leite melhor do que o desta cabra, que Deus lhe abençoe as tetas!
Pedro: E a nós a barriga! Sim, dê-nos um pouco para ver como está.
Marta: Sirva-os você, Lázaro, que eu tenho de preparar o pão. Já está amanhecendo e ainda nem amassei a farinha...

Lázaro encheu um caldeirão e nos ofereceu. O leite recém ordenhado da cabra Dorotéia foi passando de boca em boca entre admirações... Enquanto isso, Marta, com seu vestido de listras, arregaçado, amassava o pão, afundando seus dedos ágeis na farinha. Quando o último dos treze levantava o caldeirão de leite, lambendo-se de gosto, apareceu pelo fogão Maria, a outra irmã de Lázaro, com as lágrimas saltando-lhe dos olhos...

Maria: Lázaro! Marta!... Ai, ai, ai... ai! Ai, vejam só o que me aconteceu!
Lázaro: Mas estas são horas de se levantar, condenada? Deus do céu, que irmã o Senhor me deu! Ficou dormindo como sempre, não é?
Maria: Claro que não, Lázaro, claro que não, eu acordei com o primeiro canto do galo e logo em seguida me pus a trabalhar... Mas... mas veja só como trabalhar tanto traz má sorte... ai!
Marta: Vamos ver, o que aconteceu, Maria? Diga de uma vez!
Maria: Marta, ajude-me a procurá-la... Eu não a encontro em nenhum lugar... ai!
Lázaro: Mas, que diabos foi que você perdeu?
Maria: Uma das dracmas, uma das minhas dez moedas... Estive levando lenha do pátio para o fogão e quando me dei conta... Só tenho nove! Está me faltando uma!

Em nosso povoado, as mulheres penduravam nas orelhas ou nas bordas do lenço, sobre a fronte, dez moedas. Era uma lembrança do dote que por elas haviam pago seus pais, no dia do casamento, quando as entregaram em matrimônio. Para todas as mulheres de Israel aquelas moedinhas tinham um grande valor. Algumas, como Maria, de Betânia, não as tirava nem para dormir.

Lázaro: Está bem, não chore mais, mulher, ela já vai aparecer...
Maria: É que pode ser que ela caiu no monte de lenha e lá está muito escuro... Não se vê nada... Ai! Que dor tão grande! Ai, que desgraça, que desgraça!
Lázaro: Mas que mulher mais escandalosa esta!... Quando está contente é um furacão e quando fica triste é um terremoto... Não sei o que é pior...
Marta: Não chore mais, Maria... Depois a gente varre bem este lugar e você vai ver que ela aparece... Mas, deixe-me primeiro acabar de amassar a farinha. Eu já coloquei o fermento...
Maria: Ai, minha moeda!... Ai, minha moeda!...

Quando saímos da pousada de Lázaro, deixamos Maria chorando sem consolo por sua dracma perdida e Marta amassando o pão. Atravessamos o monte das Oliveiras e entramos na grande cidade de Jerusalém que, como sempre, rebentava de gente...

Pedro: Acabaram-se as azeitonas, companheiros!... Aqui vai a última!
Tiago: Mas em compensação ainda tem um pouco de vinho!... Bem, a não ser que este bebum do Mateus o acabe com dois tragos...!
Mateus: Cuide de sua vida e veja se me deixa em paz!
Natanael: Podemos comprar mais azeitonas... ou um pedaço de queijo, se quiserem.
Pedro: Claro que queremos, Nata. Vamos lá, abrindo os bolsos... em partes iguais!

Ao meio dia entramos em uma taberna da rua dos pisoeiros para comer alguma coisa. Os dias em Jerusalém iam passando e já nos restavam poucos antes de regressar a Cafarnaum... Também nos restava pouco dinheiro...

Pedro: E você, Felipe...?
Felipe: Eu o quê, Pedro?
Pedro: Vai soltando um par de asses... Vamos lá, não adianta ficar olhando pro outro lado... Ou será que você não tem fome?
Felipe: Fome sim, mas...
Mateus: Mas, como sempre não tem um cobre sequer, não é mesmo?
Felipe: Bem, sabe o que acontece, é que ontem um malandro me assaltou na rua e me roubou o pouquinho de dinheiro que me restava... ai, diacho, se eu pudesse agarrá-lo...!
Jesus: Um malandro, não é mesmo? Em que número você apostou, Felipe, vamos, confesse...?
Tiago: Pior que isso, Jesus. Sabe o que aconteceu com este cabeção? É que viram a cara de bobo que ele tem e o enrolaram nesse jogo de azar que tem ali na praça.
Natanael: Mas, Felipe, será possível? Se até os meninos de peito sabem que isso é a maior embromação?
Felipe: Bom, Nata, o que você queria?... Disseram-me que ia ganhar uma fortuna...
Tiago: E deixaram você mais limpo que Suzana quando saiu do banho!
Natanael: Então a mim não venha pedir um centavo sequer, está ouvindo? Não sustento babacas!
Felipe: O que eu vou fazer então, Nata?
Mateus: Você devia ir procurar a moedinha que a Maria perdeu. Com ela ao menos você teria para o café da manhã!
Felipe: Bah, nem me falem dessa maluca! Ontem foi aquele alvoroço por causa de um rato e hoje pela bendita moeda. Eu não sei como as arranja essa vesga palhaçona, mas sempre aparece com alguma confusão...
Jesus: Pois se eu contar o que ela me disse ontem à noite, vocês nem vão acreditar...
Pedro: Quem? Maria?
Jesus: É, esteve perguntando muito sobre nós e até me fez acreditar que gostaria muito de fazer algo pelo Reino de Deus.
Tiago: E você lhe disse que fosse tocar flauta em outro lugar.
Jesus: Não, eu lhe disse que não havíamos pensado nisso, mas que não era uma má idéia.
Pedro: Que não havíamos pensado no que, Jesus?
Jesus: Isso, que Maria poderia vir com a gente.
Pedro: Mas, você está louco, moreno? Meter mulheres no grupo?
Jesus: E por que não, Pedro? O que isso tem de mal?
Pedro: Não, não, não. Até aqui, tudo bem!... Mas onde já se ouviu falar que uma mulher participe de assunto de homem?
Jesus: Uma não. Seriam duas, porque Marta também está muito animada. E o gordo Lázaro, nem se fala! Eles três poderiam nos ajudar bastante aqui pelo sul.
Pedro: Lázaro, tudo bem. Mas mulheres não. As mulheres, no fogão, que é o lugar delas!
Jesus: E você cabelo-de-fogo, o que acha?
Tiago: Pois eu lhe digo que foi na hora errada que Adão resolveu tirar aquela soneca... Teríamos uma costela a mais e uns quantos problemas a menos. De mulher eu não quero nem saber. O que é que vem procurar essas duas empregadas domésticas entre nós, diga-me?
Jesus: Procurar, nada. Mas dar seu trabalho, sua opinião... No Reino de Deus todo mundo faz falta.
Tiago: Essa é sua opinião!... Mas, venha cá, Jesus, essa louca da Maria o que tem a dizer que nós não saibamos?... E Marta, a bochechuda, vai nos ensinar alguma coisa?... Não, não, moreno, jogue um pouco de água fria na cuca e esquece isso.
Jesus: E você, Mateus, o que acha? Também não quer abrir mão?
Mateus: Eu digo que com mulheres ou sem mulheres este grupo vai para o fracasso. Sim, e não digo isso por estar bêbado agora. Abram os olhos, senhores: somos um punhadinho de nada no meio de um montão de gente e de problemas. Que diabos podemos nós fazer, heim?... É isso que eu quero que vocês me digam.
Jesus: Pois veja você, isso Marta poderia lhe responder. Não a viram esta manhã? Não repararam como preparava o pão?
Felipe: Como é que se prepara pão, Jesus?... Como todas as mulheres: com água, farinha, azeite e...
Jesus: ... e um tico de fermento. E Marta sabe que com esse tico se pode estufar a massa. Isso ela podia nos ensinar muito bem.
Tiago: Mas a troco de que você vem agora com esta história de pão, Jesus?
Jesus: Que nós somos como este fermento, Tiago. E Deus como a mulher que amassa.
Felipe: Está querendo dizer que Deus é padeiro? Isso eu nunca ouvi na minha vida.
Jesus: Não, padeiro não. Padeira. As mulheres têm melhores mãos para a cozinha.
Tiago: Tome cuidado com o que você diz, moreno. Que eu saiba, Deus é macho!
Jesus: Ah, é? E quando foi que você o viu para saber se é macho ou fêmea?
Natanael: Ao menos as Escrituras dizem que Deus é varão, não?
Jesus: O que eu me lembro que dizem as Escrituras é que Deus nos criou à sua imagem. E nos criou homem e mulher. Se o homem é imagem de Deus, a mulher também é.
Pedro: Bom, bom, ... uma coisa são as palavras da Escritura e outra as pantorrilhas da Marta!
Felipe: E outra pior a língua da Maria!... Não me diga que Deus se parece também com essa apalermada!
Jesus: Pois veja que... pois veja que sim! Escute, Felipe: você não percebeu como estava hoje a Maria, desesperada pela moedinha que perdera?
Felipe: É isso que estou dizendo, Jesus, essa mulher nunca fica quieta.
Jesus: Nem Deus tampouco. Nisso ele se parece muito. Porque Deus também se desespera quando um filho seu se perde. E se põe a procurá-lo em toda parte. Acontece a ele o mesmo que à mulher: não basta ter somente nove dracmas. Se lhe falta uma é como se faltassem todas. Não quer perder nem uma só de suas moedas.
Pedro: Olhe, moreno, será que o vinho não lhe subiu à cabeça?

Quando o vinho, o pão e as azeitonas se acabaram, saímos da taberna. Demos umas voltas pela cidade e logo, ao pôr do sol, regressamos a Betânia... Já perto da pousada de Lázaro, começamos a ouvir a voz inconfundível de sua irmã Maria. Ao entrar ela veio nos receber, dançando...

Maria: Ei, vocês de Cafarnaum!... Olhem!... Encontrei minha moeda!... Olhem minha dracma, a que estava faltando!
Jesus: E onde estava, Maria?
Maria: Ali no monte de lenha. Tive que acender as lamparinas e varrer tudo muito bem... Mas a encontrei! A todo mundo que entra por esta porta eu dou a notícia!
Pedro: Não, não precisa entrar por porta nenhuma. De lá de Betfagé dá para escutar seus gritos...!
Jesus: Está percebendo, Pedro? Olhe como está contente! Deus também pula de alegria pela vida de cada um de seus filhos, baila por nós com gritos de festa. Igual à Maria.

Nós fomos nos deitar muito tarde, quando no pátio da Palmeira Bonita só se ouvia o canto dos grilos... A lua cheia da páscoa filtrava sua luz leitosa pelas frestas do telhado... Eu creio que naquela noite pensamos, pela primeira vez, que dormíamos no colo imenso de nossa mãe Deus...


Nos tempos de Jesus e ainda hoje em muitas zonas árabes, as mulheres se enfeitam com moedas. Costuravam-nas nos véus com que cobriam o rosto ou o cabelo, as incrustavam em diferentes adornos de cabeça ou as penduravam como colares ou pingentes. Essas moedas eram, em muitas ocasiões, o dote oferecido por seus pais ao casá-las. Portanto, era sua propriedade mais preciosa, até o ponto que havia mulheres que não se desprendiam delas nem para dormir. Que o adorno – o dote – fosse só dez moedas era sinal de pobreza. E este é o caso de Maria no episódio. Há trajes orientais aos quais se prega centenas de moedas de ouro ou de prata. Para uma mulher israelita perder uma moeda do dote era uma grande lástima, sobretudo pelo valor sentimental que tinha para ela cada uma dessas peças.

A mulher de Israel estava excluída da vida pública enquanto participação, decisão e responsabilidades. Na casa ocupava também um posto de segunda categoria. Sua formação se limitava aos afazeres domésticos: aprendia a cozinhar, fiar e costurar. Geralmente, não se lhe ensinava a ler. No campo e em ambientes populares, a mulher trabalhava junto com o homem na colheita dos frutos, em sua venda etc. Mas diante do marido, do pai ou do irmão, sua categoria vinha a ser a de uma servente. “A mulher – diz um historiador judeu do tempo de Jesus – é em todos os aspectos de menor valor que o homem”.

Esta discriminação da mulher, este machismo da sociedade israelita tinha várias justificativas. Uma delas era a moral. Pensava-se assim: a mulher é frágil e às vezes perigosa, por isso deve estar à margem da vida pública, onde pode suscitar tentações ou onde o homem pode abusar dela, dominado por suas paixões. Quando se insiste tanto na fragilidade da mulher em relação ao homem, como quando se ressalta seu poder para tentá-lo, se está estabelecendo uma radical desigualdade entre os dois. Jesus, tanto ou mais que com suas palavras, com sua atitude diante das mulheres das mais diferentes categorias e em ocasiões muito diversas, rompeu absolutamente com estas idéias e esta falsa moralidade. E assim chegou a aceitar mulheres em seu grupo porque – a partir da sua visão da vida – o homem não é mero joguete de seus instintos sexuais, mas pode ter pleno domínio sobre eles. E não só um domínio ascético, de repressão, mas um domínio que nasce de uma nova escala de valores. Homens e mulheres são realmente irmãos porque iguais diante de Deus, o reino da justiça é capaz de apaixonar o homem e a mulher por igual e, ao fazê-los, transformar suas vidas. Até o olhar se purifica (Mt 5,28). Em nenhuma esfera da vida social de seu tempo Jesus se mostrou tão evidentemente revolucionário quanto no trato que teve com as mulheres.

Ao tratar assim a mulher, Jesus não só a eleva de patamar, como a coloca em pé de igualdade com o homem e, mais ainda, ao fazê-lo nos dá uma imagem de Deus. Na parábola da dracma perdida e na do fermento, Jesus torna protagonistas de suas comparações duas mulheres. Deve ter sido surpreendente. Na história da dracma perdida a parábola quer dizer: Assim é Deus. Assim se alegra e assim se preocupa. Jesus está comparando os sentimentos de Deus com os de uma mulher. É uma forma de dizer que Deus não tem sexo, que tanto um homem quanto uma mulher no-lo revelam. Na parábola do fermento, Jesus fala do que acontece no Reino de Deus: Do menor – um pouquinho de fermento – Deus tirará o maior: muita massa para um pão crescido. Quer dizer, valendo-se de um grupo de pobres, Deus tocará adiante a história humana. Na parábola, quem põe em marcha o processo é uma mulher, a mediadora dessa transformação da massa é uma padeira neste episódio, Marta. As duas parábolas são um indicativo da enorme liberdade de Jesus ao falar das realidades do reino. A mulher está nelas em pé de igualdade com o homem. Se tudo isso é característico do evangelho, podemos afirmar, a partir desta mesma liberdade, que Deus é nosso Pai e também nossa Mãe. Ao fazer isso não só nos inspiramos em Jesus, como também encontramos base para isso no Antigo Testamento, onde o amor de Deus é comparado em diversas ocasiões com o de uma mãe (Is 49,14-15; 66,13).

Em muitos países existe, paralelamente a um acentuado machismo no trato e nas oportunidades sociais que se dão à mulher, um profundo amor à mãe. Para muitos homens e mulheres dizer que Deus é Pai é, ou não dizer nada ou fazer uma comparação bem mais negativa pelo que de abandono ou violência representa a figura paterna em muitas famílias. Por outro lado, dizer “Deus é Mãe” pode evocar para grande parte do nosso povo um imenso carinho, uma entrega absoluta, uma preocupação eficaz. Tudo isso, realidades teológicas de primeira ordem para compreender Deus.

(Mateus 13,33; Lucas 13,21 e 15,8-10)
























































53
JUNTO À PORTA DAS OVELHAS



Antes de sair o sol, deixamos a taberna de Lázaro em Betânia, a caminho de Jerusalém. Atravessamos a torrente do Cedron e nos aproximamos das muralhas que rodeavam o templo. Àquela hora, por uma das portas do norte, a que se chama Porta das Ovelhas, entravam os rebanhos para os sacrifícios de Páscoa...

Pedro: Escutem só, que alvoroço é esse? Esses aí berram mais que as ovelhas!
Felipe: É ali, perto da piscina...
Pedro: Vamos ver o que está acontecendo...

Bem perto da Porta das Ovelhas ficava o tanque de Betesda, que quer dizer Casa da Misericórdia. Havia duas piscinas grandes rodeadas de colunas brancas e cinco portais de entrada.

Rezadora: Ai, Altíssimo, faça o milagre! Faça o milagre! Senhor do céu, mande seu anjo! Mande-o depressa, Senhor!
Pedro: Ei, Tiago, o que está acontecendo com esta velha? Estará louca?... Olhe, olhe como seus olhos ficam brancos, repare só...
Tiago: Não seja idiota, Pedro. A velha é cega, não está vendo?
Felipe: Quanta gente e todos doentes! Aqui se juntaram as dez pragas do Egito!
Uma doente: Olhe aqui, asqueroso, cuspa pro outro lado, que suas porcarias estão me sujando!
Um doente: Eu cuspo onde bem quiser, aleijado do demônio!
Outra doente: Piedade de mim, Deus santo, piedade de mim, Deus santo, piedade de mim!
Pedro: Ei, Jesus, Tiago, Felipe... vamos entrar, vamos!

Ao cruzar por um dos portais vimos o tanque de Betesda. Dezenas de homens e mulheres doentes o rodeavam. Aleijados, cegos e coxos se amontoavam junto à borda da piscina, empurrando-se uns aos outros e olhando com ansiedade a água. O ar recendia enormemente a urina, pus e suor. As moscas, bêbadas de tanta sujeira, formavam uma nuvem negra sobre os doentes...

Tiago: Mas, que raios acontece aqui? Todos doentes, todos olhando a piscina... esperando o que?
Jesus: Ei, você, rapaz, venha cá, diga-nos por que há tanta...? Nem fez caso. Escute, você, conterrâneo, pode-me dizer o que...? Puff...!
Felipe: Não adianta, Jesus. No meio desta confusão toda não há quem se inteire de nada.
Pedro: Nem quem agüente o fedor! Vamos nos separar um pouco, senão com um desses empurrões nos mandam direto de cabeça na água...!

Então voltamos ao portal. A velha continuava ali, com os olhos voltados para o céu, chamando um anjo misterioso...

Rezadora: Ai, Altíssimo, faça o milagre! Depressa, depressa, o milagre!
Felipe: Rapazes, por que não perguntamos a ela?
Tiago: Já lhe disse que ela é cega, Felipe. Ela não sabe nem o que tem diante do nariz.
Felipe: Ela não vê, mas escuta. E fede. Pelo focinho dá para a gente sentir o que está acontecendo.
Rezadora: Milagre, milagre, milagre! Santo Deus, Santo Forte, faça um milagre. Que se mova, ainda que seja só um pouquinho! Que se mova, que se mova!
Felipe: Escute, velha, pare um pouquinho com esta cantilena!... E então me diga,  o que tem de se mover aqui?
Rezadora: E quem são vocês que me cortaram a inspiração?
Felipe: Diga-me, velha, que milagre é esse pelo qual você está gritando?
Rezadora: Chegue mais perto, meu filho, deixe-me tocar seu rosto... Você não deve ser daqui, não é mesmo?
Pedro: Nem os outros também... Ninguém de nós é daqui...
Rezadora: Claro, por isso perguntam... por isso não sabem... É o grande milagre do anjo de Deus! Dizem que agora ele vai baixar...
Felipe: Quem vai baixar?
Rezadora: O anjo, pode crer!
Pedro: E pra que o anjo vai baixar, velha?
Rezadora: Para que mais pode ser! Para mover a água da piscina! E então, o primeiro doente que se atirar nesta água bendita, fica curado, limpa-se de toda enfermidade pelos séculos dos séculos, amém!
Jesus: E você, vovó, por que então fica aqui junto à porta? Você não quer se meter na água e curar-se dos olhos?
Rezadora: Ai, meu rapaz, é que você não sabe os empurrões que acontecem aqui dentro para atirar-se na piscina! Mordem-se, arrancam-se os cabelos, dá um frenesi em todos para serem os primeiros. Eu, coitada de mim, como não vejo nem meu nariz, fico aqui quietinha, chamando o anjo para ver se ele me ouve e baixa depressa...
Felipe: Mas assim você nunca vai se curar...
Rezadora: Sim, é verdade... mas ao menos tenho meu negócio. Olhe, quando alguém se cura, como eu foi quem ficou aqui reza que reza, já combinei com as pessoas para que me soltem uma gorjetinha, está entendendo?
Jesus: E já lhe deram muitas gorjetas, velha...?
Rezadora: Sempre cai alguma, meu filho, mas... Deus e o anjo que me perdoem mas, para mim, essa água suja não cura ninguém. Pelo contrário, o que fazem é pegar tudo o que é tipo de doença... Assim tão alvoroçados, o que um cospe o outro engole... Mas, cá entre nós amigos, para mim, vale mais crer do que averiguar... Milagre, milagre, milagre! Ai, Altíssimo, faça o milagre! Senhor dos céus, envie seu anjo depressa, depressa... Perdoem-me, rapazes, mas eu tenho que continuar minha reza para ver se Deus desentope suas santas orelhas e faça caso de mim... Que se mova, que se mova a água, Senhor!

Voltamos a entrar no tanque. Os doentes continuavam ali, brigando entre si, olhando-se uns aos outros com olhos nervosos... Às vezes alguém se atirava na piscina, imaginando que as águas haviam se movido, mas voltava a sair igual que antes, ensopado e triste para colocar-se outra vez na beirada...

Felipe: O que vocês acham disso, companheiros? Será que é verdade essa história do anjo mover a água?
Tiago: Faça o teste, Felipe, meta-se aí nessa barafunda e dê um mergulho.
Pedro: Eu lhes digo que essa gente é maluca. Onde já se viu acreditar nessa história de anjinho...
Tiago: E se inventarem outra com um arcanjo ou com todo o batalhão dos serafins do céu, também acreditarão. Demônios, o que acontece é que eles têm umas gargantas assim desse tamanho: enfiam por elas uma roda de moinho e ainda sobra espaço... grandes imbecis!
Jesus: Não, Tiago, as pessoas não são tontas. As pessoas sofrem, o que é diferente. E quando alguém sofre, agarra-se até em um prego em brasa... ou na pena de um anjo...
Uma doente: Olhe aí, seu porco, eu estava aqui primeiro! Vai mais para trás!
Um doente: Amaldiçoada, desgraçada, a única coisa que você faz é cacarejar. Tomara que fique coxa das duas pernas!
Doente: Veja só quem está jogando maldição. Você que anda se arrastando por aí que nem uma cobra!
Doente: Vai pro inferno, bruxa maldosa!

Um pouco mais distante do vespeiro de doentes, vimos um velho deitado em seu catre. Tinha a pele pegada aos ossos, o cabelo mais branco que farinha e os olhos pequenos de rato que olhavam para todos os lados sem descanso. Quando passamos perto dele, agarrou Pedro pela túnica e o fez deter-se...

Pedro: Ei, o que foi, meu velho?
Sifo: Nada. É que os vejo dando voltas por aqui como uns tontos e fico me perguntando que diabos estão procurando. Porque vocês não estão doentes...
Tiago: Se continuarmos mais algum tempo por aqui, vamos ficar depressa...
Sifo: Vocês não gostam disso, não é mesmo? Nem eu tampouco, que porcaria! Aqui cada um só cuida da própria pele!
Felipe: Se você não gosta, por que vem?
Sifo: Que rapaz mais engraçadinho! Porque eu também penso na minha pele! Que outro remédio me resta?
Pedro: Olhe só a patada que aquele lá levou no cangote...
Sifo: É, rapazes, quando avisam que o anjo está chegando isso aqui é o fim do mundo. Mordidas, patadas, pescoções... Mas, o que vamos fazer? Se há só um osso para tantos cães, temos de brigar para ver quem o come... Esse bendito anjinho é nossa única esperança. Porque, vejam só, eu já não acredito em médicos. Para mim, eles não sabem nem onde está pendurada a cabeça...
Jesus: Quanto tempo faz que você está doente, velho?
Sifo: Faça uma conta, rapaz e vai ver que ainda é pouco.
Jesus: Não sei... dez anos?
Sifo: A esses dez some mais dez e ainda outros dez e ainda lhe faltam anos. Faz trinta e oito anos que estou assim como você me vê, prostrado. Fiquei velho esperando que chegasse o dia de ficar são. Caíram-me todos os dentes. Mas a esperança não, essa sim ainda não caiu...
Jesus: Então vovô, você tem uma esperança quase tão grande quanto a do nosso pai Abraão.
Sifo: O que é que se pode fazer, meu filho, mais que esperar...! Se a gente se desengana de tudo, até deste anjinho, o que nos resta é brigar uns contra os outros. Porque, veja, aqui ninguém ajuda ninguém. Aqui não há caridade. Se alguém se descuida, partem a cabeça dele para que haja um a menos na fila...
Uma doente: Seu bastardo!... Suma daqui ou lhe parto a moleira em pedacinhos!
Um doente: Eu vou é lhe quebrar umas quatro costelas, pra deixar de ser tão intrometida! Tome... e veja se aprende...!
Sifo: Essa é uma mulher muito briguenta... Bem, e ele não fica atrás... É, passamos os dias gritando contra os de cima que nos esmagam o cangote, mas, sabe de uma coisa, nós que somos todos uns mortos de fome, fazemos o mesmo... Aí a gente se desengana, sabe? Aqui não há caridade... Eu que sou velho, já vi muita coisa com estes olhos.
Jesus: Mas você quando era mais jovem, também dava seus empurrões, não é mesmo?
Sifo: Eu? Sim, claro. O que se ia fazer? Mas agora que estou assim, você acha que algum desses mais jovenzinhos me ajuda a aproximar-me da água?... Nenhum, meu filho, nenhum. Aqui não há caridade. E eu que só sei ficar brincando como os sapos, não chego nunca primeiro... Como esse anjo não vem até onde estou, não sei o que vou fazer...
Jesus: Quer que eu o ajude a aproximar-se da água?
Sifo: Não, meu filho, olhe, se quiser me ajudar, tirem-me daqui. Eu creio que hoje não vamos ver mais as asas desse anjinho. Dizem que os anjos madrugam muito e você pode ver por onde já anda o sol... Melhor ir embora e jogar alguma coisa nas tripas. O bafo que tem aqui me abre sempre o apetite, veja só que coisa...!

Então Jesus se aproximou do velho e o agarrou pelos braços...

Sifo: Com cuidado, meu rapaz, que aqui cada osso vai para um lado!
Jesus: Não vai ser preciso, velho. Saia você mesmo.Venha, levante-se...
Sifo: Como está dizendo, meu filho?
Jesus: Estou dizendo para se levantar... Não, não, você sozinho... vamos...

O velho olhou Jesus espantado. Depois se endireitou sobre as pernas e comprovou que se sustentava de pé. Enquanto isso, os doentes continuavam brigando e gritando junto ao tanque... O velho voltou a olhar Jesus, agarrou seu colchão e, sem dizer palavra, saiu correndo...

Sifo: Velha, velha, eu me curei! Estou curado!
Rezadora: O que está dizendo?... Vamos ver... deixe-me tocar suas pernas... você não é o Sifo, o paralítico do bairro dos fruteiros?
Sifo: Esse mesmo, velha, sou eu, eu!
Rezadora: O anjo baixou. O anjo do Senhor baixou à terra, Deus Santo. Milagre! Milagre! Milagre!
Sifo: Prometo que amanhã lhe darei uma gorjeta!
Rezadora: Espere, Sifo, não se vá. Diga-me... como era o anjo? Você o viu?
Sifo: Claro que o vi. Era um anjo muito estranho.Tinha barbas e era bem moreno.Mas amanhã eu lhe conto! Amanhã eu volto, velha, e lhe trago dois denários! Ou quatro! Estou curado! Estou curado...!

Depois daquilo, saímos em seguida da piscina de Betesda e nos perdemos entre a multidão que abarrotava as estreitas ruas de Jerusalém. Sifo, aquele velho, pobre e doente, que estava há trinta e oito anos esperando no tanque, correu pela cidade, contando a notícia de que o anjo o havia curado. E toda Jerusalém soube que algo muito especial havia acontecido naquela manhã junto à Porta das Ovelhas.



A Porta das Ovelhas estava situada à muralha norte de Jerusalém. Por ela entravam no templo as ovelhas que iam servir para os sacrifícios. Perto desta porta se encontrava um tanque de água. Era chamada por dois nomes: Betesda (=Casa da Misericórdia) ou Bezata (=O Fosso). Tinha cinco pórticos de entrada e estava dividida em dois por uma fileira de colunas. As ruínas desta piscina foram encontradas perto de uma igreja dedicada a Santa Ana, a mãe de Maria. Na atualidade não há mais  água neste lugar.

No tempo de Jesus, Jerusalém era uma cidade que padecia de uma aguda escassez de água. A água era um artigo que se vendia e se comprava. Na cidade havia duas grandes piscinas ou tanques: Siloé, fora das muralhas, e Betesta, ou Piscina “Probática” (“das ovelhas” – em grego). No tanque de Betesda, situada bem perto do templo, reuniam-se os doentes. Muitos deles eram proibidos de entrar no templo precisamente por causa de suas enfermidades. Neste tanque esperavam encontrar a misericórdia de Deus que as leis religiosas lhes negavam, apartando-os da presença do Senhor. Era um lugar muito freqüentado para pedir curas. Setenta anos depois de Jesus ainda se encontraram ex-votos nas escavações desta piscina. Betesda era, pois, comparável a todos os santuários cristãos ou de outras religiões onde os enfermos acodem em busca de milagres que curem seus males. Em torno desses lugares sempre se criam falsas lendas e também se organizam bons negócios, favorecidos pela credulidade das pessoas.

A pobreza, a necessidade, o desespero diante da doença, favorecem também o egoísmo. Quando um homem se vê forçado a sobreviver, mais que viver, é às vezes difícil que se abra à generosidade para com os demais. Há um mecanismo muito freqüente nas relações humanas, quando estas não se dão em um plano de liberdade.O poderoso oprime o pobre e este – que desconhece outra forma de trato – oprime por sua vez quem está abaixo de si: um companheiro mais fraco, sua mulher, seus filhos... Cria-se assim uma corrente de servidões. Chega-se a crer que não se é “alguém” se não se tem por baixo alguém para esmagar ou de quem se aproveitar. A injusta estrutura da sociedade multiplica este modelo de relação opressor-oprimido, senhor-escravo. As maiorias oprimidas de nossa sociedade levam no coração este pequeno opressor que lhe hão introjetado os realmente exploradores. O caminho para uma libertação integral do homem e da sociedade, não pode deixar de levar isso em conta. Mas sem esquecer que são esses mesmos oprimidos, cheios de pequenos e grandes egoísmos, a quem Deus privilegia com seu amor. Porque Deus não prefere o pobre porque seja bom, mas simplesmente porque é pobre.

O episódio da piscina de Betesda é contado apenas no evangelho de João. O estilo próprio deste evangelista faz com que tenham especial importância vários detalhes. Os enfermos que rodeiam a piscina não podem entrar no templo.

Deste povo postergado, que espera inutilmente “milagres”, é que Jesus se aproxima. E aquele paralítico que havia trinta e oito anos esperava (quarenta anos é, na linguagem bíblica, o mesmo que dizer “a vida inteira”), quase à beira da morte, Jesus o cura para que caminhe com seus próprios pés, comece a andar e decida seu futuro. O milagre que Jesus faz com Sifo, é um sinal de que para Deus aqueles rechaçados pela religião oficial, os “últimos” passam a ser os primeiros.


(João 5,1-8)





54
A CABEÇA DO PROFETA


Já fazia muitos meses que o profeta João via passar lentamente os dias e as noites no escuro e úmido calabouço da fortaleza de Maqueronte, onde o rei Herodes o mantinha preso. A voz daquele que gritava no deserto, preparando os caminhos do libertador de Israel, ia se apagando entre as sujas paredes daquela cela. Um dia, a porta do calabouço se abriu e entrou Matias, um dos amigos do profeta. Vinha da Galiléia, depois de ter visto Jesus...

Matias: João, João, já estou aqui de volta. Como vai?
João Batista: Eu lhe disse que não morreria antes que você voltasse... E eu cumpri... e Tomé, onde está?
Matias: Em Jerusalém. Foi para lá celebrar a Páscoa com esse tal Jesus, de Nazaré e um grupo de amigos seus. Quando acabarem as festas, ele aparecerá por aqui.
Batista: Fale-me de Jesus. Puderam vê-lo?... Entregaram-lhe minha mensagem?
Matias: Sim, João. Foi para isso que vim. Para dizer-lhe que...
Batista: Que posso morrer tranqüilo?
Matias: Não diga isso, João. Você não vai morrer. Veja eu lhe trouxe esses remédios...
Batista: Conte-me o que disse Jesus. Isso é o que mais me interessa.
Matias: Jesus lhe diz que ali na Galiléia as pessoas vão abrindo os olhos. Que o povo está se pondo de pé, e começa a andar. Que os pobres estão abrindo os ouvidos para escutar a Boa Notícia. Que Deus está conosco e... e que ele espera que tudo isso o alegre, João.
Batista: Claro que me alegra, Matias. Num casamento é o noivo que fica com a noiva. Mas o amigo do noivo que está ali, também fica muito contente... Agora é a vez de Jesus. Ele tem de crescer e eu ir desaparecendo...
Carcereiro: Ei, você, chega de conversa fiada! Acabou-se o tempo!
Matias: Tenho de ir, João. Mas voltarei logo. Enquanto puder.
Batista: Estarei esperando. Se tornar a ver Jesus, diga-lhe que agarre firme o arado e não olhe para trás. E, se por acaso eu sair deste inferno, que ... que conte comigo.
Matias: Eu direi, João, eu direi...
Carcereiro: Vamos, que eu já faço muito deixando-o entrar aqui para ver seu profeta!... Andando!

Matias e o carcereiro subiram pelas estreitas escadas que levavam ao pátio. João se deixou cair sobre o sujo cobertor, olhando fixamente o teto atravessado por goteiras. E adormeceu recordando o rosto moreno de Jesus, aquele camponês de Nazaré que ele havia batizado havia só alguns meses, nas águas do Jordão.

Por aqueles dias, celebrou-se no palácio de Maqueronte o aniversário de Herodes. Os luxuosos salões do rei encheram-se de convidados: funcionários e capitães romanos, comerciantes vindos de Jerusalém, reizetes das tribos beduínas do deserto... Todos queriam felicitar o tetrarca da Galiléia...

Um homem: Viva o rei Herodes por mais cem anos!
Uma mulher: Saúde, soberano da Galiléia!
Herodes: Bem-vindos todos à minha casa! Que comece a festa!
Uma mulher: Você percebeu? Este Herodes tem umas olheiras que assustam.
Uma amiga: Dizem que desde que meteu o profeta João na prisão, sofre de pesadelos terríveis...
Mulher: Mas quando acordar será pior. Ouvi dizer que o tal João, nem no cárcere fica quieto. Tem revolucionado os demais presos. E chega até a agitar os carcereiros.
Amiga: É mesmo? Não posso acreditar...
Mulher: Pois acredite, minha amiga. Eu lhe digo que se o rei se descuidar, esse cabeludo vai fazer todos nós passarmos por maus bocados... enfim, querida, esperamos que o rei lhe tape a boca a tempo...
Amiga: E se o rei não se decide, que a rainha lhe dê um empurrãozinho...! He, He!

Herodíades: O que está acontecendo, Herodes, meu amor? Desde esta manhã você não faz outra coisa que olhar para o próprio umbigo... Está aborrecido?
Herodes: Deixe-me em paz...
Herodíades:  Humm... O que é isso? Venha, venha... Rá, rá...! Quer um pouquinho de licor?... Você se animará... venha...
Herodes: Herodíades, você acha que esta agitação toda será ouvida lá em baixo?
Herodíades: Lá em baixo onde...? De que você está falando?
Herodes: Dos calabouços! De onde haveria de ser?
Herodíades: Outra vez a mesma coisa? Sim, é claro que se ouve! E o que importa?... De quem você tem medo? Desse profeta sarnento?... Pois bem, ele escuta, escuta tudo!... E fica morrendo de inveja! Profeta!... Não quis se meter em confusão?... Pois agora que agüente!... Que apodreça! Que se arrebente!
Herodes: Não fale assim, Herodíades. Isso pode... pode trazer má sorte.
Herodíades: A única sorte seria que esse maldito profeta morresse de uma vez. Estou farta de ver você pensando nele continuamente! Não seja estúpido, Herodes,  esquece esse embusteiro ou corte-lhe o pescoço de uma vez, decide-se!
Herodes: Não posso, Herodíades, não posso... não posso!

Herodíades, a amante de Herodes, a que era mulher de Felipe, o irmão do rei, odiava João. E o odiava porque o profeta jogava na cara de Herodes todos os seus crimes e até seu adultério com ela...

Herodíades: Salomé!... Salomé!... Venha aqui, minha preciosa!
Herodes: Para que você está chamando agora essa sua filha?
Herodíades: Espere, não seja impaciente...
Salomé: Sim, mamãe...
Herodíades: Salomé, filha, o rei está preocupado. E eu estava pensando que só você pode espantar os pensamentos sombrios que ele tem na cabeça...
Salomé: O que quer que eu faça, mamãe?
Herodíades: Dance. Dance para ele a dança dos sete véus. Você sabe, um a um...

A música da festa chegava até os calabouços do palácio...

Carcereiro: Você, infeliz, está ouvindo o burburinho que vem de lá de cima? É a festa do nosso rei.
Batista: Do seu rei, você quer dizer. Eu não tenho nada com ele.
Carcereiro: É, tem muita comida, vinho do mais caro, música... Uma farra e tanto!
Batista: Deixe-os... Estão engordando como porcos para o dia da matança...
Carcereiro: Eu já lhe disse, língua comprida. É por isso que você está trancado aqui. Se fechasse o bico de uma vez, é bem possível que o rei o soltasse...
Batista: Que me solte e eu gritarei mais alto que antes.
Carcereiro: Ai, amigo, você não tem remédio... Escute, eu sou um soldado rude, mas gente como você... Se soubesse, eu admiro tipos valentes como você...
Batista: Não me serve para nada esta admiração. São palavras. Você que pode, vai e faça alguma coisa. Fale aos seus companheiros, diga-lhes que vocês são nossos irmãos, que não levantem a espada contra seus próprios irmãos...
Carcereiro: Quer que eu diga isso? Rá...! Mas, o que você está querendo? Que me cortem a língua?
Batista: Você não se atreve, não é mesmo? Pois veja, faça uma coisa mais fácil. Abre esse ferrolho e deixe-me escapar e eu falarei a eles.
Carcereiro: Rá! Pior ainda! Se eu o soltar não me cortam a língua, mas a cabeça... Não, não, não queira me embrulhar. Eu sou um soldado. Cumpro ordens. E a ordem que meu chefe me deu é para vigia-lo e não tirar os olhos de você.
Batista: Você não tem por que cumprir as ordens de um homem injusto. Rebele-se, companheiro.
Carcereiro: Mas, o que está dizendo?... Está  louco?... Eu sou um soldado. E é pra isso que estamos aqui, para obedecer o que nos mandam. A lei é a lei.
Batista: A lei de Herodes é o crime e a extorsão. A lei de Deus é a liberdade. Abre as grades, deixe os presos saírem. Rebele-se, companheiro!

Enquanto isso, Salomé bailava...

Herodes: Muito bem, Salomé, minha menina!... Como você bamboleia as pernas, franguinha!... Rá, rá! Você me fez babar de prazer...  Merece um belo presente. Vai, peça o que quiser! Braceletes, sedas, ouro, prata, perfumes... Prometo que qualquer coisa que você pedir, eu lhe darei. Você merece a metade do meu reino!

Então Herodíades que estava reclinada junto ao rei, olhou para Salomé e lhe piscou o olho... Tudo já estava planejado antes do baile.

Salomé: Meu Senhor, está faltando um prato nesta mesa.
Herodes: Como assim? Você está querendo comer mais? Não me agradaria nem um pouco que você engordasse, menina. Você está muito bem como está! Rá, rá...! Vocês não acham? Vamos ver, o que você quer? Mais molho, frango, cabeça de cordeiro...?
Salomé: Não, quero a cabeça do profeta João.
Herodes: O que você disse?!
Salomé: Que me presenteie com a cabeça do profeta. Que a tragam agora mesmo em um prato!
Herodes: Mas... mas, o que você está dizendo,Salomé?
Herodíades: O que você ouviu, Herodes.
Herodes: Isso é uma armadilha... Maldita! Eu não posso fazer isso.
Herodíades: Você jurou diante de muita gente, Herodes... Há muitas testemunhas... Ou o tetrarca da Galiléia tem palavras que são levadas pelo vento?

No salão se fez um grande silêncio. Só era quebrado pelo tilintar de alguns copos. Os embriagados não se deram conta do que estava acontecendo ali. Os lábios de Herodes tremiam quando deu a ordem...

Herodes: Aquiles, vai lá embaixo, no calabouço e...  e faça o que esta menina pediu.

Aquiles, um dos guarda-costas do rei, cumpriu a ordem recebida. João não disse uma palavra. Seus olhos ficaram abertos, como quando lá no rio olhavam o horizonte esperando chegar o Messias. Quando Matias e seus amigos souberam, recolheram seu corpo, curtido pelo sol do deserto e pelos tormentos do cárcere, e o levaram para enterrar.Todo Israel chorou o profeta João, o que preparou os caminhos do libertador de Israel.


Na época dos reis, uns mil anos antes de Jesus, surgiu em Israel a prisão como instituição. Em geral, serviam como prisão as dependências que estavam dentro dos próprios palácios dos reis ou chefes da cidade. No tempo de Jesus, podia-se visitar os presos. Eles ficavam geralmente acorrentados e como castigo se lhes aplicava, entre outras medidas, o cepo nos pés. João Batista sofreu a prisão durante alguns meses nas masmorras do palácio que Herodes tinha em Maqueronte, perto do Mar Morto.

Herodes, o Grande, pai do Herodes de quem se fala neste episódio, não tinha sangue judeu. Era filho de um indumeu e de uma mulher descendente de um xeque árabe. Os costumes de sua corte eram influenciados, mais que pela estrita moral judaica, por costumes estrangeiros e helenistas. Herodes, o Grande, tinha um harém, celebrava orgias onde o luxo das vestimentas e o exagero nas comidas eram famosos nos países vizinhos. Era aficionado por lutas de animais ferozes, teatro, jogos de ginásio... A corte de seu filho, Herodes Antipas, o rei da Galiléia nos tempos de Jesus, cultivou também este estilo de vida. Em Maqueronte – fortaleza e palácio a uma só vez – celebraram-se muitas dessas grandes farras. O aniversário de Herodes era ocasião anual para elas. Herodes Antipas foi um homem politicamente corrupto. Seus costumes pessoais não foram tampouco exemplares. Por ambição de poder, casou-se com uma filha de Aretas IV, rei árabe. Depois, em uma viagem que fez a Roma, tornou-se amante de Herodíades, casada com Felipe, um de seus irmãos, e repudiou a filha de Aretas. Isso provocou uma guerra entre o rei árabe e o rei galileu, na qual Antipas tornou-se vencedor. Desde então, Herodes viveu com Herodíades, que trouxe consigo sua filha Salomé. A oposição que João manifestou diante da união adúltera de Herodes e a denúncia que sempre fez dos crimes e abusos do rei, o inimizaram com esta mulher, que foi quem, em última instância, determinou a morte do grande profeta do Jordão, já que Herodes – supersticioso e covarde – não se decidisse nunca.

No episódio, antes de sua morte, João Batista incita a rebelião a um dos soldados com quem fizera amizade. Ele o enfrenta com a decisão de escolher entre uma lei injusta que ordena matar seu irmão e a lei de Deus que é vida e liberdade. A mais antiga tradição cristã nos ensinou que nestes casos, deve-se obedecer a Deus, antes que os homens (Atos 5,27-29). E até nossos dias chegou este grito profético de subversão nas últimas palavras que pronunciou em sua catedral o arcebispo mártir de São Salvador, Oscar Romero: “Diante da ordem de matar que dê um homem, deve prevalecer a lei de Deus que diz: Não matar! Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a lei de Deus”.

A morte de João foi, naquele momento concreto, fruto de uma embriagues do rei e de uma calculada astúcia de sua amante. Mas isto é somente a aparência. Embora João tenha alcançado sua meta sem ruído, na obscuridade histórica, seu fim foi igualmente glorioso. Foi o preço final de uma longa fidelidade. Quase sempre o profeta tem de pagar com sua vida sua denúncia e sua rebeldia diante da autoridade. É nesta coerência, até as últimas conseqüências, que se conhece o verdadeiro profeta. Não é um oportunista que vai onde melhor sopre o vento, valente quando convém ou arriscado quando se trata de conseguir aplausos, que hoje diz isto e amanhã aquilo e que faz tudo bem só porque é um bom ator. O profeta é o que segue uma linha e é fiel a ela, mesmo que lhe custe a vida. Este foi João Batista, desde os tempos de seu retiro no monastério dos essênios ou seus dias de popularidade no Jordão, até o dia em que um soldado anônimo lhe cortou a cabeça em uma masmorra. Uma vida de fidelidade à causa da justiça.

(Marcos 14,3-12; Marcos 6,17-29)




























55
OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE



Toda Jerusalém estremeceu ao saber da morte de João, o profeta do deserto, degolado como um cordeiro de páscoa no cárcere de Maqueronte. Muitos o choravam como quem chora a um pai, como se houvessem ficado órfãos. A notícia correu de porta em porta. Pôncio Pilatos, governador romano, ordenou que se redobrasse a vigilância nas ruas da cidade para impedir qualquer revolta popular. Mas os zelotas não se acovardaram por isso...

Um zelota: Companheiros, o sangue do filho de Zacarias tem de ser vingado. Herodes cortou a cabeça de João. Que caiam as cabeças dos herodianos!

Os revolucionários zelotas esconderam os punhais debaixo das túnicas. E foram de noite ao bairro dos ourives, perto da torre do Ângulo, onde Herodes Antipas tinha seu palácio e onde viviam os herodianos, partidários do rei da Galiléia.

Herodiano: Agghhh...!
Um zelota: Um a menos... Vamos, depressa...

No dia seguinte, amanheceram as cabeças de quatro herodianos, balançando-se entre os arcos do aqueduto...

Uma mulher: Maldição! Agora degolarão nossos filhos!
Outra mulher: Que Deus ampare minha comadre Rute. Ela tem seu filho preso na Torre Antônia.

A represália dos romanos, instigados pelos cortesãos do rei Herodes, não se fez esperar... Na primeira hora da tarde, quando o sol fazia ferver a terra e ondeavam as bandeiras amarelas e pretas na Torre Antônia, dez jovens israelitas simpatizantes dos zelotas foram levados para serem crucificados no Calvário, a macabra colina onde se justiçava os presos políticos...

Um homem: Malditos romanos! Um dia pagarão por todas essas coisas!
Outro homem: Cale-se imbecil, se não quer que lhe preguem as mãos como a esses infelizes...

Diante dos dez condenados à morte, um arauto gritava com as mãos em concha junto à boca para que todos ouvissem e temessem...

Um soldado: Assim terminam todos aqueles que se rebelam contra Roma!... Assim acabarão seus filhos, se continuarem a conspirar contra a águia imperial!... Viva César e morram os rebeldes!
Um homem: Um dia vocês vão pagar, filhos de uma cadela, um dia!

Os dez crucificados ficaram agonizando toda aquela noite. Seus gritos desesperados e suas maldições eram ouvidas desde os muros da cidade. As mães dos justiçados arrancavam-se os cabelos e se arranhavam o rosto junto às cruzes, pedindo clemência para seus filhos, sem poder fazer nada por eles... Jerusalém não pôde dormir naquela noite...

Um zelota: Escute, Simão. Vamos nos reunir na casa de Marcos quando escurecer. De acordo? Avise Jesus, o de Nazaré e os de seu grupo. Que não cheguem todos juntos para não levantar suspeitas. Vai depressa!

Judas, de Kariot, e Simão o sardento, que tinham contatos com os zelotas da capital, nos trouxeram a mensagem. O grupo de Barrabás tinha um plano e queria saber se podia contar conosco...

Jesus: O que foi, Felipe? Está com medo?
Felipe: Medo não, estou aterrorizado... Uff... Quem me mandou vir a esta cidade?
Jesus: Quem não se arrisca nunca faz nada, cabeção. Eia, companheiros, vamos até lá ver o que querem de nós.

Quando o sol se escondeu atrás do monte Sion, saímos de dois em dois e fomos chegando, por diferentes vielas, à casa de Marcos, o amigo de Pedro, também simpatizante do movimento, que vivia perto da Porta do Vale... Todas as lâmpadas estavam apagadas para não chamar a atenção dos soldados que patrulhavam sem descanso até o último rincão da cidade. Os cumprimentos foram em silêncio. Depois nos sentamos sobre o chão de terra e assim, entre sombras, Barrabás, o dirigente zelota, começou a falar...

Barrabás: Cabeça por cabeça, companheiros. Herodes degolou o profeta João em Maqueronte e nós vingamos seu sangue com as cabeças de quatro traidores. Todavia, ainda nem limpamos os punhais e já temos de usá-los de novo. Crucificaram dez dos nossos melhores homens.
Um zelota: Que seu sangue caia sobre a cabeça de Pôncio Pilatos! A maldição de Deus para ele e para Herodes Antipas!
Barrabás: Pilatos pensa que vai nos assustar com isso. Pois terá de cortar toda a madeira dos bosques da Fenícia para preparar cruzes para todos os homens de Israel! Para todos nós, quando chegar o momento!

Barrabás tinha experiência do cárcere. Duas vezes os romanos o haviam agarrado e duas vezes tinha conseguido escapar, quando estava a ponto de perder a pele. Mas ainda o andavam procurando pela Peréia...

Barrabás: E então, galileus? Podemos contar com vocês?
Felipe: Contar para quê?
Barrabás: E pra que seria? Para tirar de circulação uma dúzia de romanos e outro tanto de judeus traidores. Não podemos permitir que esses esbirros levem vantagem... Muito bem, o que acham? Contamos com vocês, sim ou não?
Jesus: E depois, o que acontece?
Barrabás: O que está dizendo, nazareno?
Jesus: Digo o que acontece depois?

A pergunta de Jesus soou um pouco estranha para todos nós...

Jesus: Não sei, Barrabás... Eu o escuto falar e me recordo do pastor quando está em cima da montanha e atira uma pedra, e essa pedra rola e empurra outra pedra, e as duas empurram outras duas, e quatro e dez... e, ao final, não há quem possa deter a avalanche... A violência de que você fala é perigosa, é como uma pedra jogada do cume de uma montanha.
Barrabás: Não me venha agora com histórias, Jesus. Quem está praticando a violência são eles, não compreende?
Jesus: Claro que compreendo. Sim, eles são os que golpeiam, os que destroem, os que semeiam a morte. Mas nós não podemos nos contagiar com sua febre de sangue. Seria o cúmulo se conseguissem fazer de nós sua imagem, gente que só sabe de vingança...
Zelota: Esta bem, mas o que você quer então? Que cruzemos os braços?
Jesus: Quem cruza os braços também faz o jogo deles. Não, Moisés não cruzou os braços diante do Faraó.
Barrabás: Moisés disse: olho por olho, dente por dente.
Jesus: Sim, Barrabás... mas que olhos e que dentes? Os dos quatro herodianos que vocês degolaram ontem? Quem eram esses homens, diga-me?... Foram eles que assassinaram o profeta João?... Eram eles os culpados por toda essa injustiça em que vivemos?... Ou, ao contrário, eram uns pobres diabos, iguais a você e a mim, desses que os grandes levam e trazem e jogam pra brigar contra nós?
Barrabás: Maldição, mas como você pode falar assim? Você, precisamente, você. Será que você não se lembra de como morreu seu pai, José?
Jesus: É por isso mesmo que eu falo, Barrabás, porque sofri na própria carne a dor de ver meu pai surrado como um cachorro por ter escondido alguns conterrâneos quando da confusão em Séforis. Senti também em minha carne o desejo de vingança. Mas não. Agora penso que esse caminho não leva a parte alguma.
Zelota: E que outro caminho existe, nazareno? Nosso país precisa encontrar uma saída. E a única saída passa pelo fio do punhal.
Jesus: Tem certeza disso? Não sei, vocês do movimento querem a rebelião do povo. Mas o que eu percebo é que as pessoas estão demasiadamente resignadas. Ainda temos muitas vendas sobre os olhos. Não será necessário trabalhar primeiro para que os cegos possam ver e os surdos escutar?... O que ganhamos com revanches de sangue se o povo não entende o que está acontecendo?
Barrabás: Nós somos os guias do povo. As pessoas vão aonde as levam.
Jesus: E você não acha que isso não seria mais que mudar de jugo?... É o povo que tem de levantar-se sobre seus pés e aprender a andar seu próprio caminho. A saída terá de ser buscada entre todos, a saída verdadeira, a única que nos fará livres.
Barrabás: Suas palavras são as de um sonhador. Mas Deus não sonha tanto quanto você.  É Deus que pede vingança. Em nome de Deus acabaremos com nossos inimigos.
Jesus: Você degola os herodianos em nome de Deus. E os herodianos nos crucificam em nome desse mesmo Deus. Quantos deuses há então, diga-me?
Barrabás: Há um só, Jesus. O Deus dos pobres. Se você está com Deus, está com os pobres. Se está com os pobres, está com Deus.
Jesus: Tem razão, Barrabás. Eu também creio no Deus dos pobres. O que libertou nossos antepassados da escravidão no Egito. É o único Deus que existe. Os demais são ídolos que os faraós inventam para continuarem abusando de seus escravos. Mas...
Barrabás: Mas, o quê?

A luz mortiça da lua se pendurava pelas frestas da casa e deixava ver, na penumbra, os rostos severos dos dirigentes zelotas...

Barrabás: Mas, o quê?
Jesus: Que é preciso amar a eles também.
Zelota: Amá-los? Quem?
Jesus: Os romanos. Os herodianos. Os nossos inimigos.
Barrabás: Isso é uma piada ou... ou não o entendemos bem?
Jesus: Escutem-me. E me desculpem se não expliquei bem. Mas eu penso que Deus faz nasccer todos os dias o mesmo sol sobre os bons e sobre os maus. Nós, que cremos no Deus dos pobres, temos de nos parecer um pouco com ele. Não podemos cair na armadilha do ódio.
Barrabás: Nesta escuridão, apenas lhe vejo o rosto, nazareno. Não sei se é você mesmo que me fala, este que dizem que é um profeta da justiça, ou se é um louco que está se fazendo passar por ele.
Jesus: Olhe, Barrabás. Se lutarmos pela justiça, teremos inimigos, isso já se sabe. E teremos que combatê-los, despojá-los de suas riquezas e de seu poder como fizeram nossos avós ao sair do Egito. Sim, teremos inimigos, mas não podemos fazer como eles,  não podemos nos deixar levar pelo afã da revanche.
Barrabás: Vamos acabar com isso de uma vez. Isso tudo é história pra fazer criança dormir. Diga-me se está disposto a matar.
Jesus: Matar? Eu não, Barrabás.
Zelota: Então matarão você, imbecil. E você terá perdido tudo!
Jesus: Quando se ganha? Quando se perde? Você sabe?
Barrabás: Vai pro diabo, Jesus de Nazaré. Você está louco, completamente louco. Ou talvez não passe de um covarde vulgar, não sei. E vocês?  Pensam como ele, estão tão loucos como ele?

Pedro ia tomar a palavra para responder, mas nesse momento se nos gelou o sangue a todos...

Um zelota: Os soldados! Os soldados estão vindo!
Outro zelota: A polícia de Pilatos! Fomos descobertos!
Outro zelota: Maldição. Estamos perdidos...
Barrabás: Depressa. Fujam pelo pátio...
Jesus: Pedro, vão vocês por aquela porta...
Pedro: E você, Jesus?
Jesus: Deixem-me aqui. Eu agüentarei os soldados até que vocês estejam longe...
Pedro: Está louco. Eles o matarão...
Jesus: Vai, vai logo...
Pedro: Mas o que você vai fazer?
Jesus: O mesmo que fez Davi com os filisteus...

Os soldados já esmurravam a porta...

Um soldado: Ei, quem está aí? Abram!
Jesus: Depressa, vão embora...!

Os da turma de Barrabás saltaram com agilidade as cercas que davam para outra rua. Nós corremos pelo pátio da casa de Marcos e desaparecemos entre as sombras. Jesus ficou sozinho.Quando abriu a porta, tremia de medo...

Um soldado: O que acontece aqui onde se ouve tanto barulho?
Jesus: Agu, agu, agu...! Rá, rá, rá... ré, ré!
Outro soldado: Quem é esse sujeito?... Olhe, o que está fazendo aqui?
Jesus: Abaixo os soldados, vivam os capitães, abaixo os centuriões, vivam os generais! Rá, rá, rá...!

Jesus tamborilava com os dedos sobre o batente da porta e olhava os soldados com um sorriso estúpido, deixando cair a saliva sobre a barba ...

Um soldado: Não tem vergonha? Tão grande e tão imbecil! Tome, para ver se aprende...!
Outro soldado: Este homem é louco. Como se não tivéssemos já bastante em Jerusalém! Para com isso, vamos embora daqui!
Jesus: Rá, rá, ré, ré...! Uff... Dessa nós nos livramos...

Ainda era noite fechada quando voltamos a encontrar todo o pessoal do grupo na taberna de Lázaro, lá em Betânia. E quando os galos cantaram, ainda estávamos conversando, trocando mil idéias. O rei Davi se fez de louco para salvar a pele. E o Moreno, com o mesmo truque, nos salvou a todos naquele dia. Sim, às vezes a astúcia serve mais que o gume do punhal.


Ainda que os zelotas tivessem seu centro de atividade nas terras galiléias, região onde havia nascido o Movimento, atuavam também em Jerusalém. As peregrinações durante as festas lhes serviam para estabelecer alianças na capital e tinham ali grupos de simpatizantes que seguiam suas propostas. Entre os revolucionários influenciados pelo zelotismo, era muito conhecido o grupo dos sicários – terroristas armados de punhais -, que viam facilitados seus atentados nos tumultos próprios das festas. Zelotas e sicários praticavam seqüestros de personagens importantes, assaltavam fazendas e casas dos ricos e saqueavam arsenais de armas. Entendiam sua luta como uma autêntica “guerra santa”. O Deus zeloso que não tolera outros deuses (o dinheiro, o imperador, a lei injusta) lhes dava seu nome: Zelosos =  zelotas. O castigo para todos estes delitos políticos contra o império romano era a morte na cruz.

Barrabás (nome aramaico que significa “filho do pai”), aparece nos evangelhos unicamente nos textos da paixão, como um delinqüente político que durante uma revolta havia matado um soldado romano. O relato o apresenta como um dos líderes zelotas de maior importância em Jerusalém. Conheceria Jesus,  porque naquelas alturas, Jesus já era um homem popular, a quem começavam a escutar com esperança os pobres da capital. Sendo o movimento zelota um movimento também popular, nada tem de estranho que Barrabás buscasse se relacionar com Jesus e com seu grupo.

A chamada “lei de talião” (Ex 21,23-25): “Olho por olho...” não deve ser interpretada simplistamente como uma lei de vingança. Às vezes se pretendeu contrapor o Deus que deu a Israel esta lei “selvagem”, com Jesus, todo amor e misericórdia. É equivocada esta contraposição. A lei de talião no mundo de quatro mil anos ou mais, era uma lei de respeito à vida: ao impor um castigo que fosse exatamente igual à ofensa, buscava precisamente pôr um limite à vingança e frear a violência. O mundo antigo no qual se promulgou esta lei, era um mundo sanguinário, com povos que se impunham uns sobre os outros, nunca pelo direito, mas sempre pela força. Tudo isso deve ser levado em conta para entender qual é a posição de Jesus e qual a dos zelotas. Estes não eram animais ávidos de sangue.Eram fiéis a uma longa tradição legal e, de certo modo, válida para seu tempo. Jesus vai contrapor-lhes outro caminho. Vai empurrar ainda mais para a frente as fronteiras da possibilidade da convivência humana, falando não de uma vingança limitada, mas de outros valores. O poder da debilidade e o amor aos inimigos.

Jesus não foi um zelota. Os zelotas eram intolerantemente nacionalistas.Queriam a libertação de Israel do jugo romano, mas paravam por aí. Jesus foi um patriota, porque amou sua terra, mas não foi nacionalista, seu projeto não admitia fronteiras nem discriminações. Os zelotas eram profundamente religiosos, mas seu Deus era um Deus exclusivo do povo escolhido de Israel, que em seu reino vingar-se-ia das nações pagãs. Este nunca foi o Deus de Jesus. Os zelotas eram fervorosos defensores do cumprimento estrito da lei, ponto no qual Jesus se diferenciou deles por sua total liberdade diante da lei e da autoridade, ainda que estas fossem judaicas. No entanto, opor absolutamente Jesus e os zelotas pode nos fazer perder de vista realidades importantes: Jesus se relacionou com eles, sem nenhum tipo de reticências – alguns de seus discípulos provavelmente foram zelotas – Jesus compartilhou muitas das reivindicações sociais deste grupo, num comum e ardente desejo de que chegasse o reino de justiça, usaram inclusive expressões parecidas. As relações de Jesus com este movimento popular não podem ser despachadas com afirmações rotundas. Poderíamos dizer que o mais exato neste ponto  é afirmar que o que Jesus propõe, vai mais além, inclui e supera a revolução proposta pelos zelotas.

Quanto à tática, Jesus também se diferenciou dos zelotas em sua postura frente à violência. Tanto por sua palavra quanto por sua atitude, Jesus pôs em questão a violência enquanto método. Mas este é um tema suficientemente complexo para que se queira liquidar com duas palavras, afirmando simplistamente que Jesus foi um não-violento e que o evangelho condena a violência venha de onde vier. Primeiro é preciso levar em conta que há violência tanto no ato de matar quanto no de não deixar viver, que não só existem atos de violência mas também estruturas e situações violentas. Que existem homens violentos, mas mais perigosas ainda são as sociedades violentas, nas quais a injustiça mata muitos de fome, de desemprego, de doenças, de miséria... Por outro lado, Jesus também foi violento quando enfrentou as autoridades. Sua palavra foi então duramente violenta. O foi também em alguns momentos, especialmente no ato massivo que protagonizou na esplanada do Templo. No entanto, ele não matou, foi morto; nunca instigou os seus a nenhuma forma de violência e não usou de resistência armada para salvar-se, quando seguramente poderia fazê-lo. Nesta época, na conjuntura concreta de Israel, a violência propugnada pelo zelotismo não tinha nenhuma saída, estava fadada ao fracasso e era contínuo pretexto para que os romanos desencadeassem seu poderosíssimo aparato de repressão contra o povo, tal como ocorreu no ano 70, depois de Jesus, quando Roma arrasou Jerusalém na guerra contra a subversão zelota.

É evidente que à prepotência das armas, o cristianismo opõe principalmente a força da debilidade que se esconde na palavra verdadeira e na liberdade que dá na luta o não estar apegado a nada e, portanto, o não ter nada a perder. É certo que se respondermos ao violento com violência, podemos acabar sendo tão violentos como aquele a quem pretendíamos combater. Por outro lado, é preciso recordar que desde os Padres da Igreja, passando por Santo Tomás, até Paulo VI, a Igreja defendeu o direito à insurreição armada quando se prolonga uma situação injusta e se hajam esgotado todos os meios pacíficos de superá-la.

Levando em conta todo este marco, Jesus fala do amor aos inimigos. Se não dermos um contexto a esta frase, corremos o perigo de evaporá-la, de convertê-la numa receita adocicada, carente de significado. Neste episódio, Jesus diz esta difícil palavra de amor aos inimigos, partindo de sua própria experiência. É que talvez só sabe amar de verdade o inimigo, aquele que se viu tentado a odiá-lo. Só sabe perdoar quem sofreu na própria carne o ódio do inimigo em forma de tortura, humilhação ou morte. Quem só prega o perdão e o amor de ouvido ou de palavras, tem pouca autoridade ao falar e não convence. A palavra evangélica sobre o amor ao inimigo deve ser levada muito a sério. Não se pode manipular, não se deve abusar dela. Por um lado o evangelho não nos diz que não tenhamos inimigos, mas que, tendo-os, sejamos capazes de amá-los. Isto é, o evangelho não foge do conflito. Não cria a luta, nem sequer a fomenta. Aceita-a e pretende orientá-la para o amor.

Neste episódio, Jesus não diz que se deve apresentar a outra face, mas que ele próprio a apresenta. E faz isto inspirando-se no que o rei Davi fez na terra dos filisteus para escapar dos que o perseguiam (1Sam 21,11-16). É um gesto profético, e por isto, libertador. Com ele salva seus companheiros. É uma forma de dizer que, se isto de apresentar a outra face é pregada como passividade ou resignação, não somos fiéis ao evangelho. Por isso se fazemos da atitude não-violenta uma forma de busca de eficácia, uma estratégia, uma astúcia, estaremos muito mais próximos de entender o que é a não-violência na mensagem de Jesus.

(Mateus 5, 38-48; Lucas 6,27-36)


















































56
O GEMIDO DO VENTO



Tiago: Está na hora de dormir, rapaziada, pois amanhã temos de madrugar!
Pedro: Ai, meus pés! Essas três jornadas que fizemos hoje eu não desejo nem para a minha sogra!
Maria: Pois então fiquem um par de dias mais. Há lugar na taberna. Ainda mais agora que as pessoas começaram a regressar aos seus povoados.
Pedro: Não dá, Maria, temos de voltar para a Galiléia. E sabe por quê? Porque nosso dinheiro já se acabou. Não temos mais nenhum tostão.
Maria: Bah, se é por isso, não se preocupem. Meu irmão Lázaro tem muito carinho por vocês. Se não podem pagar agora, a gente cobra quando voltarem outra vez. Porque vocês voltarão, não é mesmo?

Estávamos guardando a meia dúzia de bugigangas que compramos durante a festa da Páscoa em Jerusalém e despedindo-nos de Marta e Maria. Já era noite quando Lázaro, o taberneiro, chegou correndo...

Lázaro: Pshh! Algum de vocês está levando contrabando para o norte?
Pedro: Contrabando? Está louco? As alfândegas ficam muito vigiadas nestas datas. Por que pergunta?
Lázaro: Porque vocês têm visita. Um peixe grande. Um dos setenta magistrados do Sinédrio... Está aí fora, com um par de guarda-costas, perguntando por vocês. Eu pensei que vocês levavam contrabando.
Maria: Se estão levando, eles disfarçam muito bem... não é à toa que são galileus!
Lázaro: Vamos, rapazes, alguém tem de sair e dar as caras...!
Tiago: Bom, eu vou, vamos ver o que ele quer. Você vem comigo, João?

Meu irmão Tiago e eu saímos para ver quem nos procurava. À porta da Palmeira Bonita estava nos esperando um homem alto, com longa barba crespa e envolto em um manto de púrpura muito elegante. Acompanhavam-no dois etíopes, com a cabeça raspada e adaga na cintura...

Tiago: Vejamos, em que podemos servi-lo, senhor?
Nicodemos: Quero falar com o chefe de vocês.
Tiago: Com o chefe? Aqui ninguém é chefe de ninguém. Somos um grupo de amigos.
Nicodemos: Estou me referindo a este tal Jesus, de Nazaré. Aquele que faz as “coisas”.
Tiago: O que faz as “coisas”? Explique-se melhor.
Nicodemos: Não vim falar com vocês, mas com ele. Vão e chamem-no!

Tiago e eu entramos novamente na taberna...

Jesus: O que será que ele quer falar comigo...? O que estará procurando esse sujeito?
Tiago: Isso não me cheira nada bem, Jesus. É um fariseu importante, sabe? E eu acho muito esquisito que ele tenha vindo até aqui e a essas horas... Alguma coisa ele estará aprontando...
Jesus: Bem, vamos ver do que se trata...
Maria: Não demore muito, Jesus. A história dos três camelos ainda está pela metade...!

Jesus saiu para o pátio onde o esperava o misterioso visitante...

Nicodemos: Puxa vida, até que enfim o encontrei, nazareno! Quero falar alguns minutos com você, a sós...
Jesus: Sim, está bem. Mas se você está procurando contrabando, creio que perdeu seu tempo. A única coisa que levo de Jerusalém é um lenço para minha mãe, que os daqui são muito baratos.
Nicodemos: Não, não se trata disso, meu rapaz. Vou explicar-lhe já, já. Vocês dois, esperem ali.

Os dois etíopes se distanciaram como a um tiro de pedra...

Nicodemos: Deve haver por aqui algum lugar para conversar, não é mesmo...?
Jesus: Debaixo daquela palmeira estaremos bem. Vamos!

Do fogão, vimos Jesus afastar-se até a um canto do pátio. As nuvens corriam rápidas no céu, empurradas por um vento da noite que gemia entre as árvores...

Jesus: Você dizia que...
Nicodemos: Eu me chamo Nicodemos, Jesus. Sou magistrado no Tribunal Supremo de Justiça. Meu pai foi o ilustre Jeconias, tesoureiro-chefe do templo.
Jesus: E o que quer de mim um homem tão importante?
Nicodemos: Compreendo que você estranhe minha visita. Embora já tenha imaginado por quê vim.
Jesus: Devo ter pouca imaginação porque, francamente, não tenho a mínima idéia do que você quer de mim.
Nicodemos: Não quero nada de você. Na realidade, vim ajudá-lo.
Jesus: Ajudar-me?
Nicodemos: Digamos que será uma ajuda mútua. Um benefício mútuo, compreende?
Jesus: Como você não fala mais claro, não estou entendendo nada.
Nicodemos: Jesus, sei muitas coisas sobre você... Olhe, o que você fez na piscina de Betesda correu por toda a cidade... Sim, não faça essa cara! Aquela história do paralítico sair andando... assim, numa boa... Sei também que você fez coisas parecidas lá pela Galiléia: um louco, um leproso... até dizem que ressuscitou uma menina morta em pleno velório. Também ao Sinédrio chegaram esses rumores...
Jesus: Uf, como correm depressa as notícias neste país, heim?
Nicodemos: Como você vê, segui bem de perto sua pista. E lhe dou meus parabéns, Jesus.
Jesus: Continuo sem entender de onde você veio e onde quer chegar...
Nicodemos: Vamos, vamos, não disfarce. Reconheço que para ser truques, estão muito bem bolados... Não vai me dizer que são milagres... você não tem cara de santo... Está bem, está bem. Compreendo que desconfie de mim. Mas vamos ao que interessa. Afinal de contas, para mim dá no mesmo se são truques seus, ou milagres de Deus... ou se é o rabo do diabo que está metido nisso. Para o caso, tanto faz. O povo não distingue uma coisa da outra. Essa gente sofre muito e precisa iludir-se com alguma coisa. E nisso você é mestre, na arte de entusiasmar o povo... Enfim, quero lhe propor um negócio, Jesus de Nazaré. Podemos fazer uma sociedade e os lucros seriam meio a meio... Ou então, se preferir, posso dar-lhe uma quantia fixa, por exemplo... 50 denários. Acha pouco?... Sim, não é muito mas... Digamos 75... Mais ainda?... Parece-me exagerado tanto dinheiro para um camponês, porque depois ficam bebendo nas tabernas mas, enfim, porque acho você muito simpático, poderia subir para até 100 denários. Trato feito. Agora vou explicar o que quero que faça... Mas, do que você está rindo?
Jesus: De nada. É que estou achando  isso  muito engraçado...
Nicodemos: Sim, já sei, vocês galileus têm os caninos retorcidos como o javali. Está bem. Acho que 100 denários é um bom salário para um mago, mas... até aí tudo bem, ponha o seu preço. Quanto você quer?... Acredite, rapaz, seu negócio me interessa mais que qualquer outro...
Jesus: Sim, sim, estou vendo, mas... não tenho o menor interesse nesse assunto, Nicodemos.
Nicodemos: Como?... Por que? Estou dizendo que posso lhe dar muito dinheiro, e não estou mentindo.
Jesus: Não, não é por isso.
Nicodemos: Então, por que?
Jesus: Bem, é que... é que você é muito velho.
Nicodemos: Por isso mesmo, rapaz. Dizem que até o diabo sabe mais por velho do que por diabo. Com minha experiência e sua habilidade podemos ir muito longe.
Jesus: Não, Nicodemos. Digo-lhe que preciso de gente jovem.
Nicodemos: Bom, eu tenho uns quantos anos nas costas, essa é a verdade, mas... de saúde não estou tão mal. Ainda me defendo...
Jesus: Nicodemos: preciso de meninos.
Nicodemos: Meninos? Ah, vamos lá, Jesus, deixe as crianças na escola e vamos falar de coisas sérias.
Jesus: Eu estou falando sério, Nicodemos. Eu preciso de crianças. Se você quer se meter nesse assunto, teria que... nascer outra vez. Isso, voltar a ser criança...
Nicodemos: Já haviam me falado que você é muito cômico, nazareno. Bom, como você sabe tantos truques, talvez você possa fazer-me entrar outra vez no ventre de minha mãe para que ela volte a me parir... Enfim, voltemos ao nosso negócio. Como ia lhe dizendo, trata-se de...
Jesus: Você se tornou velho juntando dinheiro, Nicodemos. E aí surgiu um calo no seu coração e outro nos seus ouvidos. Por isso não compreende. Por isso não ouve o vento.
Nicodemos: Olhe, sei que estou velho,  mas não surdo. O vento eu ouço, sim. Mas de você não entendo nenhuma palavra. O que é que você está querendo me dizer?... Que o dinheiro não lhe interessa?... É isso?... Ah, vocês jovens não têm jeito mesmo... Todos dizem a mesma coisa. Claro, quando se tem o papai por trás: “dinheiro? Para que? O dinheiro é o de menos”... Depois, quando a fruta amadurece, dão-se conta de que com o dinheiro se consegue quase tudo nesta vida... Mas, enfim, se você é tão pouco ambicioso, guardo meus denários. Pior pra você.
Jesus: Não, não, não os guarde, não disse isso.
Nicodemos: Ah, seu safado, já sabia que acabaria mordendo a isca. Estava certo de que esse negócio lhe interessaria. Veja você: poderíamos começar com uma apresentação no teatro... ou no hipódromo, que cabe mais gente... ou também... Mas o que acontece? Está distraído ou o quê?
Jesus: Nicodemos, está ouvindo o vento?... Ele traz a queixa de todos os que sofrem, de todos os que morrem chamando por Deus para que haja justiça na terra. Como pode guardar seu dinheiro e fazer-se surdo aos lamentos que traz o vento?... Escute... É como o grito de uma mulher que dá à luz... Está nascendo um homem novo, um homem que não vive para o dinheiro mas para os demais, que prefere dar a receber.
Nicodemos: Agora sim que não entendo patavina.
Jesus: Claro, para entender você teria de escolher.
Nicodemos: Escolher? Escolher o que?
Jesus: Não se pode servir a dois senhores de uma só vez. Tem que escolhe entre Deus e o dinheiro. Se escolher Deus, você entenderá os lamentos do vento e o vento o levará até onde você nem sequer imagina. Se escolher o dinheiro você ficará sozinho.
Nicodemos: De verdade, não sei de quê você está falando.
Jesus: Você deveria saber. Você que tem tantos títulos, não entende o que está acontecendo? O povo está reclamando seu direito. Queremos ser livres como o vento. Queremos ser felizes. Queremos viver.
Nicodemos: Jesus de Nazaré, já sei o que você é: um sonhador! Mas esse mundo com que você sonha, jamais chegará.
Jesus: Já chegou, Nicodemos. Deus quer tanto este mundo que já pôs as mãos à obra. O Reino de Deus já começou!
Nicodemos: Desce das nuvens, rapaz, seja realista, meu jovem...  Quem lhe diz sou eu, que já tenho os dentes amarelos. Pense em primeiro lugar em você, e em segundo também. Depois de você, o dilúvio. As coisas são como são. E continuarão sendo assim.
Jesus: Não, Nicodemos. As coisas podem ser diferentes. E já estão sendo. Lá na Galiléia vimos gente muito pobre repartindo o pouco que tinham com os demais. Você não queria ver milagres? Pois desce você de sua cátedra de mestre e olhe para além do nosso bairro. Eu lhe asseguro que você aprenderá a fazer o maior milagre de todos, o compartilhar com quem não tem.
Nicodemos: Sim, estou percebendo, você está pirado. Não tenho mais dúvida. Mas reconheço que, ouvindo você falar...
Jesus: Olhe pra cima, Nicodemos... não a vê?

A lua cheia do mês de Nisan, redonda como uma moeda, espargia sua luz branquíssima sobre o pátio da taberna...

Jesus: Veja-a! Brilha como o seu dinheiro. Mas sabe o que fez Moisés, lá no deserto? Pegou o bronze das moedas e com ele fabricou uma serpente e a ergueu no meio do acampamento. E os que a olhavam ficavam curados da picada das cobras... A serpente do dinheiro picou você, Nicodemos. Você tem o veneno dentro... Se quiser curar-se...

Nicodemos ficou em silêncio, olhando aquela lua de bronze... O punhado de moedas que levava na bolsa lhe pesava agora como um fardo. Sentia-se mais velho e mais cansado que nunca, como se sua vida não tivesse sido mais que um pouco de água que se lhe escorria pelas mãos...

Nicodemos: Você acredita que para um homem velho como eu... ainda... ainda há esperança?
Jesus: Sim, sempre há esperança. A água limpa e o espírito renova... Se você quiser...

E o vento continuou soprando entre as árvores. Vinha de muito longe e empurrava as palavras de Jesus muito longe também. E quando Nicodemos deixou a taberna e se pôs a caminho para Jerusalém, o vento o acompanhou em seu regresso.


Nicodemos é citado unicamente pelo evangelho de João. É uma das poucas pessoas pertencentes à instituição religiosa que estabeleceram uma relação amistosa com Jesus. Era do grupo fariseu do Sinédrio. O Sinédrio era o órgão supremo do governo judaico. Funcionava também como Corte de Justiça. Era composto por setenta e um membros, que deviam ter um profundo conhecimento das Escrituras para dar suas sentenças. Concretamente, os sinedritas do partido fariseu – como este Nicodemos – haviam ocupado os postos administrativos do organismo e tinham dentro dele uma grande influência. Os sinedritas eram pessoas sumamente privilegiadas dentro da sociedade: donos do saber e de todo o poder que lhes dava o fato de interpretar as leis. Ademais, eram geralmente, muito ricos. Quando no evangelho de João se fala “dos chefes dos judeus”, se faz referência a homens que ocupavam cargos político-religiosos deste tipo.

Um homem situado em um posto de poder como Nicodemos, teria intenções não muito claras ao aproximar-se de Jesus. Neste episódio aparece interessado em negócios “rentáveis”. Quer usar o religioso em seu próprio benefício. Entre os sinedritas não eram usuais atitudes deste tipo. No tempo de Jesus o Sinédrio era um órgão de poder político, social e econômico muito corrompido. A um homem que vem de um ambiente deste, Jesus proporá uma alternativa básica de verdadeira atitude religiosa: ou Deus ou o dinheiro. Escolher Deus é converter-se ao Reino. Escolher o dinheiro é deixar-se fora do projeto de Deus.

No diálogo entre Jesus e este influente fariseu, recolhido pelo quarto evangelho, João emprega toda uma série de temas teológicos: A água e o Espírito, o que vem de cima e o que é da terra, a luz e as trevas... Também emprega símbolos: a serpente de Moisés, o vento... Isto nos indica que não relata exclusivamente uma conversa real, pois um diálogo assim torna-se inverossímil. Trata-se, muito mais, de uma explicação teológica. A este homem dominado pela Lei, Jesus fala de liberdade (o vento que sopra onde quer) e se coloca a possibilidade de nascer de novo, de começar outra vez a vida, de converter-se.

A idéia do “homem novo” que se expõe neste programa é básica para se entender este diálogo de Jesus com Nicodemos. Em última instância, toda conversão é isso: transformação para a vida, para o novo, para o futuro. O homem novo que Jesus propõe a Nicodemos neste relato, é o que antepõe a atitude de compartilhar ao do benefício próprio. É o homem comunitário frente ao homem individualista. Tudo isso é difícil, exige juventude de coração. O tema do homem novo é freqüente nas cartas de Paulo (Col 3,9-11; Ef 8,2-10 e 4,20-24).

As conseqüências do batismo cristão foram expressas tradicionalmente com a fórmula que Jesus empregou com Nicodemos: Renascer da água e do Espírito. A água, que é símbolo da vida e o espírito (no hebraico espírito e vento se diz com a mesma palavra “ruah”), símbolo da liberdade, marcam o cristão. Trata-se de ser esse homem novo que escolhe sempre a vida e defenda a liberdade diante de toda servidão. O batismo possibilita a esse homem novo a disponibilidade para escolher o Deus da vida em seus compromissos e em todos os seus atos.

(João, 3,1-21)









57
CINCO PÃES E DOIS PEIXES



Quando o rei Herodes matou o profeta João em Maqueronte, as pessoas ficaram cheias de medo e de raiva. Nós estávamos então em Jerusalém. Ao saber o que havia se passado, regressamos depressa à Galiléia pelo caminho das montanhas.

Natanael: Ai, Felipe já não agüento mais... meus pés estão muito inchados!
Felipe: Não se queixe tanto, Nata. Afinal, só falta um pouco...
Natanael: Como pouco se ainda nem chegamos a Magdala...?
Felipe: Não homem, digo que falta pouco para que nos cortem o pescoço como a João o batizador. E então, os calos não ficaram ainda mais doloridos?
Natanael: Se é uma piada,  não acho graça nenhuma!

Ao fim, depois de muitas horas de caminho...

João: Ei, companheiros, já dá para ver Cafarnaum! Olhem lá!
Pedro: Que viva nosso lago da Galiléia!
Felipe: E que vivam estes treze malucos que voltam a molhar os pés nele!

Depois de três dias de caminho, voltamos para casa. Apesar do cansaço, íamos contentes. Como sempre, Pedro e eu nos pusemos a correr na última milha, para ver quem chegava primeiro...

João: Condenado Pedro-pedrada, você não será o primeiro desta vez...!
Pedro: Isso é o que você acha...!! Já estou quase lá, já estou quase lá!!

Quando chegamos a Cafarnaum, a família de Pedro, a nossa e a metade do bairro sairam para dar-nos as boas vindas e inteirar-se de como estavam as coisas lá por Jerusalém...

Um vizinho: Escute, Pedro, é verdade o que dizem que Pôncio Pilatos roubou outra vez o dinheiro do templo para o seu maldito aqueduto?
Pedro: Se fosse só isso! As cadeias estão cheias. Do átrio do templo dá para ouvir os gritos dos que estão sendo torturados na Torre Antônia.
Outro vizinho: Canalhas!
João: Antes de nós sairmos de lá, crucificaram mais dez zelotas. Dez rapagões cheios de vida e com ganas de lutar!
Zebedeu: Pois por aqui as coisas não estão muito melhores!
Pedro: O que? Houve problemas?
Zebedeu: Sim, prenderam o Lino e o Manasses. E o filho do velho Sixto.
Salomé: O marido da sua comadre Cloé estava sendo procurado e teve de se esconder lá pelas cavernas dos leprosos. Foi Gedeão, o saduceu, que o denunciou.
João: Esse traidor!
Um vizinho: Um grupo de ferreiros fez um protesto por causa do último imposto sobre o bronze e, zaz! Todos pra cadeia.
Salomé: E todos apanharam!
Zebedeu: E isso já faz seis dias, e até agora não foram soltos!
Salomé: Bem, creio que há mais gente na cadeia do que na rua!
Jesus: E as famílias dos presos?
Zebedeu: Você pode imaginar, Jesus! Passando fome. O que é que vão fazer? Entre os mendigos e os camponeses que perderam a colheita e agora os filhos dos presos, Cafarnaum está que é uma lástima!
João: Temos de fazer alguma coisa, Jesus. Não podemos cruzar os braços.
Felipe: É o que eu sempre digo: Fomos a Jerusalém, voltamos de Jerusalém, e daí?
Pedro: Agora estamos os treze juntos. Entre todos podemos pensar um plano.
Salomé: Não comece a agitar mais ainda, Pedro, se não quiser que o pendurem em um pau. A polícia de Herodes anda bisbilhotando na taberna e diz que se alguém estiver conspirando será pego.
Jesus: Pois vamos para fora da cidade, para não levantar suspeitas. Sim, é isso, amanhã podemos sair para dar uma volta e procurar um lugar tranqüilo para falarmos sobre isso tudo... De acordo?
Natanael: Amanhã, sim, amanhã de manhã. E se for de tarde ainda melhor. Estou de um jeito que não consigo dar nem mais um passo. Ai, minha avó, estou com os rins feitos pó!.

No dia seguinte, pela tarde, Tiago pediu ao velho Gaspar sua barca grande. Nela cabíamos os treze.Remamos em direção a Betsaida. Com a primavera, a orla do lago estava coberta de flores e o capim estava muito verde...

João: Ei, Pedro, você se lembrou de pegar algumas azeitonas para enganar as tripas?
Pedro: Azeitonas e pão!... Pegue!
Felipe: Vejam, e aquelas pessoas que estão na margem? O que será que acontece?
João: No mínimo alguém se afogou. O mar rebenta muito nesses lugares...
Homem: Ei, vocês, da barca, venham aqui! Venham!
Natanael: Acho que os afogados seremos nós. Veja, Pedro, aqueles que estão fazendo sinais não são os gêmeos da casa grande?
Pedro: Sim, são eles mesmos... Como é que vieram parar aqui?
João: Devem ter vindo a pé de Cafarnaum. Seguramente o velho Gaspar lhes disse que viemos para cá. E chegaram primeiro que nós.
Uma mulher: Pedro!... Jesus não veio com vocês?
Pedro: Veio! O que você quer com ele?
Um homem: Com ele e com vocês!... As coisas andam mal em Cafarnaum. Já lhes contaram?
Uma mulher: Estamos passando fome! Nossos maridos presos e nós sem um pedaço de pão para dar às crianças!
Um homem: E nós que estamos livres, não achamos onde ganhar uma porcaria de denário! Não há trabalho nem para Deus se ele se sentasse na praça!
Pedro: E o que nós podemos fazer, se estamos quase que nem vocês?
Outro homem: Venham, venham, amarrem a barca aqui!... Venham!
João: Escute, Jesus, não seria melhor embicar para outro lado?... Há gente demais!
Jesus: É que o povo está desesperado, João. As pessoas não sabem nem o que fazer nem para onde ir, estão como um rebanho sem pastor.

Eram muitos esperando-nos na orla. Alguns vieram de Betsaida. Outros do casario de Dalmanuta. E também vieram muitos de Cafarnaum...

Um homem: Vocês sempre dizem que as coisas vão melhorar, que vamos por fim levantar a cabeça... e vejam vocês, quando o profeta João a levantou, a cortaram!
Uma mulher: Já não temos ninguém que responda por nós. Que esperança nos resta, heim? Estamos perdidos!
Jesus: Não, dona Ana, não diga isso. Deus não vai deixar-nos desamparados. Se lhe pedirmos, ele nos dará. Se buscarmos uma saída, a encontraremos. Não ficaram sabendo o que fez Bartolo outro dia, quando lhe chegaram alguns parentes no meio da noite?...
Um homem: Bartolo? Que Bartolo?
Jesus: Bartolo, homem, o que antes dava aqueles gritos na sinagoga, lembram?
Uma mulher: Ah, sim, e o que aconteceu com esse lunático?
Jesus: Para não perder o costume, continuou gritando. Afinal, que outra coisa esse coitado poderia fazer?

Jesus, como sempre, acabava contando histórias para fazer-se entender melhor. Pouco a pouco, todos fomos nos sentando. Havia muita grama naquele lugar...

Jesus: Pois vejam, acontece que outra noite, seus parentes vieram de visita e Bartolo não tinha nada em seu casebre para oferecer-lhes. Então foi até um vizinho: “Vizinho, abre-me, tum! tum! tum!... Vizinho, não lhe sobrou nenhum pão do jantar?”... Mas o outro já estava roncando. “Tum, tum, tum!... Vizinho, por favor!” E o outro da cama respondeu: “Deixe-me em paz! Não vê que estou deitado com meus filhos e minha mulher?”... Mas Bartolo continuava a bater, chamando à porta. Era um que não me amole, e outro que me empreste três pães... Resultado, o primeiro a se cansar foi o vizinho de Bartolo. E se levantou e lhe deu os pães que pedia para tirá-lo de cima.
Uma mulher: Bom, e daí?
Jesus: Que assim acontece com Deus. Se chamarmos ele acabará abrindo-nos a porta. E nos ajudará a ir adiante apesar de todas as dificuldades que temos agora. Vocês não acham?

Quando Jesus acabou de contar aquela história, uma mulher magra, com uma cesta de figos na cabeça e um avental muito sujo, se aproximou de nós...

Melania: Vocês me perdoem, eu sou uma mulher rude, mas... não sei, eu penso que a coisa também acontece ao contrário. Muitas vezes o que bate à porta é Deus. E nós somos os que estamos deitados, dormindo a sono solto. E Deus vem e nos esmurra a porta para darmos o pão que nos sobra aos que não o tem.

As palavras de Melania, a vendedora de figos, surpreenderam a todos nós.

Melania: Não é verdade o que digo, amigos?  Pedir a Deus, sim, isso é bom, mas do céu, que eu saiba, não chove pão. Isso dizem que era antes, quando nossos avós iam caminhando por aquele deserto. Mas agora, já não acontecem esses milagres...
Jesus: Esta mulher tem razão. Escutem, amigos: a situação está ruim. Há muitas famílias passando fome em Cafarnaum e em Betsaida e em toda a Galiléia. Mas, se nos unirmos, se colocarmos o pouco que temos em comum, as coisas vão melhorar, vocês não acham?
João: O que eu acho, Jesus é que já está muito tarde. Vai cortando o fio e vamos embora. Ei, amigos, já não é um pouco tarde? Nós estamos voltando a Cafarnaum...
Um homem: Não, não, vocês não podem ir agora. Temos de discutir a questão das mulheres dos presos e o que vão comer os que estão sem trabalho.
Pedro: Deixe isso para outro dia, amigo. Já está ficando escuro e, de verdade, vocês devem ter as tripas coladas à espinha...
Uma mulher: E vocês também, que porcaria! Se formos agora desmaiaremos pelo caminho!
Jesus: Escute, Felipe, não há nenhum lugar por aqui onde se possa comprar alguma coisa?
Felipe: Um pouco de pão poderia ser comprado em Dalmanuta, mas eu creio que para tanta gente seriam precisos duzentos denários!
Jesus: Vejam o que são as coisas, amigos! Vocês têm fome. Nós também. Nós trouxemos algumas azeitonas, mas não queremos mostrá-las porque não bastariam para todos. Penso que alguns de vocês também trouxeram seu pão por baixo da túnica e, tampouco se atrevem a mordê-lo para que o do lado não lhes peça um pedaço.
João: É assim mesmo, Jesus e, sem ir mais longe, há aqui um menino que trouxe alguma comida.
Jesus: O que você tem aí, garoto?
Um menino: Cinco pães de cevada e dois peixes.
Jesus: Ouçam, vizinhos, por que não fazemos o que a Melania disse há alguns instantes...? Por que não nos sentirmos como uma grande família e repartimos com todos o que temos? Na melhor das hipóteses isso dará...
Um homem: Sim, é isso, vamos fazer isso! Ei, você, garoto, traga aqui os cinco pães que você tem! Eu tenho aqui dois ou três mais!
Jesus: Você, Pedro, pegue as azeitonas e coloque-as no meio, para todos... Quem tem alguma coisa mais?
Outro homem: Por aqui há uns quantos dourados! Com os dois do garoto e outros mais que apareçam...
Melania: Aqui está meu cesto de figos, pessoal! Quem tiver fome, pode ir comendo sem pagar...

Tudo foi muito simples. Os que levavam um pão o puseram para todos. Os que tinham queijo ou tâmaras, o repartiram entre todos. As mulheres improvisaram algumas fogueiras e assaram os peixes... E assim, às margens do lago de Tiberíades, todos puderam comer naquela  noite...

Uma mulher: Escutem, se alguém quiser mais pão ou mais peixe... Ainda tem... Você quer, Pedro?
Pedro: Eu? Não, estou mais estufado que um hipopótamo. Comi até demais!
Outra mulher: Você, garoto, recolhe os pedaços de pão que sobraram! Sempre se aproveita...
João: Agora, sim, companheiros, ao barco! Temos que voltar para casa!
Um homem: Esperem, esperem, não vão ainda!... Não acabamos de discutir a questão das mulheres dos presos e... sim, claro, estou entendendo. O que temos que fazer é...
Melania: O que se tem que fazer é compartilhar.
Jesus: Sim. Compartilhar hoje e amanhã também.E assim, o pão será suficiente para todos.

E nós treze, montamos na barca de Gaspar e começamos rema que rema no meio da noite rumo a Cafarnaum... Eu ia pensando enquanto cruzávamos o lago que um milagre, um grande milagre havia acontecido naquela tarde diante dos nossos olhos.


A uns três quilômetros de Cafarnaum, bem próximo do lago da Galiléia, está Tabgha, onde a tradição fixou há muito tempo o lugar em que Jesus comeu pães e peixes com uma multidão de conterrâneos.Tabgha é a contração em árabe da palavra grega “Heptapegon”, que quer dizer “Sete Fontes”. A  igreja que hoje se visita em Tabgha está construída sobre a que já existia ali há mil e quatrocentos anos. Os mosaicos existentes no piso desta chamada “igreja da multiplicação” são os do antigo templo e têm um grande valor artístico e arqueológico. Em um destes antiqüíssimos mosaicos se representa um cesto com cinco pães; e a seu lado há dois peixes. Desde a remota antiguidade, pães e peixes foram um símbolo eucarístico, por referência a este texto do evangelho no qual se realiza o essencial do que celebramos na eucaristia. Uma comunidade que compartilha sua fé, sua esperança e seu pão na presença de Jesus.

Jesus conta a seus vizinhos, neste episódio, a parábola do amigo a quem pede ajuda de noite (Lc 11,5-8). Com esta história quer ressaltar a confiança que devemos ter em Deus, que escuta nossas vozes quando clamamos a ele em nossa necessidade. Cedo ou tarde ele lhes abrirá a porta. Por outro lado, Jesus está tecendo uma história humorística com um ensinamento bem prático. Esta insistência ao pedir, esta cabeça dura que não cede, este impertinência tão oriental de saber insistir, esta astúcia que tem aquele que nada possui para conseguir o que procura, para surrupiar, tudo isso são valores que devemos saber usar para construir o Reino da Justiça.

O pão era o alimento básico no tempo de Jesus. Até há pouco tempo, na maioria dos países do mundo, também o era. Algumas revoluções e revoltas populares estouraram precisamente quando faltou o pão ou quando subiu tanto de preço que aos pobres se tornou impossível comprá-lo. A  falta de pão – que é o mesmo que dizer a fome – acendeu em muitas ocasiões o estopim da rebeldia dos pobres. Pelos escritos da época, podemos saber com muita aproximação o preço do pão no tempo de Jesus. O que uma pessoa comia diariamente equivalia a 1/12 de denário, isto é, 1/12 do salário de uma jornada, pois o mais freqüente era que, na maioria dos ofícios, se ganhasse um denário por dia. O pão era comido na forma de tortas chatas, pouco grossas, como as que ainda hoje se usam nos países orientais. Para sua alimentação, um adulto, consumia pelo menos três dessas tortas.

Deus não dá de comer diretamente aos homens.E a prova mais palpável é a fome do mundo, padecida pela maioria da humanidade e não querida por Deus. Os famintos não devem esperar do céu a solução de sua miséria. O evangelho nos indica outra alternativa: Compartilhar. Não é necessário “comprar” – como propõem os discípulos . Basta “dar”, pôr em comum o que cada um tem. E assim haverá para todos. Este seria o maior dos milagres. Se se compartilha tudo, “todos ficam saciados” e inclusive sobra.

A missão da comunidade cristã no mundo dominado pela injustiça e regida pelo dinheiro e pela acumulação de bens, será sempre o amor. Mas não um amor de palavra, de bonitos discursos, mas um amor expresso no compartilhar. Deus é generoso e quer  que todos comam, vivam, estejam saciados. Mas essa sua vontade se torna realidade unicamente através da generosidade da comunidade. Tudo isso é o que a comunidade expressa e celebra quando se reúne na eucaristia para compartilhar o pão.

Mateus 14,13-21 e 15,32-39; Marcos 6,30-44 e 8,1-10; Lucas 9,10-17; João 6,1-14)


58
DIANTE DA SINAGOGA DE CAFARNAUM



Aquele dia era sábado. E, como todos os sábados, nós nos reuníamos na sinagoga de Cafarnaum. Ali, na assembléia, estavam muitos dos que haviam comido conosco em Betsaida, quando repartimos os pães e os peixes. Ali estavam também os familiares dos presos e alguns mendigos... Depois das orações rituais, Fanuel, um dos proprietários mais ricos da cidade, levantou-se para fazer a leitura...

Fanuel: “Então apareceu no deserto uma coisa pequena como grãos, semelhante ao orvalho. E Moisés disse aos filhos de Israel: Este é o maná, o pão que Deus nos dá por alimento. E isto é o que Deus manda: que cada um recolha o que necessite para comer ele e sua família. Assim o fizeram os filhos de Israel. Mas alguns recolheram muito e outros recolheram pouco. Então o dividiram para que não sobrasse aos que tinham mais, nem faltasse a quem tinha menos. E assim todos tiveram o necessário para o sustento. Moisés também disse: que ninguém guarde maná para o dia seguinte. Mas alguns não obedeceram Moisés e começaram a guardar e estocar o alimento. Mas ele se encheu de vermes e apodreceu. Porque Moisés havia mandado que cada um recolhesse o que necessitasse para o sustento...” Esta é a palavra de Deus no livro santo da Lei!
Todos: Amém! Amém!

Então, o rabino Eliab, com sua voz fanhosa de sempre dirigiu-se a todos que estavam na sinagoga...

Rabino: Irmãos, quem quer vir explicar esta leitura?... Vamos, vamos, não tenham vergonha de fazer um comentário sobre estas palavras santas que acabamos de escutar...
Amós: Quem devia sentir vergonha é esse que a leu!

Amós, um dos tantos assalariados que trabalhavam na fazenda de Fanuel, rompeu o silêncio!

Amós: Eu não quero comentar nada. O que eu quero é gritar a esse pão-duro: cumpre você mesmo o que acabou de ler!... Ouçam todos vocês e julguem se não tenho razão: Fanuel não me paga um centavo já faz quatro luas. Eu me mato trabalhando em sua fazenda, e depois não me paga... Ladrão!
Rabino: Cale-se e vai protestar em outro canto! Isto não é um tribunal mas a Casa de Deus!
Amós: Se não ligam para mim no tribunal, aonde eu vou, heim?
Rabino: Estou dizendo para se calar!... Repito: algum irmão quer comentar a palavra de Deus que acabamos de escutar?
Simeão: Sim, sim, eu quero comentá-la, rabino!

Todos os olhos se voltaram dessa vez  para o corcunda Simeão, um pobre homem que vivia junto ao mercado...

Rabino: O que você tem a dizer?
Simeão: Bem, na realidade, não vou dizer nada... Moisés já falou tudo. Vocês não ouviram? Que ninguém tenha demais, que ninguém tenha de menos. Que a ninguém sobre o pão, que a ninguém falte o pão. Esta é a lei de Moisés. E eu sou filho de Moisés, não é verdade? E aquele que está ali, dom Eliazim, também... E por que ele tem os celeiros cheios, arrebentando de trigo e cevada, e eu estou morrendo de fome, heim?
Rabino: Cale-se você também, impertinente! O que você está dizendo não tem nada a ver com a palavra de Deus. Se está a fim de falar de política, vai à taberna.
Simeão: Eu não estou falando de política, rabino. Eu estou dizendo que meus filhos não têm um naco de pão para comer.
Rabino: Comer, comer! Vocês só pensam em comer. Irmãos, estamos na casa de Deus. Esqueçamos por um momento as preocupações materiais e falemos das coisas do espírito.
Uma mulher: Claro, porque você come quente todos os dias! Se tivesse fome, você venderia seu espírito por um prato de lentilhas!
Rabino: Tirem essa gritona da sinagoga! Não vou permitir nenhuma falta de respeito neste lugar santo!... Hãhã... Falemos das coisas santas, do pão divino, do maná. Como nos disse a leitura, o maná caía do céu sobre os israelitas...
Mulher: Pois a nós, o que nos está caindo em cima são as porradas dos guardas. Meus dois filhos estão presos já faz uma semana, e bateram neles como se fossem cachorros! E sabem por que? Porque esse canalha saduceu que está aí, os denunciou! Sim, sim, Gedeão, foi você! Vão vire a cara porque aqui todo mundo já sabe, traidor!...
Rabino: Mas o que está acontecendo hoje por aqui, heim?... O que vocês vieram fazer aqui? Rezar ou molestar alguns irmãos da comunidade?...
Amós: Irmãos? Como vai ser meu irmão o usurário que ontem mesmo me agarrou pelo cangote para que eu lhe pagasse seus malditos juros? Você mesmo, Rubem, não adianta disfarçar, você mesmo!
Rabino: Já chega! Já chega! Esta é a casa de Deus! E à casa de Deus se vem para rezar!
Simeão: Mas, rabino, você não compreende o que estamos dizendo? Como podem rezar juntos o leão e a ovelha? O leão pede a Deus que a ovelha durma para poder comê-la. A ovelha também pede a Deus para que o leão durma para que lhe cortem a juba!
Amós: Bem falado, Simeão! Como vou rezar junto de dom Eliazim, eu que não tenho nem sete palmos de terra para morrer? Um dos dois está sobrando!
Um homem: O velho Benjamim lhe rouba vinte e em seguida suborna os juízes, e os juízes lhe roubam mais vinte! E vou ficar rezando com ele debaixo do mesmo teto?... Eu digo o mesmo que este meu vizinho: um dos dois está sobrando!
Outro homem: Sim, sim, é preciso falar claro e rasgado para que entendam de uma vez!... Olhe, olhe aquele ali com carinha de piedoso... Com o trigo que ele tem armazenado poderiam comer quarenta famílias daqui do povoado. E com os colares da mulher dele, se consertaria todas as casas do bairro. Digo o que já disseram: ou eles, ou nós!

O alvoroço subiu como a maré. Os dedos se levantavam acusadores e abríamos a boca sem medo de denunciar os abusos que cometiam os grandes de Cafarnaum... Então, o rabino Eliab, roxo de raiva, subiu ao estrado das leituras e começou a gritar...

Rabino: Vocês são os únicos que estão sobrando, malditos! Vocês que não respeitam a palavra de Deus e só querem fazer política! Sim, sim, eu sei o que está se passando! O mesmo que aconteceu outra vez, no caso das espigas. Um agitador lhes está enchendo a cabeça de sonhos. Mas, escutem bem, eu não vou repetir mais: ou calam a boca de uma vez, ou ponho todo mundo pra fora!
Jesus: Não é necessário, rabino. Nós já estamos indo. Um dos dois está sobrando.

Jesus se levantou, deu meia volta e saiu da sinagoga.

Rabino: Você, maldito, você! Você é o culpado de tudo isso. Você está dividindo a comunidade. Mas você pagará muito caro, rebelde!

Atrás de Jesus também saímos nós, os do grupo. E os camponeses, os assalariados de Eliazim, os desempregados de Fanuel, as mulheres dos presos  e muitos outros mais, abandonaram em silêncio a casa de Deus... Pouco depois, dentro da sinagoga, só ficou o rabino Eliab, andando de um lado para outro em cima do estrado, com os dentes e os punhos apertados. Ficaram também os amigos dos latifundiários e dos agiotas. E alguns outros que, por medo da maldição do rabino, não se atreveram a sair. Lá fora, num canto da praça, todos nós rodeamos Jesus...

Uma velha: Olhe, você, de Nazaré, não fizemos algo de errado saindo assim da sinagoga?
Jesus: Não, vovó, não se preocupe. O profeta Jeremias também teve de se colocar diante das portas do Templo para denunciar que a casa de Deus havia se transformado numa toca de ladrões.
Um homem: E agora, Jesus? O que vai acontecer?
Jesus: O que sempre acontece, vizinho. Eles atiram a pedra e escondem a mão. E em seguida, quando a gente reclama da pedrada, dizem que estamos agitando, semeando discórdia na comunidade. Enquanto isso eles dão uma de cordeiros mansos... mas não nos deixemos enganar. Isso é só um disfarce. Por dentro são lobos com caninos afiados. O que querem é roubar, estocar e ficar com tudo.
Uma mulher: E nós, o que temos de fazer, Jesus?
Jesus: O contrário do que eles fazem: compartilhar. Deus nos pede isso: repartir. Isso escreveu Moisés: ninguém com mais, ninguém com menos. Este é o sinal de que o Reino de Deus começou entre nós. Escutem, amigos: por que ontem o pão deu para todos?  Porque repartimos o que tínhamos. Esta é a vontade de Deus. Se compartilharmos o pão nesta vida, Deus compartilhará conosco a vida eterna. Se compartilharmos o pão da terra, Deus nos dará um pão ainda melhor, um pão do céu, como aquele maná que caía no deserto.
Um homem: Escute: E onde se consegue este pão do céu?
Jesus: Deixe isso pra lá, Simeão! Primeiro, temos de repartir o pão da terra, não é mesmo?

Enquanto Jesus falava lá fora, o latifundiário Eliazim saiu da sinagoga e se aproximou do nosso grupo, ameaçando-nos com o punho...

Eliazim: Escutem bem, todos vocês! Nós não vamos tolerar isso! O rabino já deu sua aprovação. Vou agora mesmo ao quartel denunciar todos vocês. E você será o primeiro, nazareno, você que é o cabeça de toda essa agitação.
Uma mulher: Se você se coça tanto é porque foi muito bem picado!
Eliazim: Podem rir, imbecis! Quando vierem os soldados, quando estiverem presos, quando agarrarem seus filhos e os açoitarem numa coluna e os pregarem na cruz romana, então não terão tanta vontade de rir. Depois, não venham me dizer que não avisei!

Houve um silêncio carregado de maus presságios. As ameaças de Eliazim gelaram o riso em nossa boca. Porque era verdade. Os romanos não perdoavam. Cada dia, levantavam-se novas cruzes em todo o país para afogar o grito de protesto dos pobres de Israel...

Um homem: Bom, vizinhos, vamos deixar essa conversa pra outra hora, não?
Outro homem: Sim, já é um pouco tarde e... enfim, até mais pra todo mundo!...
Amós: Eu também tenho de ir... Nos vemos outro dia...

Um a um, da mesma forma que haviam saído da sinagoga, foram indo agora para suas casas...

Tiago: Covardes! É isso que são todos vocês, covardes!...
Jesus: Claro que sim, Tiago. Na hora da verdade, todos sentimos medo! Ninguém gosta de arriscar a própria pele. Mas é preciso fazê-lo. Temos de repartir o pão. Mas temos de repartir também nosso corpo e nosso sangue. A muitos de nós romperão a carne como se rasga um pão. Derramarão nosso sangue como se derrama o vinho... E então, quando tenhamos dado a vida por nosso povo, seremos dignos do Reino de Deus.
João: Bem, Jesus, estas palavras são fáceis de falar, mas... mas muito duras de engolir.
Um menino: Os soldados, os soldados estão chegando!... Corram, corram, eles estão trazendo lanças e garrotes!...

Muitos saíram correndo quando ouviram que os soldados estavam chegando. Nós também começamos a nos olhar com inquietação.

Pedro: Bem, Jesus, então... então...
Jesus: O que foi, Pedro? Quer ir? Vai! Vocês também querem ir?
Pedro: Bem, por querer-querer... Uff... Está bem, moreno, ficamos com você. O que você disse é a verdade. Acontece que esta verdade engasga a gente como uma espinha de peixe.
Jesus: Agora somos treze. Qualquer um de nós pode falhar. Por isso, temos de nos apoiar uns nos outros...  E que Deus nos dê força para repartirmos tudo... até o próprio medo!
Pedro: Os soldados já estão aí, Jesus...
Um soldado: Ei, vocês, circulando, circulando...! Não queremos nenhuma desordem... Vamos, vamos, andando... E você, forasteiro, você mesmo, tome cuidado com o que faz. Estamos por dentro de tudo, entendeu? Você e seu grupo já estão fichados... Vamos, vamos, voltem para suas casas...

Por sorte, os soldados não fizeram muito caso da denúncia de Eliazim. E nos deixaram ir naquela vez sem maiores problemas. Tudo isso aconteceu num sábado, o dia de descanso, diante da sinagoga de Cafarnaum.



Até o final do século passado ainda não haviam sido descobertas as ruínas de Cafarnaum dos tempos do Evangelho.Uns seiscentos anos depois da morte de Jesus, Cafarnaum foi destruída e, pouco a pouco, todos os cenários do evangelho ficaram reduzidos a escombros.Um dos trabalhos levados a cabo com maior cuidado depois do descobrimento foi a restauração da sinagoga. Não era a que Jesus conheceu, mas estava construída em cima da daqueles tempos. O atual edifício é do século IV, muito espaçoso, com grossas colunas e formosos adornos nas paredes. Está muito próxima da casa de Pedro.

No culto que se celebra a cada sábado na sinagoga e ao qual Jesus assistia habitualmente com seus conterrâneos, lia-se um trecho das Escrituras e os próprios assistentes o comentavam. Nem a leitura, nem o comentário eram tarefas específicas do rabino. Ordinariamente, as mulheres nunca falavam publicamente na sinagoga, embora neste episódio se faz compreensível sua participação levando-se em conta a evolução do diálogo entre os vizinhos.

No episódio, o texto que se lê foi extraído do capítulo 16 do livro do Êxodo.O maná “o pão do céu” havia sido o alimento que os israelitas encontraram no deserto em sua longa marcha até a Terra Prometida. As normas dadas por Deus para a colheita do maná tratavam de evitar a acumulação e a desigualdade na partilha da comida, para que ela bastasse a todos.

Por mais que o culto judaico da sinagoga não seja equivalente ao culto cristão, nem a celebração do sábado possa ser colocada em paralelo com a celebração eucarística dos domingos, neste capítulo busca-se uma certa semelhança para se colocar o tema básico culto-justiça. O tema Eucaristia-justiça é um problema tão velho como o cristianismo. São Paulo afirma que onde existe desigualdade e esta é ostentosa, não se está celebrando a eucaristia, mas um ato que o Senhor condena. Sua denúncia neste sentido é ardente (1Cor 11,17-34). Nos primeiros séculos cristãos havia uma evangélica sensibilidade para captar a relação Eucaristia-justiça. Só celebravam a Eucaristia e repartiam o Pão os que antes punham os seus bens em comum com seus irmãos. E ainda mais: o bispo tinha a obrigação de vigiar os que levavam oferendas para a missa. Se se tratava de pessoas que oprimiam os pobres, era proibido receber qualquer coisa delas. (Const. Apost. II,17,1-5 e III, 8 e IV,5-9). Isso era levado com tanto rigor que a didascália (século III) dispõe que, se para alimentar os pobres não houver outro meio que receber dinheiro dos ricos que cometem injustiças, é preferível que a comunidade morra de fome antes que aceitar dinheiro desses opressores (Didasc. IV,8, 2). As disposições deste tipo se multiplicam nos escritos dos Santos Padres e das Igrejas de diferentes lugares ao longo dos séculos.

Outro exemplo desta radicalidade é o do bispo de Milão, Santo Ambrósio, que, inteirado da matança de milhares de pessoas cuja responsabilidade era do imperador Teodósio, além de denunciá-lo, enviou-lhe uma carta dizendo que “não oferecerá o Sacrifício da Missa diante dele, se ele se atrever a assistir” (Epist.LI, 13). Foi a partir do século IX, que a Igreja oficial foi se esquecendo disso tudo e começou a fixar-se unicamente no tema da presença real de Cristo no pão e no como explicar este sublime mistério. Assim, se perdeu de vista a outra dimensão eucarística.

Os profetas de Israel também estão nesta linha. Nas mesmas portas do Templo de Jerusalém, lugar muitíssimo mais “sagrado” que a sinagoga de um povoado de pescadores, o profeta Jeremias “escandalizou” os homens religiosos de seu tempo e o próprio rei denunciando a falsa segurança dos que se amparam no culto, esquecendo os deveres da justiça (Jr 7,1-15; 26, 1-24). Com esta liberdade, característica dos grandes profetas, Jesus antepõe a justiça ao culto e no lugar santo fala do que é mais sagrado para Deus: a vida dos homens, a justiça entre eles. Ninguém pode levar oferendas ao altar se existir outro homem que tenha algo contra ele. Primeiro deve reconciliar-se (Mt 5,23-24).

Na Eucaristia dos crentes celebramos o memorial daquele que por sua fidelidade a Deus mataram e ao qual Deus fez Senhor ressuscitando-o da morte. Na Eucaristia se celebra esta fé comum, que se prolonga na história vivendo esta mesma fidelidade. Celebra-se a comum esperança de que as coisas podem mudar até a vida, até a igualdade e a fraternidade entre os homens. Celebra-se o amor que nos impulsiona a compartilhar, a arriscar a vida por esta causa e a criar comunidade. A celebração da Eucaristia – a palavra dos profetas e de Jesus, o pão partido e partilhado – sustenta esta fé, esta esperança e este amor.

(João 6, 22-71)




















































59
O FANTASMA DO LAGO



Era noite fechada sobre o grande lago da Galiléia. A lua, feito uma metade de laranja pendurada no céu, apenas nos iluminava os rostos. Com Pedro, em sua velha barca pintada de verde, íamos seis. Na outra barca, dirigida por André, iam os outros do grupo... Jesus não estava conosco naquela noite. Quando nós doze subimos à barca, disse que não queria vir e se afastou em silêncio por uma das vielas escuras que saíam do cais...

Pedro: Companheiros... isto está muito esquisito... Por que ele ficou na cidade, heim? Por que?
Tomé: Jesus te-te-te-tem medo da água à no-no-noite! Não é por isso?
Tiago: Conversa fiada, Tomé! Aqui tem coisa mais séria. Medo da água não. Isso é uma idiotice. Mas medo sim. Jesus tem medo. Dá pra ver em seus olhos!
Pedro: Mas, medo de quê, Tiago? Vai ter medo por que?
Tiago: As coisas estão ficando feias, Pedro. A cada dia o Moreno está mais fechado. Os fariseus o odeiam e o procuram. Este queijo está apodrecendo...
Pedro: Mas, o que vocês estão dizendo? Isso não pode ser. Jesus é valente. Já demonstrou isso. Por que vocês têm tanta certeza disso?
Tiago: Ninguém tem certeza de nada, Pedro, de nada... Estamos só falando. Mas você não vai negar que é muito esquisito ele nos ter deixado sozinhos...
Tomé: E na-na-na-não será que ele foi rezar? Jesus é muito rezador.
Pedro: Mas para que tipo de santo se vai ficar rezando lá? Não, Tomé, isso não explica o que está acontecendo esta noite...
Tiago: Será que ele nos traiu...? Estará passando pro outro lado e não se atreve a dizer?
Pedro: Mas, como é que ele vai fazer isso, cabelo-de-fogo. Jesus é direito como um remo!... Você está maluco! Não, isso não pode ser!
Felipe: A idéia que anda dando voltas na minha cabeça é outra... Acho que ele está farto de falar que o Reino de Deus está próximo, que já vem... mas não chega nunca. Ele deu uma de profeta, ficou sem saliva na boca dizendo que as coisas vão mudar... e vocês estão vendo, tudo continua igual! E então...
Pedro: E então o que? O que você quer dizer com isso, Felipe?
Felipe: Quero dizer que um dia desses – hoje por exemplo – Jesus vai dizer: “mundo ingrato, que se apodreça!” E ao diabo com o grupo, com a justiça, com o Reino de Deus e com tudo!... E aí ele se vai por um caminho escuro como fez esta noite e a gente nunca mais vai tornar a ver sua barba.
Pedro: Mas, o que você está dizendo?! De onde tirou esta idéia, cabeção do demônio?... Jesus não pode fazer isso com a gente. Ele não é assim! Ele não é assim!
Tiago: Está bem, Pedro, ele não é assim. Mas por que ele não veio conosco esta noite, heim?

Todas as palavras daquela conversa foram se colando dentro do peito como o vento frio da noite que inflava as velas e começava a revolver as tranqüilas águas do lago. Na outra barca, André, Judas, Simão e os demais, falavam sobre a mesma coisa, com as mesmas palavras, com as mesmas perguntas. Depois de um tempo, todos ficamos em silêncio... Só se ouvia o rumor do vento cada vez mais forte...

Pedro: Pelos mil demônios do sheol, digam alguma coisa! Prefiro uma tempestade do que esta história de todo mundo ir com a boca fechada, como mortos!

Então, como se tivesse ouvido o grito irado de Pedro, o vento começou a agitar com fúria as duas barcas e as nuvens começaram a descarregar sobre o lago os raios e trovões que guardavam escondidos em suas negras barrigas.

Tiago: Maldição!  Meu nariz já me dizia que iria haver tempestade! Agarre bem a vela, João!
Tomé: Que-que-que é isso?
Pedro: O que poderia ser, Tomé? Você não está achando que isto é uma festa, não é mesmo?
Tomé: Nos afo-fo-fogaremos!
Tiago: Sim, caramba, nos afogaremos. E você será o primeiro se não fechar este bico!
André: Ei, Pedro, solte um pouco a vela!... Pedro!
Pedro: Afaste-se um pouco magrão! Vamos bater!

As ondas, gigantescas como montanhas, saltavam por cima de nossas cabeças, ensopando-nos vez por outra até os ossos. A barca que André dirigia, envolta num redemoinho de vento, começou a se aproximar demais da nossa, girando loucamente como um pião.

Pedro: Porcaria, Tiago, solte mais esta vela! Vamos nos arrebentar!
Tiago: Caia fora daí, Tomé!... Agarre bem, João!... Mais forte, mais forte!

A quilha rangia como uma alma penada. As ondas levantavam as barcas deixando-as cair com estrépito sobre a superfície. Enquanto Felipe e Natanael tiravam a toda pressa a água que entrava sem cessar pelos costados, Tomé, dando um grito espantoso, abriu os braços e desmaiou, caindo sobre as cordas da popa...

Tomé: Aiii...!
Tiago: Um a menos!... Agarre bem, João!... Ei, cuidado, cuidado...!!!

Tiago e eu tratávamos de controlar a vela, mas então o vento fez estalar o mastro, partindo-o pela metade.

Pedro: Estamos perdidos! Vamos todos para o fundo do lago! Jesus sabia, por isso nos deixou sozinhos! Nos deixou sozinhos!... Estamos perdidos.

Quando nossa barca começava a fazer água pelos quatro costados, André berrou com mais força que os próprios trovões...

André: Ei, olhem lá,! Olhem lá! Lá na direção da orla!!
Felipe: É um fantasma! É o fantasma do lago! Ele vem buscar a gente!
Pedro: Que é isso, Tiago? Você também está vendo?... E você, João?
Tiago: Claro que estou vendo...! E ele vem vindo pra cá!
Felipe: Vai embora, fantasma, vai embora...! Esperem, eu sei uma oração contra fantasmas... Ai, como é mesmo que ela começa... Ah, sim!...”Fantasma, te digo, que Deus está comigo! Fantasma, te digo, que Deus está comigo!”
Tiago: Não seja estúpido, Felipe!

Caminhando sobre as revoltas águas do lago, uma figura branca e luminosa avançava bem devagar  em direção de nossas arrebentadas barcas. A lua havia apagado de repente sua tênue luz. E o mar parecia uma imensa boca negra disposta a engolir-nos. Tomé, que já havia despertado, tremia agarrado ao pedaço de mastro que ficara de pé. Estávamos aterrorizados e não tínhamos olhos senão para aquela misteriosa figura... De repente, o fantasma falou...

Jesus: Não tenham medo!... Sou eu!... Sou eu!...
Tomé: E qu-qu-qu-quem é eu?
Felipe: “Fantasma corre, que Deus me socorre! Fantasma corre, que Deus me socorre!...”
Jesus: Rapazes, sou eu!... Não tenham medo!
Tiago: Pedro, esta voz é de Jesus! É ele! É ele!

Quando reconhecemos Jesus, as águas do lago se tranqüilizaram e o vento deixou de soprar. Nossas barcas voltaram a mexer-se suavemente sobre as ondas...

Pedro: Jesus, se é você, diga para eu ir até onde você está!...
Jesus: Vem, Pedro, vem!

Ao ouvir a ordem, Pedro saltou da barca e começou a andar sobre o lago ao encontro de Jesus....

Pedro: Olhem!... Eu posso andar sobre a água!... Olhem!... Com um pé!... Com o outro!... Yupiii!... Sou o sujeito mais maravilhoso de toda Cafarnaum e de toda a Galiléia!... Yupiii!... Olhem isso, senhores.

Pedro fazia piruetas sobre as ondas, aproximando-se de Jesus, quando, de repente, um relâmpago abriu de lado a lado a abóboda do céu e o vento começou a bater as águas em um louco torvelinho...  Pedro, amedrontado, começou a afundar...

Pedro: Dê-me sua mão, Moreno!... Jesus, salve-me, que estou me afogando!... Ahgg...!

Jesus, caminhando tranqüilamente sobre as ondas se aproximou de Pedro e o agarrou por uma mão...

Jesus: Que pouca fé você tem, Pedro! Diga, por que você teve medo? Por que teve medo?...
Pedro: Tive medo porque me afogava! Me afogava! Me afoga... mãe afoga... me afo...!!!
Rufina: Pedro, Pedro, o que acontece? Você vai acordar as crianças!... Pedro, veja como você se enrolou na esteira, feito um caracol!... Acorde, homem!
Pedro: Ah... é que o mastro... era horrível... Ai, Rufi, você está aqui... puff!, que alívio... Ele nos salvou! Ele nos salvou!
Rufina: Mas, homem, tranqüilize-se, Pedro. E pare de gritar que a avó Rufa tem o sono mais leve que uma mosca...
Pedro: Ai, Rufi, ai, que alívio...Estamos a salvo!... Rufina, esta noite eu entendi tudo. Ele é o homem.
Rufina: Mas, o que você está dizendo?
Pedro: Rufi, veja só, nós íamos na barca. Veio uma tempestade espantosa. Tínhamos medo. Estávamos sós. A vela se rompeu, o mastro quebrou... Rompeu-se também nossa confiança. Tudo estava perdido. Então ele veio...
Rufina: Mas de quem demônios você está me falando?
Pedro: De Jesus, Rufi. Quando eu me afogava, ele me agarrou pela mão e me salvou. A tempestade acabou. E também acabou-se o medo. Estávamos salvos.
Rufina: Muito bonito, muito bonito... Farreando a noite toda, não? Pode-se saber, grande sem-vergonha, a que horas você veio se deitar, que eu nem percebi?
Pedro: Mas, Rufi, você não entende? Isto foi um sinal! Jesus é o homem!
Rufina: Que homem, Pedro? O que você quer dizer com tanto mistério?
Pedro: Escute o que lhe digo, Rufi. Abre bem as orelhas e guarda bem dentro de você o que vou lhe dizer, sob sete chaves, só para você. Eu creio que Jesus é o Messias.
Rufina: Mas, o que você está dizendo, diabo de homem? Vamos ver... está com febre?
Pedro: Não! Nunca estive mais contente! Acabaram-se as tempestades, Rufi! Acabou-se o medo!
Rufina: Pare de gritar, condenado! Olhe, esqueça isso, desenrole esta esteira e volte a dormir. Amanhã você terá outra vez a cabeça no lugar.

Pedro se jogou sobre a esteira. Mas, ao deitar-se, sentou-se de novo, como que empurrado por uma mola

Pedro: Rufina! E se isso não foi só um sonho. E se for algo mais?
Rufina: Claro que é algo mais... É um pesadelo...
Pedro: Não, Rufi. Nunca em minha vida vi uma tempestade tão espantosa, nem um mar tão revolto. Nunca em minha vida tive tanto medo e tampouco me senti mais seguro do que quando ele me agarrou pela mão... E se não foi só um sonho?... Olhe, Rufi, você está aqui, não é? Está ao meu lado?
Rufina: Mas é claro que estou aqui... E com os olhos quase fechando...
Pedro: Mas, tem certeza?... Não será que agora é que estamos sonhando?
Rufina: Ouça, Pedro, o primeiro galo. Pare com essa conversa fiada. Ande, deite de uma vez e tire outra soneca até que voltem a cantar.E deixe que eu tire a minha também... Estou moída...
Pedro: Está bem, amanhã eu lhe conto o resto... E não conte isso para ninguém... Eu creio que isso não foi um sonho... eu creio...
Rufina: Hummmm... Sim, está bem, amanhã você me conta... amanhã...

Pedro fechou os olhos e voltou novamente a dormir. Mais tarde, muitos anos depois, contou-me tudo isso. Então ainda não sabia dizer-me o que havia acontecido naquela noite. Mas lembrava disso como algo vivo e quente, tão vivo e tão quente como a mão de Jesus em que se havia apoiado para não afundar nas águas revoltas do lago.



No lago da Galiléia, por suas características geográficas, são freqüentes as tempestades repentinas, que se apresentam às vezes com uma força de autêntico furacão. Os pescadores saíam ordinariamente com suas barcas quando ainda estava escuro, pois as últimas horas da noite e as primeiras da madrugada favoreciam o achado de certos cardumes de peixes. Na Galiléia, como em qualquer outro lugar do mundo, o pescador é um trabalhador que sabe muito de madrugadas.

Ao longo de toda a Bíblia o sonho aparece como espaço em que Deus se revela ao homem. Ao contar-nos os sonhos de que Deus se valeu para dar a conhecer seus projetos, as Escrituras refletem um ponto de vista sobre a vida, habitual em Israel e na maioria dos povos antigos. Acreditava-se realmente que também pelo caminho obscuro dos sonhos Deus podia se achegar ao homem e o homem a Deus. São importantes no Antigo Testamento os exemplos de sonhos que revelam ao homem o que Deus quer deles (Gn 28,10-22 e 37,5-11;Num 12,6-8). Não devemos interpretar isso como uma coisa supersticiosa ou infantil. Ela encerra algo de verdade para nós ainda hoje se soubermos, como então aconselhavam os sábios de Israel, discernir o sentido do sonho (Eclesiástico 34,1-8). Não se trata de acreditar de pés juntos no que sonhamos, mas sim em abrirmos o coração a realidades que não se esgotam no que tocamos ou medimos ou contamos. Grandes experiências  interiores são tão reais quanto um tapa que nos dão ou um prato de comida que comemos, mas não podemos senti-las da mesma forma, nem sequer expressá-las da mesma maneira. Os limites do consciente e do inconsciente são também difíceis de precisar. E é possível também, pelas vias do inconsciente, chegar a descobrir verdades, experimentar com força sentimentos duradouros e inclusive tomar decisões importantes.

É preciso levar em conta que os evangelistas, ao escreverem, utilizaram diferentes estilos. E assim, nas páginas do evangelho encontramos narrações históricas, esquemas de catequese, relatos baseados em histórias do Antigo Testamento, relatos simbólicos... Este texto de Jesus caminhando sobre as águas contém uma mensagem simbólica. O mar para a mentalidade israelita era como o cárcere onde haviam ido parar, derrotados por Deus no começo do mundo, os demônios e os espíritos malignos. Entre eles, o poderoso Leviatã, monstro terrivelmente perigoso para o homem. Esta idéia negativa sobre o mar atravessa a Escritura até o último livro bíblico. Quando o Apocalipse nos descreve como será o mundo futuro, o Reino de Deus, diz que ali não haverá mar (Ap 21,1). Naturalmente, Deus tem poder sobre todos os espíritos do mar e Leviatã é para ele como um brinquedo (Jô 40,25-32). Pois bem, Jesus tem também este poder. Deus o deu a ele. E o entregou, não a um sábio, nem a um teólogo, nem a um exorcista, mas a um humilde camponês. Este texto, é, pois, a proclamação de que Jesus é o Messias de Deus. Exatamente o mesmo que Pedro descobre.

Como os demais discípulos, Pedro foi vendo pouco a pouco em Jesus o profeta que ressuscitava no país a esperança no Deus de Israel. O Messias anunciado durante tantos anos. Isto foi nele, como em todos os demais, fruto de um processo. Conhecer Jesus, entender sua mensagem e, sobretudo, comprometer-se a segui-lo, não é algo que acontece sem mais nem menos no batismo, nem nas horas de oração, nem nas reflexões comunitárias com nossos irmãos. É um longo processo.

(Mateus 14,24-33; Marcos 6,45-52; João 6,15-21)







60
DE DOIS EM DOIS



Pedro: Pois então, dito e feito: vamos nos esparramar por toda a Galiléia como formigas depois do aguaceiro!

Foi naqueles primeiros dias de verão, quando decidimos sair de Cafarnaum e viajar para outras cidades de nossa província para nelas anunciar o Reino de Deus. Éramos então um punhadinho de nada, mas Jesus dizia sempre que basta um pouco de sal para dar sabor a todo o guisado. E que uma lamparina colocada sobre a mesa, pode iluminar a casa toda...

Felipe: Um momento, aventureiros. Parem de tagarelar e ouçam o que eu tenho a dizer. Que eu saiba apregoar pentes e escovas, tudo bem, mas esse negócio de fazer um discurso divino... bem,  o fato é ...
Jesus: Escute, Felipe: a coisa é muito simples. Além disso, não é preciso falar muito. O que temos de fazer é reunir as pessoas e ensiná-las a pôr em comum aquilo que têm, como fizemos naquela vez dos pães e peixes, não se lembra?
Felipe: Sim, mas... e se eles não quiserem saber dessa conversa?
Pedro: Então sacode o pó das sandálias e se manda com a música para outro lugar. Não se pode forçar as pessoas a compartilhar o que não querem.
Tomé: É o que sempre eu digo, que no Reino de-de Deus ni-ninguém entra aos empu-empurrões.
Felipe: Não, empurrões mesmo vão nos dar os soldados quando nos virem juntando gente e revolucionando...
Mateus: Não se preocupe com isso, Felipe. A sopa a gente leva pra você lá na cadeia!
Tiago: E se um velho agiota nos corta o gorgomilo, vamos diretinhos para o seio de Abraão!
Jesus: Bem, já estamos preparados. Tiago e André irão para Betsaida... Tomé e Mateus a Coroazim... Felipe e Natanael a Magdala...
Felipe: Para morrer juntos!
Jesus: João e Pedro para Tiberíades... Simão e Judas para Séforis... Bartolomeu e Tadeu para Naim...
Tiago: Então, quando partimos?
Jesus: No primeiro dia da semana, que cada cabrito se mande para sua montanha!
Mateus: E quando voltamos a nos encontrar?
Jesus: Vejamos... dentro de uma lua, todos aqui em Cafarnaum! De acordo?

E fomos de dois em dois pelos povoados dos arredores... A verdade é que naqueles tempos cada um de nós imaginava o Reino de Deus à sua maneira. Ninguém tinha as idéias claras e a todos nos tremiam os joelhos. Mas uns aos outros nos animamos para ir anunciar a boa notícia entre nossos conterrâneos...

Quando passou uma lua, tal como havíamos combinado, regressamos todos a Cafarnaum e nos reunimos, como sempre, na casa de Pedro e Rufina...

Pedro: Ei, camaradas, sirvam-se de vinho, que graças a Deus todos voltaram e todos ainda temos os ossos no lugar!
Tiago: Muito bem falado, Pedro-pedrada! Depois dessas escaramuças, todo mundo já conhece as barbas de todos do grupo. Pelo menos o magrão e eu estamos mais fichados do que Davi e Betsabé... Foi um milagre conseguirmos escapar por aquelas bandas...
Pedro: Pois então, jarras pra cima, que isto precisa ser celebrado. Ei, Mateus... o que há com você?
Mateus: Não há nada!
Pedro: Então por que não brinda com a gente?... Não quer vinho?
Mateus: Se eu tomo um gole, não paro mais até beber o barril inteiro... Eu me conheço bem...
Tiago: Que é isso, Mateus?... Depois da viagem, um novo traje... O que aconteceu com você?
Tomé: É que um dia está-estávamos...
Mateus: Chega, Tomé. Acontece que me deu vontade de não beber mais. Antes me dava vontade de beber e agora acontece o contrário. É isso.
Tomé: Não, o que-que aconteceu foi que lhe disseram: sapa-sapateiro, remende pri-primeiro seus sapa-sapatos...

Tomé: Um dia, estávamos em Tiberíadres, nas esquinas da praça. E este Mate-te-us falando qu-qu-que tínhamos qu-qu-que nos unir e nos con-converter...
Um homem: Você não sabe o que está dizendo! Está mais bêbado que Noé  junto à parreira!
Outro homem: Quando tirar todo o vinho que tem nas tripas, então escutaremos você, condenado!... Venham, vamos embora companheiros, que este aí não sabe nem onde pôs os bigodes!

Mateus: Isso foi um dia. E outro. Cambada de intrometidos. Me encheram, sabem?
Tomé: Ma-ma-mas tinham razão, Mateus. Pa-pa-para que as coisas mudem, é preciso começar por varrer a própria casa.
Jesus: E assim, você parou de beber, Mateus...
Mateus: Bem, na verdade, é que em certos dias eu não agüento e... mas em outros eu agarro bem minhas duas mãos para não irem atrás do vinho, que porcaria... São poucos esses dias, no entanto, mas... alguma coisa já é alguma coisa. Ou não? Ou não?
Pedro: Então este gole é para o Mateus, que já deixou os goles!
Mateus: Bah! Ao diabo todos vocês!
Jesus: Bem, e qual foi a confusão em que se meteram o magrão e você, Tiago. Vamos, conte o que aconteceu...
Tiago: Rá! Diga melhor, o que não aconteceu. Vocês conhecem Betsaida. Lá mora o Onésimo que se crê o faraó do Egito, porque é o dono das barcas. Mas os pescadores não são bobos e estão de olhos abertos...

Tiago: Escutem, amigos. Meu avô sempre me repetia aquele ditado dos sábios: a corda de três fios é mais difícil de romper.
Um pescador: Explique-se melhor,companheiro.
Tiago: Isso quer dizer que quando um infeliz reclama seu direito, se vai sozinho, o partem como a um pelo de cabra. Mas se em vez de ser um são três, já é mais difícil. E se são trinta, muito melhor. Compreendem? O que é preciso fazer é trançar uma corda grossa, entre todos.
Outro pescador: Esse cabelo-de-fogo tem razão. Os de cima tiram vantagem em tudo. Mas nós somos mais que eles. E aí está a nossa força.
Outro pescador: O que acontece é que nós estamos desfiados, cada um olhando só pra si.
Tiago: Pois o que Deus quer é que todos olhemos para o mesmo lado. Onde há um grupo que empurra unido, Deus também empresta o ombro. É isto que nós temos feito em Cafarnaum.
Um pescador: Mas por lá as coisas são mais fáceis. Vocês se organizaram bem e se defendem uns aos outros. Aqui é o velho Onésimo que controla tudo.
Outro pescador: As barcas são do Onésimo, as redes são do Onésimo, todo o lucro é do Onésimo. E para nós, nada. Nossos braços, são a única coisa que temos.
Tiago: Bem, e daí? De que mais precisam? Abram bem as orelhas, amigos: se não fosse pelos braços de vocês, as barcas não se movimentariam, as redes não seriam lançadas na água, não é verdade? E Onésimo não ganharia nem um cêntimo.
Um pescador: Sim, mas... mas o que podemos fazer com os nossos braços?
Tiago: Cruzá-los. Isso. Cruzá-los e dizer a esse sanguessuga que aqui não se moverá nenhum remo, nem se lançará a rede grande, nem o anzol até que a diária não suba a dois denários.

Tiago: E assim foi! No dia seguinte, o cais de Betsaida parecia um velório: todos em silêncio, com os braços cruzados... Onésimo, o patrão, lançava espuma pela boca...

Patrão: Dois denários! Dois denários! Estão loucos? Quem é que está esquentando a cabeça de vocês, heim? É, eu já sei, esse cabelo-de-fogo de Cafarnaum e o outro magricela. E é um tal Jesus que anda por trás disso tudo. Malditos agitadores! Vou cortar a língua de vocês dois! Vou cortar sim!

Tiago: E vejam só, companheiros... sabem do melhor? Ganhamos a batalha. O sem-vergonha do Onésimo teve de subir as diárias!... E a coisa pegou como fogo na palha. Disseram-nos que os pescadores de Genezaré estão fazendo a mesma coisa, com os braços cruzados e pedindo dois denários.
Jesus: Pois então sirvam um outro brinde por Tiago e André que souberam trabalhar pela justiça e já têm seus nomes escritos no céu!
Mateus: E escritos também no quartel de polícia de Betsaida!
Pedro: Bem, Felipe, conte você agora. O que o Natanael e você fizeram lá em Magdala? Como foram as coisas por lá?
Felipe: Mal. Sim, mal e muito mal, porque o inimigo de vocês só foi esse safado do Onésimo. Mas o nosso foi o próprio Deus. E quem pode contra ele?
Jesus: Como que o inimigo foi Deus...?
Felipe: Bem, Deus não, mas essas idéias esquisitas que as pessoas fazem de Deus e que são mais difíceis de raspar que a sarna. Vocês vão ver, acontece que quando chegamos à cidade...

Felipe: Aqui todos, aqui!... Minha gente, escutem!... Hoje não venho vender nada... Percebam, até o carroção deixei em casa... Vejam, acontece que este careca e eu lhes trazemos uma boa notícia.
Uma mulher: Pois solte-a logo para ver se é melhor que as presilhas que eu comprei na semana passada!
Felipe: Amigos, prestem atenção!... Desentupam as orelhas... Bem, uma só, para que o que vou dizer não lhes saia pela outra... Hoje chegou a esta cidade de Magdala o Reino de Deus!... Sim, sim, é isso mesmo, o Reino de Deus.
Outra mulher: Olhe aqui, cabeção, deixe de histórias, que aqui a única coisa que chegou foi o reino das lagartas!
Felipe: Como foi que disse?
Mulher: A mesma coisa que você ouviu. Que todas as hortas de Magdala estão repletas de lagartas. Os tomates, as berinjelas... tudo cheio de lagartas. Um castigo de Deus, sua santa cólera!... E o pior é que se Deus não esfria o sangue, até meus melões vão se estragar porque as lagartas já estão caminhando até lá!
Felipe: Mas, de quê está falando, mulher ignorante? O que Deus tem a ver com os seus melões?
Mulher: Como o que tem a ver? Vai e pergunte ao rabino para ver o que ele lhe diz! Essa lagartice é um castigo do céu pelos muitos pecados desta cidade pervertida!
Outra mulher: E diga isso bem alto, vizinha, porque Deus deve andar mais furioso do que aquela vez em Sodoma. Porque aqui o diabo anda solto. Aqui só há tabernas e bebedeiras e zinhas que lhe piscam o olho em todas as esquinas. É por isso que Deus resolveu mandar sua vingança.
Mulher: E bem merecida, a que temos, você não acha, forasteiro?
Felipe: Ran-ran... Bem, eu creio que... que Deus não é tão terrível como vocês o pintam!
Mulher: Deus nos mandou esta desgraça e já deve estar preparando outras piores.
Felipe: Não mulher, não diga isso. Deus é boa gente e não gosta de ficar castigando as pessoas.
Mulher: Eu não disse? Primeiro, lagartas... e agora charlatães!


Felipe: Nem a corneta serviu para acalmá-los... Ali estavam todos obstinados na idéia deste Deus castigador. Puff... Olhe, sabe o que lhe digo, Jesus? Que se muitas coisas têm de mudar, a primeiríssima é esta idéia estapafúrdia que as pessoas fazem de Deus.
Pedro: É a mesma idéia que nós tínhamos antes, Felipe. Ou você já não se lembra mais? Faz só alguns meses e você e eu também víamos Deus assim, como um verdugo com o machado levantado. Mas agora, já acabou esta história. Agora, agora o vemos como... como um pai.
Felipe: Mas, Pedro, é que você não conhece esses madalenos. Têm a cabeça mais dura  que um pedregulho. Por mais que a gente explique...
Mateus: Bom, dizem que de tanto a água bater na pedra, acaba fazendo um buraquinho. Eu falo por experiência própria.
Jesus: Bem falado, Mateus. Todos nós começamos assim e, pouco a pouco, Deus nos foi amolecendo a moleira.
Felipe: Tomara que seja, Moreno, mas a verdade é que são muito velhacos...
Jesus: Mas eles têm Deus do seu lado, caramba! E isso é o que mais importa. Eu brindo a Deus nosso Pai que quis se dar a conhecer aos humildes e esconder-se dos orgulhosos! Sim, Felipe, repare em nós treze: não existe entre nós nenhum que seja sábio nem um grande senhor. Não. É que o Reino de Deus cresce de baixo para cima, como as árvores.
Felipe: Bom, Nata, então, prepare-se, temos de voltar a visitar o pessoal de Magdala... e as suas lagartas!
Jesus: Isso mesmo, Felipe. Porque isso não é coisa para um dia só. Veja, por que fomos de dois em dois, como os bois que puxam o arado? Porque o jugo não pode ser levado sozinho, mas com outro. Um só se cansa e desanima. Mas com um companheiro, a carga fica mais leve. Todavia, temos muito chão pela frente.
Tiago: Mas agora é o tempo certo e temos de aproveitá-lo. Trabalho não falta. Por toda parte os pobres estão levantando a cabeça e firmando os joelhos. É que eles cheiram que o dia da libertação já chegou!
Jesus: Muitos profetas quiseram ver este dia e não chegaram a ver. E muitos quiseram ouvir estas coisas e não ouviram...
Pedro: E muitos quiseram provar a sopa da Rufina e não conseguiram porque ela a tinha guardada para vocês. Uma sopa com dois dedos de manteiga que devolve a vida a um morto!... Ei, Rufi, mulher, pega logo esse caldeirão e vamos celebrar o regresso desse grupo de malucos!

Naquele verão, fomos de povoado em povoado por toda a Galiléia e, o Reino de Deus que havíamos recebido de graça, de graça também o anunciávamos a nossos irmãos.


O costume de enviar aos pares os mensageiros estava muito arraigada em Israel. Eram mensageiros portadores de uma notícia – naquele tempo não havia correio, naturalmente – ou levavam uma missão de ajuda ou de investigação, conforme os casos. Mas, geralmente, sempre iam aos pares. Por duas razões: a proteção, pois as viagens eram longas e podiam surgir muitos perigos e, por outro lado tratava-se de cumprir o estabelecido no livro do Deuteronômio (Dt 17,6 e 19,15), que no começo só se aplicou em processos judiciais, mas que depois se estendeu a outros campos. Segundo esta lei, só se considerava digna de crédito uma declaração de duas testemunhas, e ainda que um só falasse, o outro devia estar presente, ao seu lado, para confirmar seu testemunho e assim dar-lhe validade.

Lendo no evangelho as instruções que Jesus deu a seus discípulos ao enviá-los para anunciar o Reino de Deus, chama a atenção o fato de serem incompletas. Jesus não foi um moralista. E o evangelho não é uma coleção de normas para todas as situações da vida, como se bastasse para enfrentar-se com a realidade aplicar receitas ou “slogans”. Aos primeiros mensageiros do evangelho não se dá leis, se lhes dá um espírito. Toda sua vida deve ser um sinal de novos valores. Devem anunciá-los com a palavra mas sobretudo vivê-los. Neste episódio, os discípulos de Jesus vão deparar-se com situações que não estão descritas na letra do evangelho, mas o espírito com que as vivem e as superam, sim. É o que iam aprendendo em grupo, inspirados pela palavra de Jesus.

Os discípulos, como Jesus, se dirigem aos pobres, como destinatários privilegiados da boa notícia de Deus, o evangelho deve ser anunciado a eles, os últimos, para que comecem a viver e saibam que para Deus são os primeiros.

 A libertação que o evangelho anuncia, uma liberdade integral que abarca todo o homem e a todos os homens, tem necessariamente fases e mediações. Uma delas é a organização dos pobres. Deus não quer massas de mulheres e homens submersos na ignorância ou na apatia, passivos, submissos. Deus quer um povo de homens livres. Ele entrou na história precisamente fazendo  dos esmagados hebreus, escravos do faraó, um povo organizado e lutador. Ele os fez passar da servidão à liberdade. Toda libertação tem em algum momento deste processo esta etapa de tomada de consciência e de organização, na qual os pobres se irmanam por um ideal comum e conhecem a dignidade que têm como filhos de Deus. A um homem livre não cabe a imagem de um Deus que castiga, de um Deus que faz seus filhos sofrerem, de um Deus que leva em conta pequenas faltas para então se vingar... Também desta imagem falsa de Deus, desse ídolo, é preciso libertar os homens. E uma evangelização em profundidade, ainda que não se pretenda diretamente, tem sempre como fruto o libertar o homem de todas as idéias equivocadas sobre quem é Deus e quais são suas relações com os homens e com a história.

Assim como Jesus nos ensinou em sua vida e com suas palavras que não há oposição entre ação e oração, entre amor a Deus e amor ao irmão, não devemos criar nenhuma oposição entre o trabalho de evangelização e o de promoção humana, como se a promoção fosse uma tarefa horizontal, de menor categoria para o cristão por ser “política”, e a evangelização fosse superior, mais pura, por ser vertical e relacionar-nos diretamente com Deus. Esta oposição é falsa, pois entre evangelização e promoção humana há uma contínua inter-relação. Evangelizar o homem é anunciar-lhe a boa notícia de sua dignidade de filho de Deus e em nome desta mesma dignidade infinita o homem deve ser libertado da fome, da falta de cultura, da dependência econômica... Promover o homem é abri-lo a todas as realidades físicas, intelectuais, políticas... Também à realidade da fé, pois a dimensão religiosa é essencial ao ser humano. Não existe nenhuma contradição. Ambas as tarefas estão profundamente relacionadas. Assim o recordarão, uma vez mais, os bispos reunidos em Puebla: “A situação de injustiça... nos faz refletir sobre o grande desafio que tem nossa pastoral para ajudar o homem a passar de situações menos humanas a mais humanas. As profundas diferenças sociais, a extrema pobreza e a violação de direitos humanos que se dão em muitas partes são desafios da evangelização. Nossa missão de levar o homem a Deus implica também construir aqui uma sociedade mais fraterna.” (Puebla, 90).

Jesus brinda a Deus, dá-lhe graças pela volta de todos os seus amigos. A ação de graças ocupou um lugar muito importante dentro do estilo de oração de Jesus .Os sábios de Israel diziam que no mundo futuro só restaria a ação de graças. Já não seria necessário pedir perdão nem suplicar favores nem confessar pecados. Diante de Deus, só teríamos a gratidão. Com sua forma de fazer oração, Jesus adianta o mundo futuro, o Reino de Deus.

(Mateus 10,5-15; 11,25-27; Marcos 6,7-13; Lucas 9,1-6; 10,17-24)


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