segunda-feira, 16 de maio de 2011

Novela um tal Jesus do capítulo 37 ao capítulo 48

37
O GRITO DE LÁZARO



Aquele ano foi um ano ruim em toda a Galiléia. As tempestades de verão haviam arruinado as colheitas. O trigo perdido, o centeio perdido, os olivais estragados. A fome chegou a cavalo e bateu em todas as portas. E com a fome, chegaram as epidemias e o desespero. Os camponeses vendiam por qualquer preço os frutos das próximas colheitas que ainda nem haviam semeado. Os agiotas faziam das suas e emprestavam dinheiro a juros de 80 e 90 por cento. A cada dia apareciam mais mendigos nas cidades. Também em Cafarnaum...

Jesus: Olhe, João, lá vão eles outra vez...
João: Sim, Jesus, vão sentar-se na frente da casa do latifundiário Eliazim. Assim passam o dia, esperando que joguem o lixo para depois pegarem uma casca de melão ou alguma migalha...
Jesus: Não, não, isto não pode continuar assim!
João: Hoje são os camponeses, Jesus, amanhã seremos nós, os pescadores do lago. E depois, os artesãos. Isso não vai acabar nunca.
Jesus: Vamos com eles, João, vamos para frente da casa do Eliazim...

Um mendigo: Mas, o que você está dizendo, nazareno?... Deus?... Esquece, Deus não nos ouve. Está com as orelhas entupidas.
Jesus: Não, o que acontece é que vocês estão gritando muito baixo, não é verdade, João?
João: É isto mesmo. Venham, vamos todos juntos gritar bem forte até que as pedras se arrebentem!
Jesus: Até que o Deus do céu escute o alarido dos famintos e faça alguma coisa por nós.
Mendigo: Pois então vamos gritar, minha gente...!
Todos: Aaaah...! Aaaah...! Aaaah...!

Jesus: Uma noite, Deus estava descansando lá em cima, em sua casa no céu e Abraão passou em frente à sua porta...

Deus: Ah! Meu amigo Abraão, venha cá...!
Abraão: Pois não, meu Senhor.
Deus: Abraão, o que está acontecendo na terra, pois estou ouvindo tanto barulho? Você não está ouvindo? Escute bem...
Mendigos: Aaaah...! Aaaah...! Aaaah...!
Abraão: É como o ruído de muitos trovões anunciando tempestade. Ou como o rugido de um terremoto que se aproxima.
Deus: Você está enganado, Abraão. Não é nada disso. Escute bem...
Mendigos: Aaaah...! Aaaah...! Aaaah...!
Deus: São lamentos e gritos de homens e mulheres. E de crianças também. Não está ouvindo? São meus filhos, Abraão! Alguma coisa de grave deve estar acontecendo. Vai, desce imediatamente lá na terra e investigue o que está acontecendo. Ficarei esperando impaciente.
Abraão: Às ordens, meu Senhor. Vou imediatamente.

Jesus: E o velho Abraão calçou as sandálias, pegou seu cajado e se pôs a caminho tão rápido e obediente como naquela vez, quando saiu de Ur, na Caldéia, rumo a uma terra desconhecida... Em pouco tempo, Abraão voltou suando à presença de Deus.

Deus: Já voltou, Abraão?
Abraão: Sim, meu Senhor. Estive lá só por alguns segundos, e quase me arrebentam os ouvidos. O alarido dos homens é como uma caldeira fervente, como um vulcão a ponto de explodir. Os gritos são ouvidos nos quatro cantos da terra.
Deus: Mas, diga-me, o que está acontecendo? Por que meus filhos estão gritando?
Abraão: Eles têm fome. Por isso gritam.
Deus: Fome? Não pode ser. Quando eu criei a terra, no princípio de tudo, planejei bem as coisas. O que você está pensando?... Que sou um irresponsável?... Não, eu pus muitas árvores frutíferas, semeei muitas sementes que dão alimento abundante, fiz voar muitas aves no céu e coloquei a nadar muitos peixes nos rios e pus muitos animais de carne saborosa na terra. Tudo criei para alimento do homem. Isso sem contar as riquezas que escondi nas entranhas do mundo e dos mares. Não podem ter fome. Há comida suficiente para alimentar todos os homens que crescem e se multiplicam sobre a terra. Tudo estava previsto, tudo estava bem feito. Por que acontece isso agora?
Abraão: O Senhor se esqueceu de um detalhe.
Deus: Qual, Abraão?
Abraão: Os próprios homens. Acontece que eles começaram a repartir a terra... compreende?
Deus: Creio que sim... “Quem parte e reparte fica com a melhor parte”, não é isso?
Abraão: Exatamente. Foi isso que fez um pequeno grupo. Ficou com tudo. Tem toda a comida estocada em seus armazéns.
Deus: E os outros, fazem o quê?
Abraão: Os outros ficam gritando, sentados à porta das casas dos ricos, esperando que joguem o lixo pela janela, para pegar os restos e comê-los. Têm muita fome.
Deus: Não posso acreditar no que você está me dizendo, amigo Abraão... É isso que meus filhos fazem na terra?
Abraão: Exatamente isso, Senhor.
Deus: Quando ouço estas coisas, Abraão, perco a paciência. Fico tão furioso que tenho vontade de chamar todas as nuvens do céu, como já fiz uma vez nos tempos de Noé, e dar-lhes ordem de dilúvio, que chova sem parar até afogar a terra. Porque fico envergonhado de ter uns filhos assim, que não têm um coração de carne, mas uma pedra escondida no peito.
Abraão: E o que podemos fazer, meu Senhor?
Deus: O que podemos fazer?... Por acaso não sou eu o juiz do céu e da terra?... Miguel, Rafael, Gabriel e Uriel, venham cá, agora mesmo!

Jesus: Os quatro arcanjos se apresentaram num piscar de olhos...

Deus: A terra está sob juízo. Desçam agora mesmo até um desses que gritam de fome e peguem sua declaração. Tragam-me também um desse grupinho que está se banqueteando, desses que têm as tripas cheias e os armazéns cheios também. Quero interrogar os dois. Vão, depressa!

Jesus: Os arcanjos deram meia volta e desceram ligeiro à Terra. E se aproximaram de onde vinha a gritaria. Miguel e Rafael agarraram pelos ombros um daqueles que morriam de fome. Gabriel e Uriel fizeram o mesmo com o rico que também morria, mas estufado... E os dois foram levados diante do tribunal de Deus.

Deus: Está aberta a sessão. Vejamos, você primeiro, como se chama?
Lázaro: Lázaro, Senhor.
Deus: Você é um daqueles que estavam gritando lá em baixo, não é verdade?
Lázaro: Sim, Senhor.
Deus: E posso saber por que você e seus companheiros faziam tanta gritaria?
Lázaro: Porque nossos filhos morrem de fome, porque nossas mulheres têm os peitos secos, sem uma gota de leite para alimentá-los. Porque os joelhos de nossos homens tremem depois de sete dias sem comer. Por isso gritamos. Gritamos dia e noite até que a justiça seja feita. Olhe para mim, Senhor, olhe como estou... O Senhor pode contar cada uma de minhas costelas... Formam-se feridas aqui e ali, onde os ossos não encontram carne e arrebentam a pele esticada... Então vem os cães a lamber-me e eu deixo porque a saliva do cachorro alivia a ferida da fome.
Deus: Não diga mais nada, filho. É o suficiente... Você, Abraão, quer fazer alguma pergunta?
Abraão: Você diz que tem fome... Mas alguns acham que isso acontece porque vocês não gostam de trabalhar. Porque são preguiçosos.
Lázaro: Não, pai Abraão, não acredite nessa história. Toda nossa vida não foi mais que suor e trabalho, dobrar o lombo como os animais. Mas são eles, os ricos, os que bebem nosso suor e chupam nosso sangue. Eles nos espremem como uvas no lagar. Nos esmagam como azeitonas sob a pedra do moinho. São eles que têm recolhido tudo e nem as migalhas de sua mesa nos deixam comer.

Jesus: Deus tinha os olhos marejados ouvindo a declaração do pobre Lázaro. Quando acabou de falar, Deus se levantou, avançou alguns passos e encarou o rico...

Deus: E você, quem é?
Epulão: Eu me chamo Epulão.
Deus: O que você tem a dizer diante do que meu filho Lázaro declarou?
Epulão: Bem, francamente, eu não sabia nada disso, eu não...
Deus: Você sabia, sim...! Ou você é surdo? Não, você ouve perfeitamente. Por que não escutou os gritos de todos aqueles que estavam sentados diante de sua porta, berrando de fome, pedindo que compartilhasse com eles o que lhe sobrava?... Eu os escutei daqui do céu, e você não os ouviria já que estava junto deles?
Epulão: Senhor, eu... sabe o que é?... Na festa havia muito barulho e... não conseguia ouvir.
Deus: Mentiroso! Agora sim você vai ouvir. Abre bem as orelhas porque vou dar minha sentença: você é acusado de assassinato, rico Epulão; é acusado de haver matado de fome seus irmãos ou de deixá-los morrer, o que dá no mesmo.
Epulão: Mas, Senhor, a fazenda era minha, o trigo era meu, os armazéns eram meus, de minha propriedade... por que tinha de dar o que é meu a este cujo nome eu nem sei?
Deus: Meu, meu, meu! Com que direito você chama de seu o que não é seu? O mundo e tudo o que há nele fui eu quem fiz. Eu o criei desde o princípio. É meu. E eu o empresto a quem eu quiser. Quem é você? O que você tem que não haja recebido? Nu você saiu do ventre de sua mãe e nu voltará para o ventre da terra... A única coisa que é sua é a cinza, esta é sua única propriedade.
Epulão: Tenha piedade de mim, Senhor, tenha piedade de mim...
Deus: Você nunca teve piedade de seus irmãos. Quis ficar sozinho, e ficará sozinho para sempre.
Deus: E você, Lázaro, venha descansar. Já sofreu bastante.
Lázaro: Não posso, Senhor. Como vou descansar, sabendo que meus companheiros continuam gritando lá em baixo?... Não os ouve?
Deus: Tem razão, filho... pensando melhor, sabe o que vou fazer? Vou descer com você à Terra. Abraão!
Abraão: Às ordens, meu Senhor.
Deus: Abraão, empreste-me suas sandálias.
Abraão: Sim, meu Senhor.
Deus: Você ficará aqui em cima, Abraão. Aqui há paz e glória. Mas a Terra é um inferno por causa do egoísmo de uns contra os outros. Eu faço mais falta lá em baixo, no meio da gritaria dos meus filhos.
Abraão: Mas, Senhor, ficou louco? Como vai deixar vazia sua casa aqui no céu?
Deus: Não importa. Minha casa está lá em baixo, com os que não têm casa, com os milhares de lázaros como este que não têm nem onde reclinar a cabeça. Vamos, Lázaro, depressa! Vamos começar um Reino de Justiça para os pobres do mundo. Eu estarei com vocês hoje e sempre, todos os dias, até que as coisas mudem.

Um mendigo: Mas as coisas não mudaram, amigo. Cansamos de gritar e, olhe só... a porta do latifundiário continua fechada. Dom Eliazim é sovina e cruel como o rico da sua história.
Jesus: Bah! Dele e de gente como ele não há muito que esperar. Mas olhem, outras portas se abriram... Ei, dona Ana, venha cá um momento!
Uma vizinha: O que foi? Que gritaria estão fazendo, heim? Estão arrebentando meus ouvidos.
Mendigo: Estamos com fome.
Vizinha: Bem, na verdade eu também não tenho muito, mas... Vamos ver se colocamos um pouco mais de água na sopa!

O velho Samuel também abriu sua porta. E Joana, a mulher de Lolo. E Débora. E o corcunda Simeão...
As portas dos pobres se abriam para receber outros mais pobres que eles... Sim, o Reino de Deus estava perto de nós...



Na Palestina, como no resto do mundo antigo, as catástrofes naturais – que o homem não sabia nem prevenir nem dominar – eram causa de grandes carestias que açoitavam periodicamente o país. Fortes secas, furacões, chuvas torrenciais destruíam as colheitas, principal fonte de renda para a maioria da população. Situações assim determinavam uma forte subida dos preços dos alimentos básicos. Aumentavam os mendigos nas cidades e nos caminhos. Os especuladores e atravessadores tiravam vantagem da situação. Exatamente igual ao que acontece hoje em dia.

Em todas as culturas existem contos nos quais se descreve a mudança de sorte que experimentarão os homens no mais além. São uma forma de expressar a rebeldia popular diante das injustiças da história. Baseando-se em narrações desse tipo, Jesus contou a parábola do rico Epulão (opulento) e do pobre Lázaro. Entra na série das parábolas nas quais quis mostrar aos seus ouvintes, de uma forma dramática, as exigências de justiça que tinha o Evangelho. O nome de Lázaro – que significa “Deus ajuda” – tem importância na parábola: Deus ajuda o pobre, por mais que na vida tenha sido “o que não conta”.

Na parábola, Deus põe em juízo, na pessoa de Epulão e de Lázaro, os ricos e os pobres. E ao ouvir as razões dos dois, toma partido de Lázaro. A dor dos pobres é a dor de Deus. Ao contrário, o rico é surdo a esse grito de angústia. A riqueza endurece o coração do homem e tapa seus ouvidos. Por isso o rico não pode entrar no Reino de Deus – que é um reino de igualdade – se não renuncia a suas riquezas.

No mundo atual, há alimento suficiente para que todos os homens de todos os países possam comer bem. E há suficiente matéria prima para que cada família possa viver uma vida digna. É falso que o mundo esteja super povoado. A maioria dos países do Terceiro Mundo está vazia. É falso também que seja a quantidade da população a causa da pobreza de tantos milhões de pessoas. A causa da pobreza das maiorias é a excessiva riqueza de uns poucos. A muitos falta, porque a alguns sobra. Deus não tolera esta situação. Ele fez o mundo, suas riquezas, seus frutos, suas minas, em abundância para que fossem suficientes a todos. Mas a ambição de uns poucos acentua dia a dia a diferença entre ricos e pobres. Os alaridos dos pobres – gritos de angústia, de protesto e de rebeldia – chegam aos ouvidos de Deus. E sua forma de responder é tomar partido por sua causa. Deus fica do lado dos pobres e também luta por eles. A causa da libertação dos pobres deste mundo é a causa de Deus. Sempre que se consegue uma maior igualdade entre os homens se faz realidade o evangelho de Jesus.

Ainda que a parábola fale do além, da justiça que Deus fará na outra vida, a mensagem constante do Evangelho é para agora, para o aqui. Por isso, neste episódio, Deus coloca as sandálias de Abraão e desce à terra para começar a libertação dos famintos: Este é Jesus, o mensageiro de Deus, o porta-voz da pressa que Deus tem em fazer andar seu plano de repartir os bens da terra com todos os seus filhos.

Ser cristão é deixar de dizer: “Isto é meu” para dizer: “isto é nosso”. O rico se obstina em defender sua propriedade. Ao fazer isso, contradiz o projeto de Deus. Dizia Santo Ambrósio: “Tu não dás ao pobre do que é teu, mas devolves o que é dele. Pois o que era comum e que foi dado para uso de todos, tu o usurpaste. A terra é de todos, não só dos ricos”. (Livro de Nabuthe). Ser cristão é compartilhar, criar comunidade, também de bens. O pobre é mais livre e está sempre mais capacitado que o rico para pôr em comum com outros o pouco que tem e para aprender a dizer “nosso”.

Esta parábola foi utilizada comumente para falar do inferno e de um Deus cruel que nega até uma gota de água ao rico Epulão, que quase se converteu ao ver os castigos que o esperavam... Jesus não quer meter medo com as chamas do inferno, nem apresentar um Deus vingativo. O que ele quer é mostrar a severidade, a radicalidade do juízo de Deus que não se deixa enganar pelas desculpas do rico. E deixar bem claro que no Reino de Deus não há lugar para os que fecham suas entranhas à miséria de seus irmãos: só os que compartilham seu pão com os famintos terão um lugar junto a Deus.

(Lucas 16,19-31)

































38
ACONTECEU EM NAIM



Naqueles tempos, foi grande a miséria em todo Israel. Como uma mancha de azeite que se espalha, a fome chegou a todas as cidades das margens do lago e a todos os povoados do campo, entrou nas casas dos pobres e ficou ali como amarga companheira de cada dia e de cada noite.

Noemi: Tome, filho... Contente-se com este pão e...
Abel: Contente-se, contente-se!... Maldição de vida, trabalhar de sol a sol como um animal para isso, um pedaço de pão duro!
Noemi: Ai, filho, o que eu vou fazer se não tem mais que isso?!... Estamos devendo para todo mundo, ninguém quer nos emprestar um centavo sequer, eu não posso...
Abel: Não é você, mamãe, não estou dizendo isso para você... É que ninguém agüenta mais isso... E amanhã acontece a mesma coisa, continuar a encher os armazéns desse maldito Eliazim, e voltar pra cá de noite para mastigar um pedaço de pão duro. Isto não é vida, maldição, isto não é vida!
Noemi: Abel, filho, não amaldiçoe assim, que Deus pode nos castigar...
Abel: E mais isso ainda! A gente passa uma vida desgraçada e ainda vem Deus para castigar-nos. Pois que nos castigue o tanto que quiser, que pouco me importa!... Ao diabo com Deus e com Eliazim e com todo mundo...! Ai...! Ai...! esta dor...!
Noemi: Filho, filho, o que há com você?
Abel: Nada... não é nada, mamãe... Deixe pra lá, vou me deitar...
Noemi: Está se sentindo mal, filho?
Abel: Estou cansado, como se me tivessem moído a pauladas... e um frio pelo corpo todo...
Noemi: Ai, meu Deus, Senhor! Quando te lembrarás de nós, quando?

Uma vizinha: Deixe-me dar uma olhada, vizinha... Puxa, este menino está ardendo de febre ... e está com uma cara nada boa...
Noemi: Ai, Santo Deus! O que eu faço agora? O que eu faço?
Vizinha: Não se desespere, vizinha. Olhe, vou agora mesmo pra casa e lhe preparo um chá de limão amargo e você vai ver como ele melhora...
Noemi: Você acha mesmo, vizinha?
Vizinha: Você verá que sim... Bem, e se não, o que vamos fazer? E você não se angustie, Noemi, que o que está destinado para alguém, nem Deus tira, nem o Diabo põe.

Naquela noite veio o médico...

Médico: O rapaz está grave, senhora. Estas febres negras enrijeceram todo o corpo dele.
Noemi: Faz dois dias que ele não diz uma palavra, doutor. Já nem sabe quem sou eu... Ai, meu filho, meu filho!
Médico: Não posso fazer nada por ele.
Noemi: Ele vai morrer?
Médico: Saber de morte é coisa de Deus e não de nós médicos.
Noemi: Se ele morrer, o que eu vou fazer?... Ele é o único que eu tenho, o único...

O único filho que Noemi tinha era aquele rapaz... Fazia vários anos que seu marido havia morrido. Desde então, para criar seu filho, Noemi havia trabalhado no campo, tirando forças de onde podia. Suas mãos estavam cheias de calos e seu rosto, ainda jovem, cheio de rugas. Naquele ano, como em tantas outras casas de Israel, a fome havia chegado à casa de Noemi. E com a fome, a doença. Na madrugada daquele dia chegou a morte.

Noemi: Abel, filho! Abel!... Abel!...
Uma vizinha: Não chame por ele, Noemi. O menino está morto!
Noemi: Não pode ser!... Não pode ser!
Vizinha: Conforme-se, mulher. Deus o deu, Deus o tirou.
Noemi: Mas eu precisava tanto dele!... Era o único que eu tinha!... Eu vivia para ele!... Agora, para que vou querer viver? Para quê?
Vizinha: Conforme-se, Noemi, tenha paciência.

Noemi fechou os olhos de seu filho Abel e, ajudada por suas vizinhas, lavou seu corpo e o envolveu num lençol branco e limpo. Pouco depois apareceram por lá as carpideiras, aquelas mulheres que choravam nossos defuntos e avisavam a todos com seus cantos tristes a chegada da morte. Em todas as casas do pequeno povoado de Naim, ouviram-se seus gritos de dor. E os amigos de Noemi foram consolá-la e preparar o enterro de seu filho.

Uma vizinha: Ai, Noemi, e saber que o Abel estava até há uma semana atrás trabalhando com você no campo... Assim, tão de repente!...
Noemi: Foi a febre negra. Faz quatro dias que caiu de cama e não se levantou mais... Ai, ai, meu Deus! Ai, meu Deus.

Noemi revolvia os cabelos e arranhava o rosto, chorando, sem consolo. Junto ao morto, as carpideiras faziam o mesmo. Alguns homens tocavam em suas velhas flautas a música triste dos velórios. Enquanto isso, outros preparavam a rede onde iam colocar o rapaz para levá-lo a enterrar.

Outra vizinha: É o destino, Noemi. O destino de cada um está escrito no livro do céu. Por mais que você chore, suas lágrimas não poderão apagar. Conforme-se.
Noemi: Estou sozinha agora! Fiquei sozinha! Não tenho marido que me dê outros filhos! Nem tenho outros filhos que me dêem netos!... Para que me servem meu ventre, meus peitos e minhas mãos? Para nada!
Vizinha: Conforme-se, mulher, é o destino!
Noemi: Por que? Por que comigo?... Era o único que eu tinha!
Vizinha: As febres negras são febres muito más!
Noemi: Mas ele era muito jovem. Não tinha que morrer! Não tinha que ter morrido!
Vizinha: Conforme-se, mulher, conforme-se...

Por aqueles dias de fome, Pedro e eu fomos com Jesus até Nazaré. Jesus queria levar à Maria, sua mãe, um pouco de dinheiro e ver como estava. Antes de regressar a Cafarnaum, passamos por Naim... Ali vivia um primo de Jesus e Maria nos havia dado um recado para ele. Naim é um povoado pequeno, pegado à encosta do monte Gabial e guardado muito de perto pela altura do Tabor. Quando nos acercávamos de Naim, escutamos ao longe a música triste das flautas e os lamentos das mulheres...

Pedro: Maldição! Já é o terceiro defunto que encontramos por esses caminhos... Desde que saímos de Cafarnaum, não fazemos outra coisa que topar com enterros.
João: Deve ter sido outra vez essas febres negras. Deve ser uma epidemia.
Jesus: Que epidemia! É a fome, João, a fome. Os pobres estão morrendo de fome. Não houve colheita, os preços subiram, os impostos também. Como essa gente não vai morrer? E a isso chamamos febres negras...!

Pelo caminho que sai do povoado, o enterro se aproximava de nós. Na frente de todos, as carpideiras, vestidas de saco, golpeavam com força o peito desnudo e arrancavam os cabelos enquanto gritavam angustiadamente. Atrás, sustentado em uma rede por quatro homens, vinha o morto. Ia envolto em um lençol branco. Então o vimos... Era um rapaz jovem. Não tinha ainda barba no rosto. Ao lado, a que devia ser sua mãe, com o rosto cheio de arranhões, chorava e rasgava as vestes levantando seus braços ao céu. Acompanhavam-na muitos homens e mulheres do povoado... Quando o cortejo passou perto de nós, nos unimos a ele...

Uma vizinha: Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!... Pobre Noemi! Pobre Noemi! Pobre Noemi!
João: Quem é o morto, mulher?
Outra vizinha: Abel, o filho da Noemi. Sua mãe é viúva já faz seis anos. Este era o único filho que tinha... Que desgraça!... Morrer tão jovem!
Jesus: Este rapaz não tinha que morrer!
Vizinha: Claro que tinha de morrer! Foram as febres negras. Essa doença não perdoa. Ai, meu Deus! Ai, Senhor!

O cortejo ia pelo caminho estreito e empoeirado que ladeia a colina de Naim e sai ao fundo, onde ficava o pequeno cemitério...

Vizinha: Morreu esta manhã, quando o sol ia nascendo...!
Jesus: Não morreu, mulher... Não diga que morreu. Diga melhor, que o mataram. Sim, sim... quem matou este rapaz foram os que subiram os preços do pouco trigo que as chuvas nos deixaram! Mataram-no os que continuam se enriquecendo enquanto os filhos de Israel morrem de fome!

Os que iam ao final do cortejo, voltaram para olhar Jesus, que havia dito aquelas palavras, levantando sua voz por cima dos lamentos e das flautas. Naquele momento, a agitação foi se estendendo no meio daquele cortejo  e, os que levavam o morto se detiveram também. Todos nos olhavam...

Um vizinho: Mas, o que estão gritando esses forasteiros aí atrás? Mais respeito, caramba!
Uma vizinha: Este homem disse que mataram Abel, que não foram as febres negras nem nenhuma outra febre, mas que morreu de fome.
Outra vizinha: E o que importa isso? O morto, morto está!
Noemi: Meu filho! Meu filho! Ai, meu filho!
Vizinho: Sigam em frente! Chega de conversa fiada! Vamos lá! Continuem tocando as flautas!
Noemi: Deus meu, por que o tiraste de mim? Por que?...

Jesus, sem dizer uma palavra mais, começou a abrir caminho entre os tocadores de flauta e os camponeses de Naim. Pedro e eu o seguimos. Quando chegamos junto à mãe do rapaz, Jesus se deteve e começou a rezar em voz baixa a ladainha pelos mortos de Israel. Ao seu lado, as carpideiras continuavam chorando, cumprindo seu ofício...

Noemi: Meu filho! Meu filho morreu! Era o único que eu tinha!
Vizinha: E vocês, o que está acontecendo com vocês que vêm estorvar o enterro?

Jesus se aproximou da mãe do rapaz...

Jesus: Vamos, mulher, não chore mais...

Os olhos de Noemi, rasos de lágrimas, deixaram de olhar o céu fechado e escuro e se voltaram para Jesus...

Noemi: Eu perdi tudo o que tinha!... Tudo!... Tudo!...
Vizinha: Vamos, Noemi, conforme-se.
Noemi: Não quero que ele tenha morrido! Não quero, não quero, não quero...!
Jesus: Deus tampouco quer que seu filho tenha morrido. Deus tampouco se conforma.
João: Venha, Jesus, vamos sair daqui agora mesmo. Não podemos fazer nada.
Jesus: Não, João, deixe-me vê-lo...

Então Jesus se aproximou da rede onde levavam o rapaz morto e ficou olhando-o. Também ele tinha lágrimas nos olhos. As carpideiras rodearam o cadáver, com seus cabelos revoltos e seus gritos de dor. Não paravam de lamentar-se...

Jesus: Como se chamava seu filho?
Noemi: Abel, chamava-se Abel...
Jesus: Claro, Abel... A história continua se repetindo... Abel... Onde estão os caíns que o mataram? Até quando, Deus de Israel? Até quando estarás surdo ao grito de tantos filhos teus que morrem de fome?... Até quando nossas mães chorarão seus filhos que morrem antes do tempo? O sangue deste Abel clama a Deus desde a terra. Este rapaz não tinha que morrer, não pode morrer... Abel, levante-se, Abel...!

Jesus se inclinou sobre o rapaz morto, o tomou por um braço e o apertou a si. E Abel abriu os olhos muito grandes e assustados, como se despertasse de um longo pesadelo...

Noemi: Filho, meu filho...!

Ao ver aquilo, os homens que levavam a rede a deixaram cair no chão e largaram a correr, enlouquecidos. Atrás deles, corriam também as carpideiras e os tocadores de flauta e os vizinhos de Naim. Corriam e gritavam espantados... Pedro estava branco como o pó do caminho e minhas pernas tremiam. Conosco só ficou a mãe que olhava seu filho com os olhos cheios de lágrimas, sem atrever-se a tocá-lo.

Noemi: Abel, Abel, meu filho...!

Jesus parecia cansado, como quem acaba de lutar uma dura batalha. Em toda a Galiléia soube-se muito depressa o que havia acontecido em Naim. E as pessoas diziam: “Temos um profeta entre nós. Deus veio ajudar seu povo”.


A fome é um magnífico caldo de cultura para a maioria das doenças. Ao agravar-se a fome em épocas de seca ou de perda das colheitas, produziam-se autênticas epidemias (peste, febres), das quais não se sabia bem a origem nem muito menos o modo de combatê-las.

Naim é uma pequena cidade, situada a 15 quilômetros de Nazaré. Seu nome significa “Bonita”. Está situada nas encostas do Monte Gabial e guardada de perto pela altura do monte Tabor. Atualmente, uma pequena igreja franciscana recorda a passagem de Jesus por esta aldeia.

Os israelitas expressavam sua dor diante da morte com diferentes gestos. Rasgavam as vestes, soltavam os cabelos, golpeavam o peito, jogavam cinza na cabeça... Desde que se tinha notícia da morte de alguém, até o enterro do cadáver, chorava-se o morto com um pranto ritual, às vezes escandaloso. Não só o choravam seus vizinhos e parentes, mas também acorriam as carpideiras, que tinham por profissão chorar os mortos e, inclusive, recebiam dinheiro por fazê-lo. O velório e o enterro eram acompanhados por tocadores de flautas. As carpideiras choravam, gritando ou cantando as “lamentações”, que quase sempre começavam com um “ai”. Mesmo depois do enterro, esses lamentos se repetiam ao longo de sete dias, que era o tempo que durava o luto em Israel.

Quando Jesus responde a João Batista sobre o que está fazendo na Galiléia, enumera cinco sinais da chegada do Reino de Deus: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem e os mortos ressuscitam (Mt. 11,1-6). Todos eles são sinais dos tempos messiânicos. Lucas incluiu esse episódio no seu Evangelho. A boa notícia que Jesus veio trazer-nos é também esta: Deus se rebela diante da morte de seus filhos. Deus não aceita que a morte seja considerada um destino fatal. Ele é Deus de vivos e por isso luta contra a morte.

Neste episódio, o filho da viúva de Naim se chama Abel. É uma forma de indicar que se está falando de um “tipo” de morte. Abel, o segundo filho de Adão e Eva assassinado por seu irmão Caim, será sempre o tipo de homem justo assassinado injustamente. Também morrer de fome é morrer injustamente, é um assassinato. Deus não quer que nenhum de seus filhos morra assim. O sinal de Jesus levantando Abel da morte não é, pois, um gesto de pura compaixão, mas a expressão firme de Deus que se rebela diante desta morte injusta e, como no Gênesis, continua nos perguntando hoje diante do faminto: “O que você fez com seu irmão?”(Gen 4,9).

Diante da morte por fome de milhões de homens, ninguém pode dizer: Não sou responsável, nada tenho a ver com este problema, eu não posso fazer nada. A fome é atualmente o problema número um deste mundo. Porque duas de cada três pessoas que vivem no planeta padecem de fome ou desnutrição em qualquer de suas formas. Atrás da fome, não vem somente a morte, mas uma longa lista de enfermidades – algumas hereditárias – e de problemas familiares incontáveis. Em muitos países se passa fome. Em uma sociedade onde a fome é uma estrutura que aprisiona a maioria, o Reino de Deus começará quando esta situação desaparecer e começar a abrir caminho para a vida por meio de uma boa alimentação. Se ser viúva e ver morrer o único filho é realmente uma situação extrema de dor, não existe socialmente situação de mais extrema injustiça do que a morte por fome em um mundo no qual uns poucos países se empanturram e estragam cada dia a comida, cegos diante da miséria de seus irmãos.

A morte é o final natural da vida. Sempre é mais dolorosa quando chega antes do tempo: quando alguém é jovem, quando nem teve a oportunidade de viver como um ser humano... Há países latino-americanos – Haiti, por exemplo – em que a expectativa de vida não passa dos quarenta anos. (Nos países desenvolvidos chega a setenta e cinco anos). Nos países do terceiro mundo pode-se afirmar que milhões de homens e mulheres morrem “antes do tempo”. Os que morrem de fome, ainda que morram em sua cama, são mortos-matados. Seu sangue, como o de Abel, clama a Deus desde a terra.

(Lucas 7,11-17)



















39

UMA TEMPESTADE NO LAGO




Jesus: ... E então chegou o samaritano com seu camelo...
Zebedeu: Bem, bem, rapaziada, por hoje já chega, não é mesmo? ... Chega de casos e histórias que amanhã temos de madrugar. Vamos, todo mundo pra cama!
João: Ah, velho, não seja tão duro. Vai deitar-se você, se quiser, mas deixe a gente em paz... E então, o que aconteceu com o samaritano, Jesus?
Jesus: Bem, acontece que o homem chegou e...
Zebedeu: Mas vocês estão surdos? Já disse que é todo mundo pra cama!... Claro, deitam-se tarde e depois ficam dormindo nas barcas. E você, nazareno, guarde a língua para uma outra vez.
João: Mas deixe que ele acabe esta, velho. Já está na metade. Vamos lá. O que aconteceu com o samaritano?
Zebedeu: Não, não e não. Se quer acabar a história, madrugue você também e venha pescar conosco e dentro do barco conte todas as histórias que quiser. Mas por hoje, acabou-se o que era doce.

Em algumas vezes na casa de Pedro e Rufina, outras na casa do meu pai Zebedeu, nos reuníamos com Jesus para jogar dados, contar histórias, rir com meia dúzia de piadas repetidas. Para esquecer do cansaço da jornada. E íamos até às tantas da noite sem nos darmos conta...

Pedro: Sim, homem, Jesus, venha amanhã pescar com a gente. Desde que você chegou a Cafarnaum ainda não enfiou nem o dedinho na água do lago.
Jesus: Pescar, eu? Isso é coisa pra vocês que moram na costa. Eu não entendo nada disso!
Zebedeu: Pois aprende, caramba. “Aprender não ocupa espaço”, dizia meu falecido pai.
Salomé: Assim dizia, mas ele nunca aprendeu nada. Era mais xucro que um burro de carga!
Jesus: Não, não, Pedro, deixe-me no meu canto com meus tijolos e minhas ferramentas. Nós do interior não somos muito amigos da água.
João: Venha, moreno, anime-se, tem sempre que haver uma primeira vez.
Pedro: E amanhã será um bom dia para pescar, sim senhor.
Tiago: Não sei não, Pedro... Dizem que o Grande Cofre retumba...
Salomé: Pois então não vão muito longe. Hoje o sol estava vermelho como um tomate. É mau sinal.
Pedro: Mas o que é que vocês estão dizendo? O lago está mais quieto do que dentadura de pobre!
Tiago: Este lago é traiçoeiro, Pedro. Tudo parece muito tranqüilo e o vento do Carmelo cai como uma pancada sobre a água.
Pedro: Não seja agourento, Tiago. Eu garanto que o tempo está bom.
Tiago: É, diziam que agourento era o coxo Filemon, e olhe agora onde ele está, no fundo do lago!
Pedro: Vai pros diabos, cabelo-de-fogo. Hoje fez um bom tempo e amanhã será ainda melhor!
Tiago: Pois eu digo que pode haver tempestade! O Grande Cofre retumba!
Zebedeu: Já chega, caramba! Quando não são as histórias são essas pendengas. Vamos lá, todo mundo pra cama! Amanhã sairemos bem cedo para que o dia renda bastante!

O Grande Cofre era o nome de uma das rochas situadas entre Betsaida e Cafarnaum. Os velhos marinheiros diziam que ali se ouvia retumbar as ondas do Grande Mar, quando uma tempestade se aproximava...

Zebedeu: E aí, seus molóides, levantem-se...! Eu não disse?... Ponham-se agora a contar histórias!... De pé, todo mundo!

Eram quatro horas da madrugada quando meu pai Zebedeu começou a despertar todos nós...

Zebedeu: E você, nazareno, não disse que vinha também?... Então vamos logo!...Limpe a remela dos olhos e apresse-se, vamos...

Tomamos um caldo de raízes que minha mãe Salomé havia preparado e nos pusemos a caminho, como todos os dias, até o cais...

Zebedeu: Às barcas, rapazes, que o tempo está bom e temos de aproveitar a manhã! Hoje será um dia de sorte!

E saímos em dois barcos, com as redes grandes, lago adentro. No primeiro barco iam Pedro, Tiago, meu pai, Zebedeu, Jesus e eu. Na outra, André com os empregados e o velho Jonas. As últimas estrelas ainda estavam acesas no céu. Pouco a pouco, ao compasso dos remos, fomos nos distanciando da costa. O vento apenas soprava e a vela balançava junto ao mastro.

Zebedeu: Olhe, João, o que acontece com esse aí? Veja só a cara dele...
João: Está mais branca que leite...
Pedro: O pessoal do interior não está acostumado... Ficam enjoados com o balanço da água...
Tiago: Ou com o balanço do medo!
João: Ei, você, Moreno, agache-se aqui, vamos ver se passa esse susto!
Tiago: É só dar uma boa vomitada que isso passa! Deixem-no quieto...
Zebedeu: A rede, rapazes, a rede!... Meu nariz me diz que por aqui há um cardume de dourados... Segure bem as bóias, Pedro... Você, Tiago, afrouxe um pouco!... Ei, vocês do outro barco, vamos lançar a rede!...

Enquanto nós preparávamos a rede grande, Jesus se encostou na borda e se agarrou com as duas mãos. Estava muito enjoado... Então deitou-se no fundo da popa, cobriu-se e em pouco tempo adormeceu.

Tiago: Ufff!...! Não gosto nenhum pouco deste vento. Está soprando muito forte.
João: É verdade, levantou-se muito de repente...
Zebedeu: Vamos, rapazes, recolham um pouco mais a vela se não quiserem que o vento nos arraste como ao profeta Habacuc!... Você, Pedro, não solte a rede que vem carregada de lambaris. Agüente firme!
Tiago: Pelos chifres de Satanás, este vento está soprando cada vez mais forte! Aí vem tempestade!
Zebedeu: Maldição! Peguem os remos e vamos voltar para a margem! Estas ondas vão nos engolir!
Pedro: Ei, vocês do outro barco!... Jonas!... Recolham a rede e vamos embora! A tempestade vem chegando!
Jonas: Está bem! Nós vamos à frente! Boa sorte!
Zebedeu: Mas que coisa! Este aí está dormindo?!... Vejam só, ali, acocorado como um sapo!
João: Jesus, Moreno, acorde!...  Temos tempestade!... e das bravas! Vamos, acorde... Esse tipo não se mexe... parece até que está morto!...
Pedro: Morto de espanto isso sim!... Pobre coitado, justo na primeira vez que vem pescar!...
Jesus: Por que é que eu fui me meter nisso, heim?!...
Zebedeu: Nosso homem já ressuscitou. O que ele está dizendo?
João: O que você disse, Moreno?
Jesus: Por que fui me meter nisso!
Pedro: O que foi, Jesus, está com medo?
Jesus: Mas é claro que estou com medo! Você queria o quê?
Zebedeu: Comece a contar agora a história de ontem à noite, anda!
Tiago: Maldição, essas ondas vão acabar rasgando a vela!

O mastro se partiu de repente com um estrondo terrível. Uma onda enorme nos levantou no ar, e nos derrubou com toda a força. Depois, uma coluna de água nos ensopou até os ossos. Pedro e eu fomos depressa amarrar a vela, mas ela nos escapava das mãos desfeita em tiras. O vento soprava de frente e balançava nossa barca cada vez com mais violência.

Tiago: Eu lhe disse, Pedro, que não devíamos sair hoje, que o Grande Cofre retumbava!
Pedro: Vai se danar, Tiago! Como é eu que ia saber?
Tiago: É que você tem a cabeça mais dura que uma bigorna. Eu lhe avisei: não se afaste da margem. Mas você é tão estúpido que meteu mais gente do que devia no barco. Agora vamos afundar com tanto peso!
João: Pois então atire-se na água para aliviar!
Tiago: Não se preocupe muito, que dentro de um instante faremos companhia ao coxo Filemon, lá no fundo. E a culpa será sua, está ouvindo?
Pedro: Escute aqui, pedaço de animal: ninguém podia imaginar isso!
Tiago: Ah, não?! Ontem o sol não estava mais vermelho que meus cabelos?!
Pedro: Então por que você veio, grande imbecil? Por que não ficou por lá?
Tiago: Quer dizer então que o imbecil sou eu, não é? Você está merecendo que lhe parta o focinho com uma porrada!
Pedro: Atreva-se, seu valentão de meia tigela e você vai saber quem sou eu!
Tiago: Bem que eu disse que o Grande Cofre retumbava!!!
Pedro: Pois eu me limpo a bunda com o Grande Cofre!!!
Jesus: Já chega,Tiago!!!... Cale a boca, Pedro!!! Vão pro diabo! Por que em vez de ficar brigando vocês não fazem alguma coisa? Estamos todos nos afogando e vocês ficam perdendo o tempo em discussões pra ver quem tem mais razão.
Zebedeu: É isso mesmo, Jesus! Estes aí deixam a força escapar pela boca! Eu não sei o que é pior: se é agüentar a tempestade ou agüentar esses dois charlatães!... Vamos, rapazes, vamos virar para lá, a estibordo... epa!, remando todos com força, vamos ver se salvamos nossa pele! Cada um com seu remo e todos de uma vez!... Dêem duro, rapazes, vamos iaaa!
Todos: Iaaa!
Zebedeu: A Deus rogando e o remo afundando, vamos iaaa!
(Iaaa!!!)
Apertem, apertem, vamos iaaa! (Iaaa!!!)
Como se fosse o cangote do Belzebu, iaaa! (Iaaa!!!)
Não afrouxem, caramba, vamos, iaaa! (Iaaa!!!)
Todos juntos, espremendo a azeitona! (Iaaa!!!)
Todos de uma vez, como pisa a centopéia! (Iaaa!!!)
Não tenham medo, rapazes, vamos, iaaa! (Iaaa!!!)
Homens de pouca fé, vamos, iaaa! (Iaaa!!!)
A fé lá em cima, os remos lá em baixo, vamos, iaaa!

O velho Zebedeu marcava para nós o golpe dos remos. E, pouco a pouco, unindo todos os braços, com as veias do pescoço a ponto de arrebentar, fomos avançando no meio daquele mar negro e revolto... A Jesus, como não sabia remar, lhe demos um jarro para ir tirando a água que entrava no barco... Depois de muito brigar com as ondas, quando a tempestade havia amainado, vimos as rochas negras da costa. Devagar, tateando o fundo com o remo, fomos nos aproximando do pedregal que formava uma brecha em direção à costa... Não longe dali, se divisava uma pequena cidade...

Pedro: Mas, olhem só onde viemos parar! Sim, estamos na outra margem do lago! Isto é Gerasa!
Tiago: Gerasa? Que o diabo me agarre pelos sovacos! Isto é terra de porcos!
Zebedeu: Alegre-se por estar pisando em terra firme, ainda que seja a dos gerasenos! A estas horas você poderia estar com a boca cheia de caranguejos!
João: É verdade, velho. Uff! Que susto!
Zebedeu: Susto grande deve ter passado esse aí, de Nazaré...
Pedro: Quando aquele golpe de vento rebentou pelo costado, quase que você molhou as cuecas, heim Jesus?!...
Jesus: Bem, a verdade é que... sim, quase. Nunca em minha vida tinha passado tanto medo!
Tiago: Não ria, Pedro, que você também está cheirando a mijo!
Pedro: Pois olhe que, quando o moreno gritou com a gente parecia o capitão do barco: “Já chega! Calem-se”. Eu acredito que até o mar se assustou com aquele seu grito e ficou mais sereno.
Zebedeu: Venham, rapazes, vamos botar algo quente nas tripas. Vamos ver se esses pagãos serão hospitaleiros com esses náufragos de Cafarnaum!

Muitos anos depois, quando nos recordávamos daquela tempestade no lago, Pedro dizia que não havia sido assim, que as ondas eram maiores e se acalmaram quando Jesus gritou. Não sei, tivemos tanto medo que as coisas se confundem na minha memória. O certo é que o moreno nos parecia a cada dia um sujeito mais extraordinário. Com ele aprendemos naquele dia a juntar forças para vencer qualquer dificuldade.

A geografia do lago da Galiléia, ladeado pelo norte, junto ao leito do Jordão, por altas montanhas, facilita a formação de espantosas tempestades, com ventos em furacão e ondas de grande altura. Pedro e seus companheiros, como experientes marinheiros, conheciam pelos diversos sinais – a cor do céu, a direção do vento – a possibilidade de uma destas tempestades. No entanto, como apareciam de surpresa, nem sempre podiam ser exatas suas previsões.

Não podemos ler todos os textos da Bíblia, sejam do Antigo Testamento, sejam do Novo Testamento da mesma maneira, aplicando os mesmos critérios. A Bíblia, além de ser a Palavra de Deus (e isso não quer dizer sempre “palavra histórica”) é uma coleção de relatos que ao longo dos séculos o povo de Israel foi transmitindo de pai para filho até chegar a colocá-los por escrito. Nestes relatos ficou marcado o que viveu, o que sentiu, o que pensou, o que contou o povo. Portanto, há livros que são narrativa histórica, outros refrões, outros poesia... É o que se chama de “gêneros literários” da Bíblia. Se não se levar isso em conta, pode-se confundir e buscar na Escritura somente “o que aconteceu”, o estritamente histórico, com o que o sentido profundo de fé que há no ensinamento simbólico de muitos relatos, se perderia.

Os Evangelhos nos contam seis milagres de Jesus “sobre a natureza”. O sinal que Jesus realizou neles, não teria sido sobre uma pessoa para curá-la, mas sobre os elementos físicos. Em um desses relatos Jesus acalma uma tempestade, com um simples levantar de voz. Em cada um desses textos o que se quer é elaborar um esquema de catequese para transmitir uma idéia.

Devemos levar em conta que, na mentalidade israelita, o mar – o lago de Tiberíades era considerado e inclusive chamado de mar – era o lugar onde estavam escondidos os espíritos do mal, os demônios, as forças poderosas e ocultas que representavam um perigo para o homem. O fato de Jesus acalmar as ondas é um símbolo do poder que Deus lhe havia dado, era uma forma de proclamar que ele era o Messias, o Senhor. Uma forma de dizer, portanto, que a fraqueza de um pobre camponês como Jesus, era mais forte que todos os poderes que se desatam contra a comunidade.

Também é verdade – esta é a mensagem central deste relato – que a debilidade dos pobres multiplica sua força e sua eficácia quando eles se unem, quando se organizam , quando remam juntos na mesma direção. Frente aos ataques do poder, o “milagre” que pode desfazer os raios e trovões da morte, será sempre a união.

(Mateus 8,23-27; Marcos 4,35-41; Lucas 8,22-25)
40
NA TERRA DOS GERASENOS



Depois da tempestade, desembarcamos em Gerasa, na outra margem do lago. Nossa barca, com a vela toda em frangalhos, ficou amarrada em uma das pedras negras e pontiagudas que se erguiam perto da margem. O velho Zebedeu, Pedro e Jesus, meu irmão Tiago e eu começamos a andar pelo terreno pedregoso da costa até um pequeno povoado que se divisava lá no fundo, a um par de milhas de distância.

Zebedeu: Esses pagãos devem gostar muito de carne de porco... Veja só quantos tem por aqui. É uma manada muito grande...
João: E quem será aquele que vem correndo para cá... Está fazendo sinais para nós...
Andrônico: Ei, vocês, forasteiros...! De onde vocês vêm?
Pedro: De Cafarnaum, amigo, da outra ponta do lago!
Andrônico: De tão longe?... E fizeram a viagem com um tempo tão ruim?
Zebedeu: Bah, a tempestade nos pegou de surpresa. Saímos pra pescar e quase que fomos pescados!
João: Por um pouquinho de nada não estaríamos aqui agora conversando com você!
Andrônico: Isso não me espanta. Trifon já havia previsto.
Pedro: O que você disse? Quem previu o quê?
Andrônico: Trifon saiu ontem à tarde dando gritos, anunciando por toda Gerasa que vinha uma tempestade, que o sol havia se posto vermelho como uma chama de vela.
João: E quem diabos é esse sujeito?
Andrônico: O conselheiro de Gerasa, o adivinho seguro, amigo de deuses e demônios: o bruxo Trifon. Forasteiros, querem me escutar? Querem um bom conselho?
Zebedeu: Bem, quem ouve conselhos, morre velho, assim dizem na minha terra. Vamos lá, o que você nos recomenda?
Andrônico: Se quiserem atravessar de novo o lago, consultem primeiro o poderoso Trifon. Ele lhes dirá se podem ou não podem. Ele lhes desvelará os mistérios do mar e da terra e também do céu.
Pedro: Pois se ele sabe tanto, que nos diga onde se pode comer uma boa cabeça de cordeiro, pois já estamos com teias de aranha aqui nas tripas.
Andrônico: Riam, podem rir agora... Quando estiverem diante de Trifon não terão tanta vontade de rir. Venham forasteiros, venham comigo...
Jesus: Escute, você ainda não nos disse como se chama...
Andrônico: Me chamo Andrônico. Cuido de porcos sob as ordem de dom Esculápio. Todas essas manadas que vocês vêem são dele. Vamos, sigam-me...

Andrônico, o cuidador de porcos, nos levou através do campo, rodeando a cidade dos gerasenos. Atrás, de um frondoso carvalho estava o cemitério do povoado. E ao fundo do cemitério havia uma cova aberta...

Zebedeu: Aonde está nos levando, amigo? Não estamos precisando de lugar nesta pousada!
Pedro: Uff!, pois nesse passo que vamos... Se não meter algo quente na pança, aqui mesmo me enterram!
Trifon: Ahh... Ahh... Ahh....!
João: Escute aqui, Andrônico, quem é este que está gritando?
Andrônico: É para onde vamos, forasteiros. Nessa cova é onde o grande Trifon se comunica com os vivos e com os mortos. Sigam-me!

E seguimos o geraseno através das pedras e dos sepulcros até chegar à cova mal cheirosa. Ao entrar, tapamos o nariz... Então vimos o famoso bruxo: tinha um corpo enorme e peludo coberto apenas por um trapo sujo na cintura. E uma corrente lhe prendia os braços e os pés. Era um louco.

Andrônico: Trifon!... Kúmi kerti!!
Trifon: Ah, ah, ahhh!
João: O que ele estará dizendo, Pedro?
Pedro: E eu sei lá, João? Essa geringonça de língua dos gerasenos, nem o diabo entende... Escute, Andrônico, o que nós estamos fazendo aqui, heim?...
Andrônico: Fiquem quietos. O bruxo Trifon está agora invocando os espíritos dos sepulcros.
Trifon: Ah, Ah, Ahhh!
Andrônico: O bruxo Trifon disse: O que vocês querem saber?
Jesus: Nada. Diga a ele que só viemos cumprimentá-lo e...
Zebedeu: E que já estamos indo antes que este louco nos dê uma correntada....

Andrônico pegou um pau e fez um sinal a Trifon. Então o bruxo se aproximou de nós, com os punhos para o alto, como se fossem dois martelos...

Trifon: Ah, ah, ahhh!!!
Andrônico: Dizem os espíritos: Perguntem e terão resposta.
João: Venha aqui, Pedro, pergunte alguma coisa...
Pedro: E vou perguntar o que, João?
João: Não sei, pergunte quem vai ganhar amanhã nos dados ou... se você vai ter boa sorte este ano. Que ele leia sua mão...
Pedro: Humm... Creio que este aí não lê nem mãos nem pés...
Andrônico: Decidam-se. Os mortos não podem esperar pelos vivos.
João: E a você, Jesus, não lhe ocorre nada?
Jesus: Bem, sim... eu vou lhe perguntar uma coisa.
Andrônico: Pergunte o que quiser, forasteiro. Trifon tem muitos poderes, uma legião de poderes. Sabe tudo. Descobre tudo.
Jesus: Olhe, pois se sabe tanto, pergunte-lhe isso de minha parte: O que posso fazer com Clotilde? Quando a tenho diante de mim, me tremem os joelhos. Quando estou sobre ela, fico enjoado.
Andrônico: Marratina!!!

Quando o louco Trifon ouviu aquela ordem do cuidador de porcos, agachou-se, pegou uma pedra do chão e começou a golpear-se com ela. Depois foram os alaridos. Depois, de um só golpe, arrancou os trapos e assim, meio em cueiros e sangrando, se revirava pelo solo da cova, enrolado em suas próprias correntes... Ao final de um tempo, Trifon ficou quieto, como um animal ferido...

Trifon: Ah, ah, ahhh!!!

Andrônico: Shh!... Os mortos vão responder sua pergunta, forasteiro. Essa mulher não lhe convém. Não poderá ter filhos com ela. Deixe-a e procure outra!
João: Há, há, há...!
Andrônico: Escute aqui, imbecil, de que está rindo? Diga, de que está rindo?
João: Há, há, há ...! É que... é que Clotilde é o nome da barca do velho Zebedeu... É que este moreno tem medo da água e se enjoa todo quando está dentro da barca! Há, há, há...! Esses seus defuntos estão por fora!...
Andrônico: Se não têm fé vão embora e não me amolem mais! O que vieram fazer aqui? Provocar-me? Não se meta comigo se não quiser que eu me meta com você, diz o poderoso Trifon.
Pedro: Jesus, vamos embora. Este homem não adivinha nada. É um charlatão.
Jesus: Sim, acho que é melhor. Vamos sair daqui!
Andrônico: Um momento, forasteiros. O bruxo Trifon não trabalha de graça. Um denário por cada consulta.
Zebedeu: Um o que?... Amigo, o naufrágio nos limpou os bolsos. Não temos nenhum centavo. Você está querendo se encostar em árvore podre.
Andrônico: Têm de pagar. Se não pagam, a maldição dos mortos cairá sobre vocês antes do anoitecer.
Jesus: Escute aqui, Andrônico, para quem mesmo você disse antes que trabalhava?
Andrônico: Para dom Esculápio. O proprietário mais rico de Gerasa. Tem o comércio de púrpura com Damasco. Tem manadas enormes de porcos. Tem vacas, e asnos e camelos.
Jesus: Estou entendendo... E tem também este infeliz trabalhando para ele, não? E tem você para administrar seu negócio, não é verdade?
Andrônico: O que você está querendo dizer com isso?
Jesus: Digo que este tal dom Esculápio e você estão tirando uma boa bolada com os gritos deste pobre homem.
Andrônico: Eu não sei nada disso. Paguem seu denário e sumam-se daqui.
Jesus: Não amigo, agora não vamos mais embora. Venha, quero fazer uma segunda consulta ao “grande Trifon”.
Andrônico: Agora não pode responder. Está descansando.
Jesus: Sim, ele pode, claro que pode. Trifon, irmão, escute-me...! Estão abusando de você!
Trifon: Ah, ah, ahh!
Andrônico: Marratina!!!
Pedro: Aquele ali com o a-a-á e este com a marratina...
Andrônico: Marratina!!!

Quando o cuidador de porcos deu novamente a ordem, o louco Trifon se lançou sobre Jesus. Mas ao chegar frente a ele, se lhe dobraram os joelhos e ele se esparramou no chão... De sua boca saía aos borbotões uma saliva espessa e branca. O ataque durou alguns minutos... Depois Jesus se agachou sobre aquele desgraçado e lhe disse alguma coisa ao ouvido...

Jesus: Trifon, irmão, já abusaram demasiado de você. Usam sua doença para tirar dinheiro dos infelizes. Utilizam a ignorância dos infelizes para escravizar você mais ainda... Não, Deus não quer ver você desse jeito. Vamos, Trifon, levante-se. Tiago, João, ajudem-me a tirar-lhe estas correntes. Com uma pedra afiada ou uma faca podemos abri-las... E você Andrônico, saia daqui, vai...!
Pedro: Mas Jesus, você está mais louco que ele!... Esse sujeito é perigoso, pode lhe dar um golpe maldoso...
Jesus: Não, você verá que não... Vem, Trifon, aproxime-se desta pedra e fique tranqüilo... não vamos lhe fazer mal algum...
Trifon: Ah, ah, ah...

E Trifon se aproximou de Jesus feito um cachorro manso e deixou cortar as correntes... Estava livre.
Enquanto isso, Andrônico, o cuidador de porcos, tinha ido correndo avisar seu patrão, dom Esculápio. E lhe contou o que os forasteiros de Cafarnaum haviam feito. A notícia correu como um rastilho de pólvora. Os gerasenos saíram de suas casas e foram ao cemitério ver o que ali se passava...

Mulher: O que você perguntou ao bruxo, diga-me?
Jesus: Eu perguntei: onde vão parar os denários dos idiotas que vêm consultar-se?
Mulher: E aí? O que o Trifon respondeu?
Jesus: Trifon se pôs em pé e me disse: no bolso de dom Esculápio! Pode crer, minha gente: esta foi a única adivinhação que este adivinho acertou. Com o dinheiro de vocês engordam-se os porcos de Esculápio.

Enquanto Jesus falava com os gerasenos, Trifon ficou sentado sobre umas pedras, com a cabeça afundada entre as mãos. As mulheres lhe haviam lavado as feridas e os hematomas e lhe haviam posto uma túnica velha sobre os ombros. Já íamos dar meia volta para retornar à barca, quando Trifon se levantou e olhou Jesus com um sorriso de menino...

Trifon: Deixe-me ir com você...
Jesus: Não Trifon. Seu lugar é aqui. Quando o virem trabalhando e vivendo como todo mundo, as pessoas dirão: Não há bruxos nem bruxarias. Só Deus é poderoso. Ande, vai e conte a seus vizinhos o quanto Deus foi bom com você.
Trifon: Sim, sim, vou contar a todos. Sim, vou contar!

Trifon se foi e começou a contar a todos os povos da Decápolis o que Jesus havia feito por ele. Dom Esculápio, ao perder seu negócio, dizia às pessoas que os forasteiros de Cafarnaum colocaram um feitiço em seus porcos e que uma manada inteira se havia jogado no precipício, afogando-se no lago. Desde então, corre esta lenda na terra do gerasenos...

Gerasa (ou Gadara) era uma cidade situada na orla oriental do lago da Galiléia. Fazia parte da chamada Decápolis (liga das dez cidades), um território de costumes gregos, habitado quase que exclusivamente por estrangeiros. Para os israelitas era, portanto, zona pagã, terra dos gentios. As atuais ruínas que se conservam são de duzentos ou trezentos anos depois de Jesus. O porco era para os israelitas um animal impuro. Comer sua carne estava estritamente proibido e fazer isso era sinal de renegar a religião judaica. Esta aversão ao porco chegava até a considerar como algo degradante o apascentar manadas de porcos. Em Gerasa, território estrangeiro, habitado por não judeus, não haviam esses escrúpulos religiosos. Na atualidade, os muçulmanos também estão proibidos por sua religião de comer carne de porco.

As crenças populares se manifestam muitas vezes através da magia, dos adivinhos, da bruxaria, diferentes formas de superstição... Certamente, todas estas expressões religiosas dificultam a vivência da fé cristã. Porque esta religiosidade tem muito a ver com medos, com uma fé cega no destino, no que “está escrito” e muito pouco com uma vida de liberdade, de responsabilidade. No entanto, muito pior do que as crenças populares é o comércio que se faz com elas. Atrás das pessoas crédulas há sempre um aproveitador que tira vantagem da ingenuidade. E esses “negócios religiosos” se dão também em relação ao culto católico. A devoção a muitos santos, com relíquias milagrosas que se vende ao povo, com esmolas que praticamente se impõem se se quer agradar o santo, com peregrinações que se convertem em lucros para agências de turismo, etc., são formas desta religiosidade “usada” em proveito de alguns. Sempre que de uma crença religiosa se obtenham benefícios econômicos, temos de estar alertas. O critério sobre a validade de quaisquer destas coisas, foi dado pelo próprio Jesus quando disse: “Dêem de graça o que de graça receberam” e “Não se pode servir a Deus e ao dinheiro”. Para aproximar-se do Deus verdadeiro, um Deus que quer o homem de pé, livre e feliz, é preciso ir se desprendendo pouco a pouco destas idéias religiosas primitivas, que são autêntico “ópio do povo”, porque o adormecem, o paralisam e não o deixam ver com clareza o verdadeiro rosto do Deus de Jesus, um Deus que quer seus filhos responsáveis pela história, comprometidos com uma ação que transforme o mundo. O milagre de Jesus sobre Trifon é um sinal de que Deus nos liberta das cadeias da falsa religião. E é um sinal de que não liberta somente a ele – um homem transtornado mentalmente e usado para negócio – mas que chega a todo o povo que, ao conhecer os segredos do “adivinho”, se liberta de muitos dos seus medos.

A narração do endemoninhado de Gerasa é um típico texto evangélico em que se “enfeitou” a história para fazê-la mais espetacular, mais dramática. Com o correr do tempo, os fatos que impressionam as pessoas vão sendo aumentados e exagerados quando são contados novamente, tornando-os cada vez mais maravilhosos. Seguramente atrás destas centenas de porcos que se precipitaram no mar cheios de demônios – como o descreve o evangelho – há muitas lendas populares que correram de boca em boca e que depois os evangelistas, sem possibilidade de comprová-las e também sem se preocuparem muito com isso, puseram por escrito para tirar delas uma mensagem de fé.

(Mateus 8,28-34; Marcos 5,1-20; Lucas 8,26-39)












































41

ESTA É UMA CASA DECENTE




SaloméComo? Vocês não vão?
João: Aonde, velha?
Salomé: Como aonde? Na casa de Simão, o fariseu. Hoje ele apresentou seu filho na sinagoga e vai dar uma festa para celebrar.
João: Festa é comigo mesmo! Mas não na casa deste sujeito!
Tiago: Anda, João, anime-se. Tem sempre bons pastéis na casa de Simão... E você Pedro? Também não quer ir?
Pedro: E o que foi que eu perdi na casa desse velho avarento?
Salomé: Tá certo que ele é um mão-de-vaca, Pedro, mas veja só, ele convidou toda família. E como aqui em Cafarnaum, o que não é neto, é sobrinho do velho, imagine, meia cidade irá hoje comer lá.
Tiago: Sim, homem, vamos não seja mal humorado... Pedro, avise a Rufina. E você André, não fique aí com cara de espantalho... Jesus, o que é que há? Não vem?
Jesus: Eu iria, Tiago, mas não sou nem neto nem sobrinho deste tal Simão.
Tiago: Ah, isso dá na mesma, Moreno. Você é amigo nosso e os amigos da família são familiares também. Garanto que a casa vai estar mais cheia de gente que um barril de azeitonas... Eia, rapazes, ao divertimento!

O ruivo animou a todos. E, pouco depois, estávamos na rua dos banqueiros, em frente à casa de Simão, o fariseu. Enquanto esperávamos que abrissem a porta vimos, junto ao muro, as duas mulheres que todos conhecíamos... Uma delas, a mais jovem, começou a fazer sinais para Jesus...

Maria: Psiu! Ei, você, de Nazaré...! Psiu...! Como vai?... Aquele é um amigo meu, Selina, não se meta com ele.
Selina: E quem é ele?
Maria: Ah, é um cara meio doido...
Jesus: Oi, Maria! Estava mesmo querendo saber de você. Como vai a vida?
Maria: No negócio, compadre. Temos de aproveitar as oportunidades! Não é Selina?
Jesus: E vocês aproveitam bem porque desde a outra rua venho sentindo o perfume!
Selina: É sim, compadre, nós trabalhamos de noite, se não nos vêem, ao menos nos farejam!
Maria: Sim, ria agora, tonta, porque depois terá de passar, pelo menos umas três horas aqui, escorada no muro, sem faturar nada.
Selina: Bom, não se queixe, que com este moreno você já ganhou a noite.
Maria: Não meta o focinho, Selina. Já lhe disse que isso é outra coisa...
Jesus: É que eu e Maria somos amigos. Sabe?
Selina: Sim, estou percebendo. O que acontece é que Maria passa muito ruge, põe muitos colares e acaba levando vantagem sobre mim. Está bem, colega, você venceu, eu me rendo.

Maria e Selina levavam pendurado no pescoço um frasco pequeno cheio de azeite de jasmim. Era o perfume que as prostitutas sempre usavam...

João: Ei, Jesus, venha, já vão abrir a porta!
Jesus: Já vou, João, espere...!
Maria: Você, sempre com estes tipos, parece que nasceram grudados... Ande, vai lá com seus amigos, e vai empurrando, porque que se não acabam  deixando você de fora!
Jesus: E vocês, não entram?
Maria: Nós? Rá! Não lhe disse Selina? Este tipo é doido!
Jesus: Não, Maria, estou falando sério. Por que não entram com todos?
Maria: É claro que eu queria entrar! Pelo menos para comer uns pastéis! Mas o nosso lugar é aqui fora. Como vamos entrar? “Esta é uma casa muito honrada e muito limpa, a casa do fariseu Simão”. Que o diabo o carregue, velho maldito!
Jesus: Por que fala tão mal dele? O que ele lhe fez?
Maria: Para mim nada. Mas para todos os desgraçados que lhe devem dinheiro...! Assim se tornou rico de pressa: emprestando dez e cobrando vinte, e agarrando pelo cangote os infelizes que não podem lhe pagar no prazo!
João: Ei, Jesus, que é que há? Não vem?
Jesus: Escute, João, e estas garotas não podem entrar na festa também?
João: Quem? Estas duas mariposas...?
Maria: Sim, homem, leve a gente... Afinal, o negócio anda mal... E aí dentro pelo menos nós descolamos alguma para forrar o estômago...!
Jesus: O que você acha, João? Elas podem entrar?
João: Sim, homem, ninguém vai se dar conta... Andem, venham com a gente e se espalhem no meio do grupo...
Maria: Acho até que isso vai ser divertido!... Bom, como diz o ditado, mais vale chegar na hora que ser convidado! Vamos, Selina, ande...!
Selina: Não, não, Maria. É melhor eu ficar aqui fora caso apareça um cliente. Vai você. E quando se aborrecer, você sai e troca comigo...
Maria: Bem, colega, você não sabe o que está perdendo... Até logo!
Selina: Até logo, e não se esqueça de me trazer um salgadinho!

Nós nos juntamos com Pedro e os demais e já estávamos cruzando a porta de entrada quando um dos serventes, com a cara muito séria, impediu a entrada de Maria, a madalena...

Servente: Ei você, espertinha, aonde pensa que vai, hein? Esta é uma casa decente, está entendendo?... Caia fora!
Jesus: Escute amigo, esta mulher está incomodando você? ... Então, também não a incomode...
Servente: Escute, nazareno... Claro, você não é daqui e não sabe... Mas esta dona que está com você é uma “fulana”. Então...
Jesus: Então, nós que estamos com ela também somos uns fulanos. Tem mais alguma coisa para dizer?
Servente: Que diabos, forasteiro! Está bem, entrem com ela. Mas vou lhe dizer uma coisa, descarada: não arme nenhuma confusão. E vocês lavem-se quando sair para não federem a jasmim!
Maria: Filho de uma cadela... Puah...! “Esta é uma casa decente”... Sim, sim, agora nem olha na minha cara... Mas, amanhã, será o primeiro a bater na porta da minha casa! Tipo nojento!
Jesus: Deixe-o, Maria. Se não quer que se metam com você, também não se meta com eles... Venha, vamos entrar!

O pátio da casa era muito grande e cabia muita gente. Sentaram o pessoal que era do bairro ao fundo, sobre uma esteira de palha, e nos deram tâmaras para encher o estômago. As mesas da frente, muito enfeitadas, e com a melhor comida, eram para os comerciantes e os parentes ricos de Simão, o fariseu... Um destes se aproximou de onde nós estávamos...

Um Homem: Maria, que belo peixe você pescou! Como conseguiu o nazareno?
Maria: Condenado nojento! Saia, saia do meu lado, que agora não estou trabalhando!
Homem: Está bem, garota, não fique assim. Era só uma brincadeira...!
Maria: Não lhe disse, Jesus? Nosso lugar é lá fora...
Jesus: Você é que procura, Maria. Quem manda colocar tanto perfume? Nem com uma espátula dá para raspá-lo de sua pele!... Vamos lá, esquece isso e come alguma coisa...

Então chegou o coxo Benedito, trançando as pernas com uma jarra de vinho pela metade na mão...

Benedito: Mas olhe só a sereia que chegou nesta praia! Hip! Mariazinha da minha vida, tanto tempo que a procuro e agora a encontrei...! Hip!
Maria: Siga seu caminho, velho safado, e sossegue a macaca!
Benedito: Não me trate assim, querida. Se para mim está sobrando vinho... em você está sobrando roupa! Hip! Não estou certo, amigo? ... Ela fica melhor sem tantos trapos...

O coxo Benedito se lançou sobre Maria. De uma só vez, rasgou o vestido dela. Então Jesus empurrou o bêbado e este tropeçou e caiu de costas. Em seguida armou-se um tumulto naquele lado do pátio... Para completar, o frasco de jasmim que Maria levava no pescoço, rolou pelo chão e se fez em pedaços, e aquilo começou a cheirar como uma feira...

Servente: Que diabos está acontecendo? ... Não lhe avisei, rameira, que não queria confusão?
Jesus: Quem armou a confusão foram vocês...
Servente: Cale a boca, forasteiro! E você, sua quenga, agora você vai ver uma coisa!

O servente levantou o bastão que levava nas mãos com um gesto de ameaça. Maria se agachou e se atirou aos pés de Jesus buscando proteção...

Servente: Saia daí que eu vou lhe ensinar a respeitar as casas decentes!
Jesus: Tiago, João, ajudem-me!

Meu irmão e eu caímos sobre o servente, mas outros vizinhos caíram sobre nós...

Um Homem: Tome, intrometido!

 A coisa tinha se complicado, se nesse momento não aparecesse, alarmado pela confusão, Simão, o fariseu, o dono da casa...

Simão: Mas o que está acontecendo aqui? Não se pode ter uma festa em paz?
Jesus: Aqui não está acontecendo nada... Estamos apenas conversando.
Simão: Conversando? E esta que está no chão, está conversando também?
Servente: Esta é uma fulaninha da rua dos jasmins...
Simão: E o que faz uma fulana aqui na minha casa? Quem a deixou entrar?
Jesus: Foi eu, Simão. Entrou comigo.
Simão: E quem é você para sujar a minha casa?
Servente: Este é o forasteiro de Nazaré, seguramente já ouviu falar dele... Tem fama de profeta.
Simão: Profeta? Eu não sabia que os profetas de agora se deixem enredar pelas rameiras... Vamos, vamos, tirem a esta fulana da minha casa! Prefiro o cheiro de mijo de gato que o perfume de pecadoras!

Maria continuava no chão. Chorava envergonhada aos pés de Jesus com o cabelo todo desarrumado.

Simão: Disse para tirarem essa fulana daqui! Minha casa é uma casa decente!
Jesus: Simão, com sua permissão, posso perguntar uma coisa?
Simão: O que você quer, forasteiro? Fale logo. Este perfume me dá náuseas.
JesusEscute esta história, Simão: dois homens deviam dinheiro a um banqueiro. Um devia cinqüenta denários e o outro quinhentos. Mas os dois perderam a colheita e nenhum tinha um centavo para pagar o banqueiro.
Simão: E o banqueiro os meteu na cadeia, que é o que mereciam.
Jesus: Não, ao contrário, sentiu pena deles e perdoou a dívida dos dois. Agora, me diga, Simão: qual dos dois homens será mais agradecido ao banqueiro?
Simão: Que pergunta! O dos quinhentos denários. Foi-lhe perdoado mais, será mais agradecido. O que tem isso a ver com esta fulana?
Jesus: Tem muito a ver. Mas não sei se você entenderá. Porque você nunca perdoou ninguém, nem nunca precisou do perdão de alguém. Ela sim. E por isso, sabe agradecer.
Simão: A quem ela tem o que agradecer?
Jesus: A você, é claro, nada. Quando nós entramos, os da periferia, você nos colocou aqui atrás, não veio nos saudar e nem sequer nos deu água para lavarmos as mãos. A você, nada. A Deus, sim. Tem que dar graças a Deus, porque perdoou toda a dívida que tinha com Ele.

Então, Simão, o fariseu, apertou o cabo de seu bastão e olhou Jesus com um ar de desprezo...

Simão: Charlatão! Tirem esta fulana daqui. E o nazareno também. E  todos os que estiverem fedendo a jasmim. Prefiro o cheiro de mijo de gato ao perfume das pecadoras!

Jesus levantou Maria do chão e saiu com ela. Nós também saímos dali. E também os outros do bairro. Eu acho que foi desde aquela festa na casa de Simão, que Maria, a de Magdala, começou a mudar.



Um velho provérbio dos rabinos nos tempos de Jesus dizia: “não se deve falar muito com uma mulher na rua”. Não só com uma prostituta – o que já era o cúmulo – mas com qualquer mulher. Jesus rompeu, em várias ocasiões, os costumes de seu povo com relação à maneira de tratar as mulheres. E dentro desta sua liberdade frente às tradições, tratou com especial preferência as “más mulheres”, o que escandalizou profundamente as “boas” pessoas de seu tempo.

Jesus repetia continuamente que Deus interessava-se preferencialmente pelos pecadores e que estes estão mais próximos de Deus que os piedosos e os cumpridores da lei. Isto provocava um irado protesto, principalmente entre os fariseus. Temos de levar em conta que nem sempre os fariseus eram da classe alta. Havia também os das classes mais humildes. O que caracterizava a uns e outros era o orgulho,  por  acharem que pertenciam à comunidade dos eleitos de Deus. Ao longo de todo o evangelho, Jesus lhes jogou várias vezes na cara sua hipocrisia e tentou fazê-los ver que eram eles que, por sua arrogância,  estavam mais longe de Deus que qualquer um.

Também hoje em dia não faltam fariseus: há muitas pessoas que fazem de sua suposta “decência”, de sua boa educação, de sua boa família – e na maioria dos casos, do dinheiro que têm – uma barreira para se separar dos de baixo. De cima desta barreira, não só se acham superiores, de maior valor, mas também chegam a identificar o cristianismo com sua classe social, com a sua moral de aparências. Tudo isso é uma farsa que nada tem a ver com o evangelho. As virtudes cristãs são primeiramente as atitudes de solidariedade e de igualdade entre os homens, contrárias a todo sentimento de orgulho ou de discriminação. Nem nesta ocasião nem em nenhuma outra, Jesus reclamou para si um trato especial, de preferência, como o que exigem os grandes deste mundo, que se rodeiam de servos, de luxo ou de distinções, para ressaltar a importância que querem que lhes dêem.  O que Jesus reclamou sempre foi um tratamento de respeito, de condescendência, para com os marginalizados e com os pobres. Não quis privilégios para si, mas igualdade para todos.

Jesus conta uma pequena história a Simão, o fariseu: a dos dois devedores. É uma parábola sobre o tema do perdão. Jesus diz com ela que é o pecador quem “sabe” realmente o que é o perdão e, por isso, é também o único que pode ser agradecido. O fariseu, orgulhoso e arrogante, nunca chegará a saber o que é isso, pois não acha que deva ser perdoado por nada. E tampouco sabe agradecer. O agradecimento por se saber perdoado – dimensão básica na relação do Homem com Deus – não está ao alcance de quem já se crê bom.

(Lucas 7, 36-50)

42

O CAPITÃO ROMANO



Cornélio era o capitão que comandava a tropa romana em Cafarnaum. Sua casa, muito grande, era sempre vigiada por soldados. Ali ia visitá-lo com freqüência, Mateus, o publicano, que era amigo seu...

Cornélio: Mais vinho, Mateus?
Mateus: Sim, mais um pouquinho. Tá bom. É de Caná, não é mesmo?
Cornélio: Sim, de Caná...
Mateus: Escute, mas você não bebeu quase nada... O que é que há?
Cornélio: Estou preocupado, Mateus.
Mateus: O que está acontecendo? Esses zelotes estão preparando alguma conspiração?...
Cornélio: Não, não é coisa de política.
Mateus: O que está acontecendo então...? Precisa que lhe empreste algum dinheiro? Se quiser...
Cornélio: Não é isso, Mateus. Trata-se de... de Marcos.
Mateus: E quem é Marcos?
Cornélio: Um dos meus criados. Já está há dez anos comigo.
Mateus: E o que acontece? Está querendo servir a outro?
Cornélio: Não, está doente. Faz alguns dias que não se move nem come nada. Está com umas dores terríveis. Mandei chamar todos os médicos de Cafarnaum e dizem que é grave, que ele vai morrer... Não faço outra coisa que pensar nisso, Mateus.
Mateus: Pelo trono do Altíssimo, mas como pode se preocupar tanto por causa de um criado, Cornélio? Venha, coloque mais vinho, que estou com o copo seco...
Cornélio: É que eu o amo como a um filho, entende? Confio nele mais que em minha própria sombra... Não quero que Marcos morra...
Mateus: Pois, não sei não... Se ele tem uma doença grave... Não sei não... Escute... Talvez...
Cornélio: Talvez o quê?
Mateus: Nada, este vinho me meteu uma idéia na cabeça... Sei lá, ouvi dizer que Jesus, o de Nazaré, bem, você o conhece também. Dizem que é curandeiro. Ouvi dizer que limpou a carne de um leproso e que curou um louco e dizem... Bem, dizem também que lá em Naim até levantou a um morto da maca quando o levavam para enterrar... Isto eu acho que são histórias que o povo conta. Mas parece que o nazareno tem algum dom para curar... Existem camponeses que conhecem muitas ervas...
Cornélio: E... E daí?
Mateus: Peça que venha ver seu criado. Não custa nada tentar. O que você acha? Não me diga que é uma idéia idiota, pô!
Cornélio: Eu também pensei nisso à noite, Mateus, mas...
Mateus: Mas, o quê?
Cornélio: Esse Jesus é boa gente, mas... tem feito duras críticas aos romanos. Nós estamos sabendo. Temos espiões em toda parte. E esses com quem ele anda... Bom, já sabemos no que estão metidos...
Mateus: São uns agitadores e Jesus não fica atrás. Mas isso é farinha de outro saco. Não disse que se preocupava tanto com o criado? Pois diga a Jesus para vir vê-lo.
Cornélio: E ele?... ele vai querer vir, Mateus? Eu sou um soldado romano... Vocês judeus são muito fanáticos... não sei não...
Mateus: Bom, se você não se atreve a pedir-lhe que venha, então peço eu, pronto! Ele é meu amigo... O convidei para comer na minha casa e ele foi... Eu acho que ele pode ajudá-lo, Cornélio.
Cornélio: Sim, Mateus. Eu também acho.

Ao meio-dia, quando Mateus terminou de cobrar os impostos das caravanas do norte, foi ao bairro dos pescadores, junto ao cais, procurar por Jesus na casa do meu pai, Zebedeu...

Vizinhos: Publicano do diabo! Vai procurar sua turma, nojento! Traidor!

Como sempre, por estar cheio de álcool andava cambaleando. E como sempre também, o povo cuspia por onde ele passava e o insultava. Mas o efeito do vinho lhe tapava as orelhas. Quando Mateus chegou à nossa casa, estávamos comendo...

João: Ei, você, nojento, o que está procurando por aqui?
Mateus: Procuro o Nazareno.
João: E para quê, se é que se pode saber?
Mateus: Isso é particular. Ele está aí?
Jesus: Estou aqui, Mateus. Qual é o problema?

Atrás de Jesus, saíram meus pais e Tiago com sua mulher. Na estreita rua, o povo também começou a se juntar... Queriam saber o que Mateus estava procurando no bairro. Meu pai, Zebedeu, foi o primeiro a levantar a voz. Depois a gritaria cresceu como espuma...

Zebedeu: Que faz você aqui, filho de uma cadela? Não se atreva a pôr o pé na minha casa!
Tiago: Aqui você não perdeu nada, bebum! Vai vomitar em outra esquina!
Vizinhos: Fora, fora!
Mateus: Vão pro inferno vocês todos! Eu vim procurar Jesus!
Zebedeu: Jesus, o que você tem a ver com esse tipo de gente, hein?
Jesus: Não sei o que ele quer, Zebedeu. Vocês não o deixaram falar ainda... Diga, por que estava me procurando, Mateus?
Mateus: Sim, você mesmo! E estes que vão se danar todos juntos!
Jesus: Bom, já chega! Qual é o seu problema, Mateus?
Mateus: Cornélio, o capitão romano, quer que você vá à casa dele.
Jesus: Para que quer que eu vá?
João: Isso é uma cilada, Jesus. Não confie nesse cara.
Mateus: O criado dele está doente. Quer que você vá vê-lo.
Tiago: Pros diabos com o capitão romano e com seu criado e com você!
Mateus: Sim, sim, agora está gritando, galego, mas quando foram construir a sinagoga, bem que todos vocês se lembraram do capitão para conseguir logo a permissão...
João: Isso já faz muito tempo!
Mateus: Sim, e no ano passado, aqueles presos... Então, foram chamar o capitão para os tirar daquela fria, hein?
Zebedeu: Cale a boca, nojento! Mal abriu a boca e já está lambendo as botas dos romanos! Fora, suma daqui antes que eu torça o seu pescoço como a uma galinha! Não quero ver você passar nem na frente da minha porta! Suma daqui!

Mas Mateus, não se foi. Limpou a cusparada com a manga da túnica e olhou para Jesus...

Mateus: Então? Vem ou não vem?
Tiago: Mas é claro que ele não vai!
Jesus: Olhe, Tiago, eu tenho boca para responder, não é? Sim, vou com você, Mateus.
Zebedeu: Jesus, se você se atrever a pôr o pé na casa desse cachorro romano, não voltará a pô-lo na minha casa! Aqui você não entra mais! Esta á ouvindo? Entendeu bem?

Jesus e Mateus abriram caminho entre as pessoas e foram rua abaixo. Meu pai, roxo de raiva, deu um murro com a mão fechada na parede e entrou em casa novamente. Nós entramos atrás dele. Lá fora, o bairro inteiro ficou falando sobre o que tinha acontecido. O fuxico levou apenas alguns minutos para dar a volta no bairro dos pescadores...

A casa do capitão Cornélio era fora de Cafarnaum, junto ao quartel. Jesus e Mateus, seguidos muito de perto por um monte de curiosos, saíram da cidade e se dirigiram para lá...

Mateus: Detesto os seus amigos, nazareno...
Jesus: E eles detestam você, Mateus. Ódio gera ódio. Assim acontece sempre.
Mateus: Pois verá que isso que você diz não vale para Cornélio. Esses seus amigos o odeiam, mas ele sempre que pode os ajuda...

Quando já estavam chegando à casa do capitão, Cornélio saiu ao encontro deles. O povo se aproximou de Jesus e Mateus procurando não perder uma só das palavras que iam dizer...

Cornélio: Saudações, Jesus! Conseguiu convencê-lo, Mateus.
Mateus: Meu trabalho custou caro, senhor capitão... Esse velho Zebedeu me jogou sete maldições porque eu ia vir à sua casa... Disse não me deixará entrar outra vez na dele.
Cornélio: Zebedeu falou isso?
Mateus: Isso, mais uma cusparada que eu ganhei por lhe bater à porta.
Cornélio: E toda essa gente que veio com vocês?
Mateus: Os curiosos de sempre. Como aqui em Cafarnaum não tem teatro, eles se distraem com qualquer coisa.
Cornélio: Desculpe-me, Jesus, não pensei que ia lhe causar tantos problemas.
Jesus: Não se preocupe, Cornélio. E muito menos com Zebedeu. Cão que late não morde.
Cornélio: Também dizem: é melhor prevenir que remediar. Olhe, Jesus, não vale a pena que arrume nenhuma confusão por entrar em minha casa. Eu não valho tanto por isso. Como você vê, sequer me atrevi a ir procurá-lo...
Jesus: Mateus me disse que você tinha um criado doente...
Cornélio: Sim, Marcos. Você já curou muitos doentes. É o que ouvi dizer... Não posso fazer mais nada por ele. Está ardendo em febre. E pensei que...
Mateus: Cornélio quer que você cure o criado. Quer dizer, se você puder...
Jesus: Mas... eu gostaria de vê-lo. Vamos...
Cornélio: Não, Jesus. Já lhe disse que não quero arrumar problemas para você. Veja, o Deus em que você crê – assim dizem vocês, judeus – é dono da vida e da morte. Se Ele der uma ordem à doença, Marcos ficará curado.
Jesus: Você acredita que é assim, Cornélio?
Cornélio: Bom, quando me dão uma ordem, eu tenho de obedecer. E eu também, quando digo a um dos meus soldados: venha cá, ele vem. E quando digo que vá, ele vai. Seu Deus não é o chefe de todos nós? Então você não precisa entrar. Dê uma ordem em nome desse Deus em que você crê e a doença obedecerá.

Quando Jesus ouviu o que dizia o capitão Cornélio, ficou admirado e se voltou em direção às pessoas que o tinham seguido...

Jesus: Puxa, esse homem que é um estrangeiro tem mais fé em nosso Deus que todos os que estão aqui! 
Uma Mulher: O que disse, nazareno?
Jesus: Digo que um dia muitos virão de fora, como Cornélio, e se sentarão para comer na mesma mesa de nosso pai Abraão.
Um Homem: Escutem esta agora! Quanto será que o capitão lhe paga para que lhe faça esses elogios?
Jesus: Sim, escutem o que digo: eles entrarão. E muitos dos que estão dentro e se acham muito seguros, ficarão de fora.
Mulher: Mas, o que está dizendo este aí? Onde já se viu!
Homem: Passou para o outro lado, Jesus?!
Mateus: Pro diabo com esta gente! Se não armam uma confusão não ficam satisfeitos. Saiam daqui, arruaceiros e desordeiros, fora daqui, todos!
Mulher: Fora você, bebum traidor!
Jesus: Deixe-os Mateus. Vamos. E você, Cornélio, não se preocupe mais por seu criado. Deus lhe dará o que você espera Dele.

Cornélio voltou para casa entre os assobios e as vaias do povo... Então Jesus levantou a voz, muito irritado...

Jesus: Vocês têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem.
Homem: Que diabos que isso tem a ver? Esse capitão é um cachorro romano. E os romanos são nossos inimigos! E o que puxa o saco dos romanos é tão cachorro quanto eles!
Jesus: Vocês têm olhos e não vêem, têm ouvidos e não ouvem.
Mulher: Lá vem ele de novo com essa ladainha! Você é que está cego, nazareno, você!
Homem: Cego não, vendido! Vamos ver se ele mostra o bolso, para ver quanto dinheiro lhe deu o capitãozinho!
Mulher: Abaixo Roma e abaixo os traidores!

A confusão durou ainda um bom tempo. Quando as pessoas se cansaram de gritar, regressaram a Cafarnaum levando o boato do que havia acontecido. Jesus voltou mais tarde, por outro caminho, ao bairro dos pescadores. Nós estávamos ali estávamos esperando. Enquanto isso, na casa do capitão Cornélio, a febre de Marco já havia baixado.

Embora Mateus não fosse funcionário do império romano, mas do rei Herodes – por ter seus postos alfandegários na Galiléia – tinha muito boas relações com os soldados romanos. Era Roma quem mantinha Herodes no trono. Pela importância estratégica de Cafarnaum, havia na cidade uma guarnição romana sob o comando de um centurião. O centurião (capitão ou comandante em nossa linguagem) era a autoridade militar que mandava sobre a centúria, a menor unidade da infantaria romana (= 100 soldados). Os militares romanos eram vistos pelo povo israelita com o ódio com que as nações olham as tropas de ocupação que invadem seu país. Aqueles soldados eram os representantes do poderio imperialista de Roma, dona, naquele tempo, da maior parte do mundo conhecido. O orgulho nacional e os desejos de liberdade dos israelitas entravam continuamente em conflito com esses militares estrangeiros. Para os amigos de Jesus, que estavam muito influenciados pelo espírito zelota – marcadamente nacionalista e antiromano – este ódio e esta repulsa eram difícil de superar. Se a acolhida de Jesus ao publicano Mateus determinou o primeiro conflito sério no grupo dos apóstolos, a atitude aberta de Jesus para com o capitão romano seria seguramente motivo de outra grave discussão entre eles.

À margem da ocupação romana, o povo israelita foi – e ainda hoje é – um povo excessivamente nacionalista. A consciência que tinha de ser um povo eleito de Deus estava na raiz desse sentimento, que era na maioria das ocasiões excludente de outras nações e dele nascia o desprezo aos estrangeiros. No tempo de Jesus havia uma crença bastante generalizada de que quando o Messias chegasse, seria a hora de um grande juízo de Deus sobre todas as nações e então, haveria vingança contra elas. Jesus rompe absolutamente com estas idéias. No evangelho, o nacionalismo é substituído pelo universalismo. E, embora Jesus se relacione somente em ocasiões isoladas com estrangeiros – uma delas é esta – sua acolhida a eles é um sinal de que Deus não é de nenhuma raça, nem de nenhuma nação.

Neste episódio não se insiste tanto na cura do rapaz, mas no que significa para nossa fé: a necessidade de superar as barreiras nacionalistas.



(Mateus 8, 5-13; Lucas 7, 1-10; João 4, 43-54)         
   
43

O TRIGO E A ERVA DANINHA




Naquela tarde, depois da pesca, todos nos reunimos em casa. A visita de Jesus a Cornélio, o capitão romano de Cafarnaum, fez ferver o nosso sangue. Durante umas boas de horas não fizemos outra coisa senão falar e falar sobre aquilo... Meu pai, Zebedeu, era quem mais estava com a língua mais solta...

Zebedeu: Podem deixar, quando ele chegar terá de ouvir poucas e boas, puxa vida, porque eu vou lhe dizer as sete coisas que ninguém lhe disse, porque esta vergonha eu não agüento, e não agüento porque é um desaforo, porque não estou disposto a dar abrigo em minha casa aos que vão lamber as patas dos cachorros romanos, que são tão cachorros quanto eles porque apóiam suas cachorradas, maldito seja!
João: Tome um pouco de fôlego, velho... Vamos, acalme-se...

Quando já era noite, Jesus se aproximou da porta...

Jesus: Zebedeu... Zebedeu... posso entrar?

Ninguém respondeu...

Jesus: Perguntei, se posso entrar...
Zebedeu: Vai pro diabo, nazareno!
Jesus: Como aqui se sabe de tudo, suponho que já lhe contaram que não pus o pé na casa do capitão. Não cheguei a entrar... “Não manchei minhas sandálias pisando o pátio de um romano”...
Zebedeu: Mas o que você está pensando, moreno do diabo? Que pode ir e vir sem dar explicações a ninguém? Será que não sabe quem é esse Mateus, publicano almofadinha? E não sabe quem é Cornélio, esse capitãozinho? Que Satanás se ocupe dele e de todos os seus! Já faz seis meses que está morando em Cafarnaum e ainda não conhece esses vermes, heim? Vamos lá, responde!
Jesus: Creio que conheço melhor que você, Zebedeu.
Zebedeu: Melhor que eu, verdade? Pois então vai dormir na toca deles e roer os ossos com os traidores do povo! Eu não dou abrigo em minha casa aos camaleões como você que trocam de cor de acordo com o prato em que comem!
Jesus: Então... Não posso entrar?
Zebedeu: Entre, condenado, entre... Não vai ficar aí como um mendigo... Além disso, já estou com as tripas reviradas desde o meio-dia, quando esse porco do Mateus veio procurá-lo...

Jesus entrou na casa e nos olhou a todos... Depois se sentou no chão, com as pernas cruzadas. Nós esperamos que nos desse uma explicação. Mas ele não disse nada.

Zebedeu: Que coisa, Jesus, engoliu a língua?
Tiago: Jesus, como é que você explica: estamos todos os dias aqui discutindo o que se pode fazer para tirar esses romanos das nossas costas, e você vai, nada menos, que à casa do chefe deles, desse Cornélio, vai pro raio que o parta!
João: Um dia você disse que os romanos têm a espada posta no nosso pescoço e que as coisas têm de mudar, e hoje todo o bairro o viu junto com esse traidor do Mateus indo visitar o romano... E aí? O que é que há com você?
Zebedeu: Que o inferno o engula, Jesus! Não há quem o entenda! E, então, não vai abrir a boca?
Jesus: Zebedeu, esse capitão Cornélio não é má pessoa. Verdade!
Tiago: Não é má pessoa, caramba, mas é um romano! E isso é o bastante!
Jesus: Sim, é romano... E daí?
João: Como e daí? Os romanos são nossos inimigos.
Jesus: Cornélio é romano. Nós somos judeus. E os outros são gregos... E daí?... Da fruta a gente não come a casca, mas a parte de dentro, não é?... Esse capitão tem casca de romano. Mas há boa fruta dentro dele.
Tiago: Pois tenha cuidado para não se engasgar com essa fruta!
Zebedeu: Bobagens, Jesus, bobagens... Está parecendo que você tem muitas caraminholas na cabeça. Se dizemos que temos de acabar com os romanos, é que temos de acabar com eles! Não fique dando voltas no assunto!
Jesus: Mas veja, velho Zebedeu, para mim,  vai acontecer com você igual ao que ocorreu com Tito e Abdón.
Zebedeu: Que Tito e que Abdón?... Que diabos são esses?
Jesus: Esses eram os companheiros de Renato...
Zebedeu: Mas, de quem você está falando, peste?
Jesus: De Renato, um lavrador que tinha um pedacinho de terra por lá, detrás da colina de Nazaré...

Jesus: Quando chegou o tempo das chuvas, Renato semeou todo seu terreno de trigo...

Mulher: Então, velho? Cansado?
Renato: Sim, mulher, estou cansado... Mas contente. Espero uma boa colheita este ano, espere só pra ver...
Mulher: Poderemos comprar uma ovelha... Não é Renato?
Renato: Uma ovelha?... Não uma, mulher, mas quatro. E também uma cabra... Será uma boa colheita, você vai ver, vai ver...

Jesus: Mas Renato tinha um vizinho encrenqueiro que tinha muita inveja quando os outros estavam indo bem. E este vizinho se levantou à meia-noite e foi às terras em que Renato tinha semeado o trigo...

Vizinho: Re, re!... Vou semear erva daninha na roça e estragarei toda colheita... E depois vou estourar de rir vendo a cara do imbecil do Renato, rá, rá, rá!

Jesus: E enquanto todos dormiam, aquele malvado se dedicou a espalhar sementes de joio no terreno do pobre Renato... Poucos dias depois brotaram as sementes e a terra começou a vestir-se de verde com as folhinhas novas. O trigo e a erva daninha começaram a crescer juntos... Então passaram por ali Tito e Abdón, os companheiros de Renato, e viram aquele desastre. E foram correndo contar a seu amigo...

Renato: Que foi, o que foi?
Tito: Abre, Renato, somos nós?
Renato: Mas, que ventos os trazem?
Abdón: Mas, ainda não percebeu, Renato:
Renato: Perceber o quê?
Abdón: Tem erva daninha na sua roça! Nós observamos bem, está saindo muito joio...
Renato: Como? Joio? Não pode ser. Eu escolhi bem a semente. Semeei trigo de boa qualidade.
Tito: Pois o campo está infestado de erva daninha.
Renato: Demônios! Quem será que fez isso?
Abdón: Pois já pode imaginar... O que todos conhecemos.
Renato: Você acha que ele seria capaz de fazer uma coisa dessa?
Abdón: Pois é claro. É capaz disso e de muito mais. Esse seu vizinho é um safado.
Renato: Tenho vontade de agarrá-lo pelos bigodes e... !
Tito: Agüente aí, Renato. Deixe disso. Olhe, não se preocupe. Amanhã mesmo, Abdón e eu vamos lhe dar uma mão. Juntos, nós três limparemos bem a roça. Arrancaremos todo o joio que está nascendo no terreno, e assunto encerrado.
Renato: Obrigado, amigos, obrigado. Conto com vocês.

Jesus: E na manhã seguinte...

Renato: Escute, espere aí, o que você está arrancando? Deixe eu ver...
Tito: É joio, olha...
Renato: Não, homem não, isso é trigo.
Tito: É joio, Renato, olhe bem!
Renato: Não seja imbecil, Tito, estou dizendo que esta folha é de trigo!
Tito: O que você acha, Abdón?
Abdón: Deixe eu ver... Não sei, é que se parecem muito uma com a outra...
Tito: Pelos calos de Abraão, digo que isto é joio, Renato!
Renato: Pois eu digo que é trigo, Tito, e que você está arrancando o meu trigo!... Ufa! Um problema atrás do outro. Aquele vizinho me estragou a roça e agora vocês vão me estragar a colheita...
Abdón: Bom, Renato, e o que você quer que a gente faça?
Renato: Escutem, companheiros, vocês me perdoem. Eu lhes agradeço que tenham vindo... mas, vamos deixar isto para outro dia, que acham? Porque enquanto não se vê o fruto, é muito difícil saber qual é trigo e qual é joio. Vamos deixar que cresçam juntos, que tal? E em breve, já será o tempo de separá-los. Assim, a colheita não se estragará. Somente que, no final, teremos mais trabalho para escolher as espigas boas e tirar as más.
Tito: Tem razão, Renato. Pior seria arrancar o trigo pensando que é joio. Agora é muito cedo para sabê-lo.
Renato: Quando chegar o tempo da colheita, eu avisarei vocês. Então se verá bem qual é trigo e qual é joio. O joio, queimaremos. E o trigo, guardaremos no celeiro. Certo?
Abdón: Certo, Renato.

Jesus: E se passaram os dias, e o trigo e o joio cresciam juntos. E quando chegou a colheita, Renato e seus companheiros separaram facilmente as espigas de trigo e as espigas de joio. Desta vez, não se enganaram. Souberam ter paciência e não se equivocaram.

Zebedeu: Então eu me pareço com Tito e Abdón, os companheiros desse Renato?

Jesus: Eu penso que sim, Zebedeu. Você disse: “Cornélio é joio, fora com ele! Temos de arrancá-lo!”
Zebedeu: Eu disse e volto a dizer!
Jesus: Pois veja você: Deus não é assim. Deus tem um pouco mais de paciência, porque sabe que os homens são como as plantas: se conhece pelo fruto. Se uma árvore dá bom fruto, essa árvore é boa, embora tenha a casca feia. Mas se o fruto é ruim, a árvore é má, embora tenha muito boa aparência. O que conta é o fruto, Zebedeu. Então, me diga uma coisa, você já viu alguma vez uma touceira de espinhos dando uvas?
Zebedeu: Não!
Jesus: E viu alguma moita de cardos com figos nos ramos?
Zebedeu: Também não!
Jesus: Então...
Zebedeu: Então continuo insistindo que Cornélio é um cachorro romano, e me diga com quem andas que eu te direi quem és!
Jesus: Claro, assim é mais fácil. Nós apontamos o dedo, lhe colocamos um letreiro no pescoço, na frente de todo mundo e pronto!: vocês são os maus, nós, os bons. “Deus meu, que chova fogo do céu e queime os chifres de todos esses safados!”... Mas Deus ri e diz: escute, e como você sabe qual é o trigo e qual é o joio? “Porque este é romano, e aquele é judeu, e este fariseu piedoso e aquele um revolucionário zelote, e este um saduceu vendido, e este outro, um sacerdote do templo!”... E Deus recolhe todos os letreiros que levamos pendurados e os queima no lixo. Mostrem-me os frutos. Mostrem-me os frutos, e então conversamos. Não acha, Zebedeu, que temos de prestar mais atenção no que a pessoa faz do que no título que ostenta?
Zebedeu: Eu só acho uma coisa, Jesus...!
Jesus: Que coisa, Zebedeu?
Zebedeu: Que esse capitão é romano! E que só de vê-lo já me revira as tripas! Assim, que eu acho muito ruim que tenha ido à casa dele! E continuarei pensando assim até o dia em que me fechem os olhos e esteja no fundo do lago comido pelos caranguejos!!
João: Vamos lá, pai, sossegue... assim vai ter um piripaque... vai com calma...
Jesus: Quando chegar esse dia, você entenderá tudo Zebedeu. Só no final é quando se vêem as coisas claras. Isso de separar o trigo do joio é assunto de Deus, não nosso.

Meu pai, Zebedeu, continuou resmungando. E meu irmão Tiago também. E Pedro. E eu. Fomos até às tantas da noite discutindo com Jesus. Nenhum de nós entendeu então aquela história do trigo e da erva daninha.

O nacionalismo intolerante que tinham Zebedeu, seus filhos e, seguramente, a maioria dos discípulos de Jesus, os enchia de preconceitos. Nesse caso, em particular, preconceitos políticos contra as autoridades romanas e os colaboracionistas, como Mateus. Por sua condição social, os preconceitos dos amigos de Jesus não seriam nem de tipo moral nem religioso. Mas eram bastante intransigentes em questões políticas. Se o nacionalismo é entendido em um sentido excludente, de superioridade ou prepotência, pode ser um sentimento muito perigoso e estar em contradição com o universalismo cristão. O evangelho de Jesus é uma mensagem que tende a apagar as fronteiras entre as nações em favor de uma profunda solidariedade entre os homens.

Frente a esta intransigência, Jesus conta a seus amigos uma parábola. A parábola do joio e do trigo é um chamado à compreensão e à tolerância. Jesus os faz ver como é arriscado julgar antes do tempo e o quão útil  pode ser a paciência até o momento da colheita. Na Palestina cresce uma variedade de joio, que é uma erva daninha muito parecida com o trigo. Quando está crescendo mal se distingue deste. Se – como conta a parábola – há muita erva daninha no campo por culpa do vizinho malvado, é perigoso arrancar o joio antes do tempo. É melhor esperar e, no momento da colheita, tirar o joio entre as espigas do trigo. Pois então é bem mais difícil de se enganar. É costume dos camponeses aproveitar o joio deixando-o secar e usá-lo depois para o fogo. A Palestina é uma terra pobre em matas e, portanto, escassa de material combustível.

Com esta parábola Jesus quer dizer que ninguém está capacitado para estabelecer claramente quem é quem, para pregar etiquetas e, com base nisso, discriminar aos demais. Os homens não podem ver dentro do coração e se pretendem classificar em “bons” e “maus” os outros, podem cair em grandes erros. Só nos filmes – e não precisamente nos melhores – está bem claro desde o início quem são os bons e quem são os maus.

A parábola se refere também ao juízo que Deus fará no final da história, quando será a hora da colheita e se saberá, sem erro, quem era trigo e quem era joio. E ao falar do juízo, Jesus fala também da paciência de Deus. Deus é paciente porque é bom, porque sempre dá oportunidades aos homens. E também o é porque é sábio, porque não cai na armadilha das aparências: Julga o homem por sua atuação e não pelo cargo, vestimenta ou a função que tenha.

Durante muito tempo, nós cristãos evitamos compromissos concretos no processo histórico, esperando sempre ter bem claro quem é bom e quem é mau. Esta forma de agir indica pouco realismo e, além disso, orgulho. Pretendemos ser “deuses”. Só Deus é capaz de diferenciar realmente o trigo do joio e só no final separará um do outro. Enquanto isso, no meio da história, tudo está misturado. Os que não se comprometem com nada por causa desses escrúpulos de pureza são os mais condenáveis de todos. Não fizeram nada mal, certamente, mas deixaram de fazer o bem – muito ou pouco – e por isso terão de prestar contas.

(Mateus 13, 24-30)     
    


  







































44
A VENDEDORA DE FIGOS



Naquele dia, ao cair da tarde, Tiago, Pedro e eu estávamos com Jesus na taberna, perto do cais. Jogávamos dados, sentados no chão...

Tiago: Cinco e três!... Esta rodada já está no papo!
Pedro: Um momento, Ruivo, que ainda falta eu!... Passe os dados.
Jesus: Vamos, Pedro, defende a honra do filho de Jonas!
Pedro: Segurem a respiração, companheiros, que lá vou eu... Cinco e quatro! Ganhei!
João: Esse Pedro é problema! Parece que tira os dados da manga!
Taberneiro: Então, o que está acontecendo aqui? Quem está ganhando?
João: Por enquanto, o Ruivo e este Narigão. Mas dizem que quem ri por último ri melhor...
Taberneiro: ... se beberem bem, melhor ainda! Ei, vocês, perdedores, não desanimem! Logo trago para vocês uma jarra cheia do melhor vinho galileu e poderão fazer um bom brinde! Para ter sorte com os dados no jogo, e com os peixes no lago, e com as mulheres na cama!
João: Esse Joaquim, sempre com suas histórias...
Melânia: Olha o figo, figo! Delícia de figo! Doce como o mel, olha o figo!
Tiago: ... e aquela com as suas.

Era Melânia, a vendedora de figos, quem chegara nesse momento...

Melânia: Olha o figo, figo, delícia de figo!...
Tiago: Outra vez essa fulana por aqui...!
Jesus: Quem, Tiago?
Tiago: Essa dona aí, dos figos...
JesusEu sempre a vejo no mercado.
Pedro: E pelas ruas e por todas as esquinas! Se você se descuida ela se mete até no banheiro para vender seus malditos figos!

Melânia começou a dar voltas pela taberna com sua velha e suja cesta de figos na cabeça. Era uma mulher muito magra que sempre se vestia de negro. Anunciava sua mercadoria com a sua voz de taquara rachada e sorria de um lado a outro tentando encontrar um comprador para seus figos maduros...

Tiago: Farrapo de mulher! Olha como está acabada...
Jesus: Por que, Tiago? Que aconteceu com ela...?
João: Ah, isso todo mundo sabe... Algo incrível, Jesus! Escute só, essa aí não é como as outras mulheres, que uma vez por mês têm seus incômodos... Ela desde há muitos anos está como o mesmo problema...
Pedro: Por isso que está acabada... E olhe que nenhum médico pode curá-la. Parece que a mulher tinha seu dinheirinho antigamente, mas gastou tudo indo de médico em médico... E nada!
João: Todos os curandeiros da Galiléia a conhecem. Mas nenhum achou o remédio que lhe dê jeito!
Pedro: Mas ela, dá um duro danado com esses figos, para conseguir mais dinheiro e mais médicos...
Melânia: Olha o figo, figo! Delícia de figo! Doces como o mel, olha o figo, figo!
Tiago: Não, não queremos figos... Dá nojo os teus figos...
Melânia: Estão bons, moço. Olhe só... Cheios de mel... Olhe...
Tiago: Vai com os seus figos para outro canto! Não queremos.
Melânia: E você, forasteiro... não quer prová-los...?
Jesus: Não tenho um tostão furado, mulher...
Melânia: Escute, você não é aquele que...?
Tiago: Caia fora, já disse! Vamos, chispa, anda!

A vendedora de figos continuou dando voltas na taberna. E nós continuamos rindo dela e de seus males...

Jesus: E não tem marido?
Tiago: Mas, Jesus, que homem vai arcar com essa calamidade?... Essa não é mulher nem nada. Nem sequer serve para parir um filho...
Jesus: Mas, trabalhar ela trabalha... Pois ela passa o dia inteiro de lá pra cá com sua cesta de figos...
Pedro: Sim, claro, xeretando e metendo o nariz em todas as partes. Esse é o único trabalho que fazem as mulheres: conversar. Eu creio que Deus não as fabricou de uma costela, mas da língua de Adão! Ai, as mulheres!... É que são muito frouxas, isso é o que eu lhe digo, se cansam fácil...
Jesus: Rufina não é frouxa, Pedro... Se não fosse ela, que seria de sua casa, heim?
Pedro: Isso sim, Rufi trabalha, mas... mas sempre anda se queixando... Sempre preciso fazer-lhe uns carinhos, você sabe... Se não, não funciona... Uma coisa eu lhe digo, as mulheres são palha que o vento leva...!
Jesus: Não diria isso de Salomé... Salomé é uma mulher forte e esperta...
João: Bom, Moreno, essa é minha mãe... Isso é uma coisa à parte...
Tiago: As mulheres são fracas, caramba... Veja agora a menina do Jairo...
Jesus: Que tem a filha do Jairo?
Tiago: Pois, rapaz, essa menina já estava um brotinho... Estava se desenvolvendo muito bem, a condenada... Mas, veja você... o caso é que, faz uns dias, parece que a menina pegou um resfriado... e pronto: já está morrendo! Por um catarro de nada! É o que eu estou lhe dizendo, são frouxas.
Jesus: Como morrendo? Está mal assim?
Tiago: De manhã me disseram que de hoje não passava...
Pedro: É que as mulheres se partem mais fácil que as tiras das sandálias! Bah!, se devemos dar graças a Deus por alguma coisa, é por termos nascido homens! Não é assim?
João: Ouçam, a jarra já secou! Vamos à taberna do lado... Lá o vinho é melhor.
Tiago: Isso mesmo. Vamos fazer outro brinde. Porque tivemos a sorte de ter nascido machos! Venham, vamos...!
Pedro: Boa idéia, esse vinho de passas já está me queimando a goela...
João: Vem, Jesus?
Jesus: Não, vão vocês se quiserem... Eu gostaria de ir ver essa menina...
João: Que menina?
Jesus: A filha do Jairo. Conheço o seu pai. É boa gente. Ele e sua mulher devem estar muito preocupados... Se a menina está tão mal...
Tiago: Bah!, deixa isso para outro momento, Moreno... Estamos cansados.
Jesus: Cansados? ... Ah, eu pensei que os homens não se cansavam nunca... Se vocês não quiserem ir, não precisam. Eu vou.
Pedro: Está bem, vamos lá...

Muito a contragosto, nos decidimos a acompanhar Jesus. Quando saímos da taberna, Melânia, a vendedora de figos, estava outra vez ali...

Melânia: Olha o figo, figo, delícia de figo, doce como o mel...!
Tiago: Lá vem ela com os figos! Não ouviu que seus figos nos dão nojo? Saia daqui!

Os olhos de Melânia, fundos e brilhantes, se voltaram para Jesus.

Melânia: E você, forasteiro...?
Jesus: Já lhe disse que não tenho nem um centavo. Outro dia eu compro.
Melânia: Forasteiro, espere, me disseram que você tem mãos de médico, que curou algumas pessoas... Eu... eu estou doente... eu queria que...
João: Vamos, Jesus, não dê confiança! Caia fora com seus figos e nos deixe em paz!
Pedro: Escute, mas que gritos são esses?

As carpideiras de Cafarnaum, aquelas mulheres que tinham por ofício chorar pelos nossos mortos, atravessaram a rua correndo e lamentando-se com seus cabelos desgrenhados. Ao ouvir seus gritos, o povo saiu de suas casas e foi enchendo a rua.

Uma Mulher: É Jairo! Morreu a filha dele! Morreu a filha dele! Morreu a filha de Jairo!

Jairo era um dos encarregados da sinagoga de Cafarnaum. Todos nós gostávamos dele e, ao saber o que tinha acontecido, o bairro inteiro saiu correndo para sua casa. Nós também fomos. E muito próximo de nós, ia também Melânia, a vendedora de figos... Na frente da casa de Jairo, as pessoas se apertavam para entrar...

Tiago: Essa mulher está nos seguindo desde a taberna, Jesus, reparou?
Jesus: Sim, reparei.
Tiago: É mais chata que uma mosca no nariz.
Jesus: É valente, Tiago. Não se importa que riam na cara dela. Sabe o que quer.
Tiago: E o que é que ela quer?
Jesus: Quer ficar curada. Só isso. Não tem marido, não tem filhos. Quer, ao menos, ter saúde.

Enquanto esperávamos para entrar na casa de Jairo, Melânia foi abrindo espaço aos empurrões e, por trás, começou a chamar a Jesus...

Jesus: Escute, mas, quem é que está me tirando da túnica?
Tiago: Quem poderia ser? ... Olha ali... a asquerosa!

Melânia tinha conseguido por fim se aproximar de Jesus. Olhava-o com esperança...

Melânia: Você pode me curar! Você pode me curar!
Jesus: Como você se chama, mulher?
Tiago: A chamam de “mija sangue”! Ra, ra... Assim é como todo mundo a conhece...
Jesus: Agora ninguém mais voltará a chamá-la com esse nome, Melânia.

Fazia anos que aquela mulher não ouvia seu nome dito com tanto respeito e carinho. Fazia também muitos anos que não sentia tanta vida em seu corpo, cansado pela enfermidade e pelo sofrimento. Quando se levantou do chão, parecia com uma árvore que desperta de seu inverno e começa a soltar suas flores...

Jesus: Vai em paz, mulher.

Nós a vimos seguindo pelo caminho cheio de gente, com a cabeça alta e firme, ligeira, como se tivesse asas.

João: O que aconteceu com ela agora, Jesus? Está louca ou o quê...?
Jesus: Não, João, os loucos somos nós. A vida da mulher pesa tanto como a do homem na balança de Deus... mas nós desnivelamos essa balança. Vamos! Vamos ver essa menina!

Entramos na casa de Jairo. Os lamentos e as choradeiras e a fumaça de incenso recém-queimado, enchiam o pouco ar que havia para respirar...

Um Homem: Afinal de contas, Jairo teve sorte! Sobraram todos os varões. Se alguém tinha de morrer, melhor que fosse a menina, não é mesmo?
Tiago: Isso mesmo, dos males o menor.
Pedro: Vamos daqui, Jesus. Esse lugar está sufocante... Além disso, a morto, morta está. Já não há mais nada a fazer, senão chorar. E já há mulher demais chorando.
Jesus: Não sei por que choram, Pedro. Essa menina não está morta, só está dormindo.

As pessoas que estavam perto de nós e escutaram Jesus dizer isso, começaram a rir...

Um Homem: Escutem, vejam só o que ele disse...! Que a menina está dormindo!...

Pouco a pouco, Jesus abriu caminho até o quarto onde a filha de Jairo estava estendida. Pedro, Tiago e eu fomos com ele. Ao lado da menina, sua mãe chorava, arranhando o rosto e rasgando a roupa. Jairo, recostado contra a parede, levantou os olhos e viu Jesus entrar...

Jairo: Jesus... Está vendo... Aí a tem. Começava a viver e nós a perdemos...
Jesus: Não chores, Jairo...
Jairo: Não me importo de chorar. Os homens também choram. As pessoas me dizem para me consolar que me sobraram outros três filhos homens, que são as mulheres as que choram pelas mulheres, que, afinal, por uma menina.... mas eu... eu a queria muito...
Jesus: Deus também a queria muito. Deus o compreende, Jairo. Ele também chora, o mesmo tanto quando morre um filho do que quando morre uma filha.

Jesus se aproximou da esteira e olhou devagar a menina. Parecia que ela estava dormindo. Ninguém diria que ela estava morta... Agachou-se e tomou a mão dela...

Jesus: Vamos, menina, acorde, levanta-se...

E como se tivesse saído de um sono profundo, a filha de Jairo se levantou e sorriu...
  
  

Nas leis civis e religiosas e nos costumes de Israel, a mulher era um ser inferior ao homem. As leis civis a igualavam ao escravo e à criança menor de idade, já que, como eles, devia ter um homem como dono. Seu testemunho não era válido em um julgamento, pois era considerada como mentirosa. Também era marginalizada no campo religioso. Não podia ler as Escrituras na sinagoga e não podia abençoar as refeições. Um detalhe da própria linguagem: as palavras hebraicas para “piedoso”, “justo” e “santo” não têm feminino. Supõe-se, pois, que uma mulher nunca pode ser o que essas palavras indicam. Existia uma oração, que se recomendava que os homens a rezassem todos os dias: “Louvado seja Deus por não me ter feito mulher”.

A exclusão da mulher da vida social era muito maior entre as classes altas e nas cidades grandes, que no campo e em povoados pequenos. No entanto, em todo país, a escassa importância que se dava a mulher, lhe era concedida por sua habilidade nas tarefas da casa. A mulher era apreciada fundamentalmente pela sua fecundidade. Uma mulher incapaz de ter filhos não tinha valor algum. Nesse sentido, naturalmente, era mais apreciada aquela que dava a luz a um varão que a uma menina. O nascimento de uma menina produzia, às vezes, indiferença ou tristeza. “Desgraçado aquele cujos filhos são mulheres!”, afirmava um ditado popular. Influenciados por esse ambiente, inculcado desde a infância, os discípulos de Jesus seriam machistas e menosprezavam as mulheres. Mais ainda uma mulher como a vendedora de figos que aparece nesse episódio.

Entre as mulheres das classes pobres era comum o ofício de vendedora. No caso de Melânia seria sua forma de sobreviver, pois como não dependia de nenhum homem, era mais desvalida do que qualquer mulher. Sua doença – o evangelho diz que ela era “hemorroíssa” – é a menorragia: uma menstruação irregular, que a fazia padecer de um fluxo contínuo de sangue. Além dos incômodos e do debilitamento que uma doença assim produz, Melânia era uma mulher sempre “impura”, já que toda mulher era considerada impura durante os dias de sua menstruação (Lv 15, 19-30). O caso da vendedora de figos era pois, por muitas razões, um caso de extrema marginalização social: por ser mulher, por sua doença, por sua esterilidade, por sua solidão. Isto explica também a vergonha de se aproximar para pedir ajuda a Jesus. A ajuda que Jesus dá a Melânia ao curá-la e o milagre que faz sobre a filha de Jairo, são sinais de que para Deus não há diferença entre os sexos, de que o homem e a mulher são iguais. O evangelho é feminista, pois reivindica a igualdade fundamental da mulher em relação ao homem e a igual dignidade de ambos frente a Deus (Gl 3, 28). Este é um dos aspectos mais revolucionários da mensagem de Jesus.

Somente levando em conta o machismo fundamental da sociedade do tempo de Jesus, se pode apreciar plenamente a novidade que significa o evangelho, a profunda surpresa que deve ter causado a atitude de Jesus para com as mulheres. Em muitos países, o machismo é um componente social que tem um peso enorme. O Reino de Deus chegará em sua plenitude só quando a mulher for apreciada ao lado do homem, tenha as mesmas oportunidades e os mesmos direitos, só quando possa se desenvolver em plenitude como ser humano, sem nenhum obstáculo social, econômico ou religioso.

(Mateus 9, 18-26; Marcos 5, 21-43; Lucas 8, 40-56)   
45

UMA PERGUNTA QUE CHEGOU DA CADEIA

 

João, o profeta do deserto, continuava preso na cadeia de Maqueronte. O rei Herodes não se atrevia a matá-lo por medo de uma sublevação popular. Também não se atrevia a deixá-lo em liberdade por medo de Herodíades, sua mulher. E assim, João passou meses sem ver a luz do sol, apodrecendo numa masmorra úmida e escura, perto  das montanhas de Moab...


Matias: Psiu!... Carcereiro!
Carcereiro: Vocês outra vez!
Matias: Queremos ver o profeta.
Carcereiro: Mas vocês estão achando o quê? Vão pro inferno e deixem-me em paz!
Tomé: Que-que-queremos levar um po-pouco de comida ao pro-profeta João.
Carcereiro: Está proibido. A lei é a lei.
Matias: Cinco?
Carcereiro: Cinco! Hum! Arriscar a minha vida por cinco míseros denários!
Tomé: Uff... Te-te-te daremos sete. Certo?
Carcereiro: Malditos sejam. Está bem, passe as moedas. E você, infeliz, tome com cuidado! Qualquer dia cortam a metade da língua que lhe sobra! E ligeiro, hein! Não quero problemas!
Matias: João, João, que alegria em vê-lo!
João Batista: Tomé... Matias... que surpresa! Como conseguiram entrar?
Matias: Ora, não se preocupe, sempre se encontra uma alma generosa...
Tomé: Co-co-mo você está, João?
João Batista: Não muito bem, Tomé. A doença continua me corroendo por dentro. Estou cuspindo muito sangue.
Matias: Trouxemos alguma coisas para você comer. Veja... Não é muito, mas... E este xarope de folhas de figueira que uma comadre minha disse que é muito bom para os pulmões.
João Batista: Obrigado. Se não fosse por vocês, o que seria de mim?... Acho que até Deus se esquece dos presos...
Tomé: Não fale assim, João. Di-di-diga o que vo-você precisa e faremos o po-po-possível para arrumar.
João Batista: Sim, quero pedir-lhes um favor. Algo muito importante para mim. Preciso... preciso saber se posso morrer tranqüilo.
Matias: O que está dizendo, João? Tenha confiança. Herodes vai soltar você logo, logo. Tem de fazê-lo. O povo tem protestado muito e...
João Batista: As pessoas se esquecem do que não vêem. E já faz muito tempo que não me vêem.
Matias: Logo sairá daqui, estou certo disso. Voltará ao rio e o povo virá escutá-lo e você continuará batizando o povo de Israel.
João Batista: Não, Matias. Não... Esta doença acabará comigo antes. Estou me sentindo muito mal. Tenho os dias contados...
Tomé: Não di-diga isso, João.
João Batista: A morte não me assusta, Tomé. Quando comecei a falar de justiça, já sabia que isso acabaria... assim. Nenhum profeta morre na cama. Mas não me importa... Fiz o que tinha de fazer.
Matias: Fala, João. O que é que você quer pedir para nós?
João Batista: Lá no Jordão, conheci um galileu que veio se batizar. Quero saber o que aconteceu com ele. Se chama Jesus. E é de Nazaré... Ouviram alguma coisa sobre ele?
Matias: Sim. Os rumores sobre esse sujeito chegaram à  Judéia e até a Jerusalém.
Tomé: Uns di-di-dizem que é um curandeiro.
Matias: Outros dizem que é um bruxo. Ou um agitador.
Tomé: Alguns di-di-dizem que é um novo pro-profeta.
João Batista: Para mim não importa o que as pessoas dizem, mas o que ele diz. Preciso saber o que está fazendo, o que pensa...
Matias: Quer que vamos vê-lo e trazer notícias dele para você?
João Batista: Sim, é isso o que eu quero. Vão para Galiléia. Mas que ninguém fique sabendo. Seria perigoso para ele e também para vocês.
Tomé: Acho que-que-que ele vive em Cafarnaum.
João Batista: Pois vão até lá. E digam-lhe isso de minha parte: João, o filho de Zacarias, pergunta: Tenho os dias contados. Posso morrer tranqüilo? Semeei uma semente: Alguém a regará? Tinha um machado nas mãos. Alguém dará com ele o golpe necessário? Acendi uma luz... Alguém soprará a chama e acenderá o fogo? ... Digam-lhe que estou doente, e já não tenho mais forças nem voz para falar. Gritei, gritei anunciando o Libertador... meu grito se perdeu no deserto?
Matias: Algo mais, João?
João Batista: Sim... Pergunte se temos de continuar esperando ou... ou se já veio aquele que tinha de vir. Oxalá não tenha me iludido em vão!...
Tomé: Hoje mesmo vi-vi-viajaremos para Galiléia.
João Batista: Vão agora. E prometo que não morrerei antes que vocês voltem.

Tomé e Matias tinham sido do grupo de discípulos de João, quando o profeta gritava no deserto, na margem do rio. Agora viviam em Jericó e sempre que podiam iam a Maqueronte para visitá-lo. Naquela mesma manhã saíram em direção ao norte, à Galiléia dos gentios, para cumprir o desejo do profeta encarcerado...

Tomé: Te-te-temos de andar com cautela, Matias. As coisas vão mal.
Matias: E como vão! Na verdade, eu é que não queria acabar como João e que meus ossos apodrecessem num calabouço como aquele...
Tomé: Nem eu. Devemos falar po-po-pouco com esse Jesus. Só o necessário.
Matias: Bom, isso não vai ser problema pra você.

Passaram a noite em Peréia e depois em Decápole. E no terceiro dia, chegaram a Tiberíades. Margearam o lago e subiram até Cafarnaum...

Matias: Psiu... Amigo, por favor, sabe onde vive um tal Jesus, um nazareno?
Um Homem: O que-que-que dizem?
Matias: Não tenha medo. Somos de confiança.
Tomé: Queremos saber a-a-aonde está o nazareno?
Homem: Eu-eu-eu-eu...
Matias: Vamos, Tomé. Este está pior que você.

Perguntando aqui e ali, encontraram nossa casa. E Salomé, minha mãe, lhes disse que Jesus estava no cais, como todas as tardes, esperando que nós voltássemos da pesca... Tomé e Matias se aproximaram pelas costas...

Matias: Psiu... Ei , você...
Jesus: O quê?... É comigo?
Tomé: Sim, é con-con-com você...
Jesus: E o que é que há comigo?
Tomé: Quem é você?
Jesus: Eu é que pergunto: quem são vocês?
Matias: Estamos procurando um tal Jesus, de Nazaré.
Jesus: Pois já o encontraram. Sou eu.
Tomé: Tem certeza de que-que-que é você?
Jesus: Até hoje tenho certeza. Não sei se amanhã mudarei de idéia.
Matias: Finalmente o encontramos. Viemos do Sul...
Tomé: De-de-de Jericó...
Matias: Quer dizer, viemos de Maqueronte.
Jesus: De Maqueronte?
Matias: Shh! Não grite. Podem nos ouvir. A situação está muito ruim. Como a Páscoa está próxima, há mais vigilância do que nunca.
Jesus: Mas, é verdade que vieram de Maqueronte?
Matias: Sim, de lá mesmo.
Jesus: São do grupo de João, amigos dele?
Tomé: Sim. Vimos o pro-pro-profeta João na cadeia.
Jesus: E como ele está?
Matias: Está bem. Bom, está mal. Está mais branco que uma lombriga depois de tantos meses sem ver a luz do sol. Um homem que era alto e forte como um cedro, agora está um farrapo. Acabaram com ele.
Jesus: Está doente?
Matias: Sim, muito doente. Cospe muito sangue. Não vai durar muito...
Jesus: Preciso vê-lo antes que morra. Tem alguma maneira de ir até lá e falar com ele?
Matias: Você não poderia entrar. Além disso, reconhecem logo que você é galileu. E os galileus estão muito manjados.
Tomé: Nós damos uns denários ao car-car-carcereiro e ele nos deixa passar e conversar uns minutos com o profeta.
Jesus: Eu tenho de ir lá. Preciso falar com João e perguntar-lhe algumas coisas.
Matias: João também quer perguntar algo a você.
Jesus: Vocês me trazem alguma mensagem dele?
Tomé: Sim. João man-man-manda-nos dizer-lhe: Tenho os dias contados. Po-po-posso morrer tranqüilo?
Matias: Gritei anunciando o Libertador. Meu grito se perdeu no deserto? Temos de continuar esperando ou já veio aquele que tinha de vir?

Jesus ficou pensativo, com o olhar perdido nas pedras negras do cais...

Tomé: O que po-po-podemos dizer a João de sua parte?
Jesus:  Digam-lhe que... que a coisa vai indo bem. Lenta, mas bem. Começamos aqui em Cafarnaum. Somos poucos ainda, mas... mas anunciamos o Reino de Deus, lutamos contra as injustiças e procuramos fazer algo para que as coisas mudem.
Tomé: E o povo, como reage?
Jesus: O povo está despertando. Os que estavam cegos, vão abrindo os olhos. Os que estavam surdos, vão abrindo os ouvidos. Os que estavam derrotados, sem esperança, se levantam e começam a andar. E os mais pobres, os mortos de fome, compartilham o pouco que têm e se ajudam uns aos outros. O povo está se pondo de pé, sim, o povo ressuscita.
Matias: Quem se uniu a vocês?
Jesus: Muitos. Desses que sempre estiveram por baixo, claro. Digam a João que no Reino de Deus os últimos são os primeiros a entrar. Os que não têm lugar em parte alguma, os doentes, as prostitutas, os publicanos, os leprosos, os mais pisoteados... estes têm um lugar conosco...
Tomé: Não teve pro-pro-problema com a gente graúda?
Jesus: Sim, claro. Isso já se sabe...Quem procura acha...
Matias: E então?
Jesus: Então, nada. Seguimos adiante. Seguimos anunciando aos pobres a boa notícia da libertação. Que Deus está do nosso lado. Que a Deus revolve o coração ver como está este mundo torcido e quer endireitá-lo...
Matias: João se alegrará de ouvir todas essas coisas. Ficará muito feliz.
Jesus: Digam-lhe de minha parte. Digam-lhe que o machado não perdeu o fio, que o fogo não se apagou, que sua semente dará o fruto a seu tempo. João entenderá. João é dos que sabem compreender o caminho de Deus. Tem bom olfato para isso. Estou seguro que ele não se desiludirá do que temos feito até agora. Nem do que ainda nos falta fazer.
Pedro: Ei, Moreno, já estamos aqui!
Matias: Quem são esses?
Jesus: São do grupo que lhe falei.
Pedro: Caramba, e estes seus amigos? Quem são, Jesus?
Jesus: Olhe só! Pra falar a verdade, nem perguntei o nome deles ainda...
Matias: Eu me chamo Matias.
Tomé: E eu me chamo To-to-Tomé.
Jesus: Sabe Pedro? Eles acabaram de falar com o profeta João, lá na cadeia.
Pedro: É mesmo? Ei, rapazes, digam logo, têm noticias do profeta João!
Matias: Por Deus santo, não grite, olhe que os guardas...
Pedro: Que os guardas vão à merda! Andem, vamos tomar uma boa sopa de peixe para que nos contem o que sabem do profeta João. Que viva o movimento!

Chegou André. Chegou Tiago. Chegamos nós da outra barca, com o velho Zebedeu. E todos nós fomos com Tomé e Matias para que nos contassem como estavam as coisas pelo Sul e por lá, na cadeia de Maqueronte.    
  


Os evangelhos falam pouco do apóstolo Tomé. João é o que o cita em mais ocasiões, dá-lhe o sobrenome de “Dídimo” e o apresenta como um incrédulo. De Matias se sabe pelo livro dos Atos dos Apóstolos que foi eleito no lugar de Judas para completar o grupo dos doze, depois da ressurreição de Jesus. Nesse relato, Tomé e Matias aparecem como discípulos de João Batista, incorporados depois ao grupo de Jesus. Tomé é gago, ingênuo, um pouco cabeça dura e covarde. A personalidade de seu amigo Matias está menos definida.

João Batista, o profeta, que tanta influência teve sobre Jesus e que inspiraria decisivamente os primeiros tempos de sua atividade na Galiléia, quer saber, desde as masmorras do palácio de Herodes em Maqueronte onde estava preso, o que está fazendo o galileu que ele tinha conhecido no Jordão. A resposta queJesus dá a seus mensageiros indica a consciência que ele já tinha de ser herdeiro da tradição profética de seu povo e, cada vez mais, a de estar construindo com seus amigos, com suas palavras e com sua atividade, o reino messiânico que João mesmo e os demais profetas haviam anunciado.

Foi na sinagoga de Nazaré onde Jesus anunciou pela primeira vez a mensagem de libertação a seus conterrâneos. Naquela ocasião Jesus descreveu os sinais que caracterizam essa libertação. Agora, depois de um tempo de atividade na Galiléia manda que digam a João que o anunciado começa a se cumprir. Até aquele momento, a atividade de Jesus havia sido o que hoje chamaríamos uma tarefa de “conscientização”. Com sinais e com palavras, Jesus havia despertado entre os pobres de Cafarnaum e das aldeias, a esperança de sua libertação e a consciência de sua dignidade. O Reino de Deus começa precisamente quando no coração do Homem se abre caminho para certeza de que todos somos iguais, de que as diferenças entre os seres humanos são contrárias à vontade de Deus ,e a partir desta convicção, o homem acha forças para lutar por um mundo justo e livre. Antes de passar a qualquer ação libertadora, o cristão tem de tomar consciência desta mensagem, essencial ao evangelho. Não há ação libertadora sem uma prévia conscientização libertadora.

O texto profético de Isaías no qual Jesus baseou sua missão (Is 61, 1-2) falava de cegos, de surdos, de mortos... Uma interpretação que reduz os sinais do Reino Messiânico a simples e isoladas curas com as quais Jesus demonstrava quanto poder tinha,  falseia o evangelho. Cegos eram os que não viam, os que Jesus – com sua capacidade de fazer com que o homem se supere – fez com que voltassem a ver. Mas cego é, também, o pobre que, mergulhado na injustiça e vítima dela, não vê como sair dessa situação e chega a se cegar, quando pensa que sempre foi assim, assim será sempre. Surdo é o que não escuta com seus ouvidos e mais ainda o pobre que não escuta as vozes que falam de libertação, porque sua dor o fez perder as esperanças de que tudo possa mudar. Surdo é o que acaba se tornando fatalista e passivo. Mortos estão os que nunca viveram uma vida humana e só suaram e choraram, oprimidos por outros homens que os trataram como animais. Quando estes cegos vêem, estes surdos são capazes de ouvir e estes mortos se levantam de suas tumbas de miséria, o Reino de Deus está chegando. Porque o evangelho é uma boa notícia de libertação. Uma libertação integral que irá mais além desse mundo, libertando-nos da própria morte, mas que começa já nesta terra.

(Mateus 11, 2-6; Lucas 7, 18-23)   

46
O JEJUM QUE DEUS QUER



Tomé e Matias, os mensageiros enviados pelo profeta João, da cadeia de Maqueronte, se hospedaram na minha casa. Naquela tarde veio muita gente. Todos estávamos ansiosos para escutar suas notícias. Depois, quando se fez noite, nós do grupo, ficamos para comer. No chão, com as pernas cruzadas sobre a esteira, esperávamos que Salomé aparecesse com a sopa...

Pedro: Humm! Esses cheirinho está bom demais!
Salomé: Enfiem a concha até o fundo, que os melhores pedaços de peixe estão lá!

Salomé pôs no meio de todos um caldeirão grande e fumegante. O aroma da sopa encheu toda a casa...

Salomé: Zebedeu, meu velho, um pouco mais de educação! Deixe os hóspedes se servirem primeiro...!
Zebedeu: Tem razão, mulher... É que estou com uma fome que não espero nem por Deus...!
Salomé: Vamos, rapazes, Tomé e Matias, não tenham vergonha...
Matias: Não, primeiro vocês. Vocês começam e nós vamos atrás.
Tomé: Não vão aben-aben-abençoar o pão?
Zebedeu: Caramba, é verdade. Venha, Tiago, diga aí a benção...
Tiago: Deus de Israel, nos dás ao mesmo tempo a comida e a vontade de comer. Abençoa pois esta mesa, amém.
Todos: Amém.
Zebedeu: Vamos, rapazes, finquem o dente em um bom rabo de peixe para que possam dizer na Judéia o que todos já sabem na Galiléia: que não há melhores dourados que os de Cafarnaum!
Matias: Vocês começam, seu Zebedeu...
Zebedeu: Imagine, claro que não, Matias. Começe você. Não é que tenha muito, mas pelo menos está quente.
Tomé: Não, não, você pri-pri-primeiro...
Tiago: Talvez os hóspedes não gostem de peixe...
Tomé: Sim, gostamos, mas não po-po-podemos comê-lo.
Salomé: Não podem comê-lo?... Estão com dor de barriga?
Matias: Não, não é isso, é que... que não podemos comê-lo.
Pedro: Mas, por quê? Quem lhes disse que não podem?
Matias: Nós mesmos.
Tiago: Vocês?
Matias: Bom, é que Tomé e eu fizemos um voto de não comer peixe nem nada que venha do mar até voltarmos sãos e salvos para Judéia, depois da viagem.
Tomé: Deve-se fazer pe-pe-penitência.
Pedro: Ah, claro, claro... entendi... que coisa...
Zebedeu: Bom, homem, isso não é problema. Na minha casa os hóspedes mandam! Salomé, mulher, mate uma galinha para eles. Anda, ligeiro... E traz umas azeitonas para ir entretendo a boca...
Salomé: Já vou, velho, já vou...
Zebedeu: Não se afobem. Num instante já estará depenada e no outro fervida!
Matias: Não, não, não faça isso, dona Salomé!... Não se incomode... Espere...
Tomé: Tam-tam-tam...
Zebedeu: Qual é o tam-tam agora?
Tomé: Tam-também não po-podemos comer carne.
Pedro: E... e por que não podem comer carne?
Matias: Porque estamos jejuando. Até que passe a festa da Páscoa, prometemos não provar nem um pedaço de carne...
Tomé: Deve-se fazer pe-pe-penitência

Todos nós ficamos em silêncio, com os olhos fixos no caldeirão fumegante que nos deixava com a boca cheia d’água. Mas ninguém se atreveu a estender a mão para servir-se...

Tiago: Bem, companheiros... Então... então vamos passar da comida para bebida, o que acham? ... Isso, velha, traga um par de jarras de vinho para celebrar este encontro e... vocês também não tomam vinho?
Tomé: Juramos não pro-pro-provar uma gota de vinho até que o pro-pro-profeta João saia da cadeia. Deve-se fazer pe-pe-pe...
Zebedeu: Penitência, claro. Deve-se fazer penitência... Agora entendi porque este moço ficou com a língua seca, nem come nem bebe...
Salomé: Cale-se Zebedeu, não seja mal-educado. São nossos hóspedes.
Zebedeu: Claro, claro... e na minha casa os hóspedes mandam...

O ambiente ficou muito tenso. Todos nós baixamos os olhos e começamos a brincar com os dedos entre as mãos, ou a coçar a barba, ou a comer as unhas... Foi Jesus quem rompeu aquele pesado silêncio...

Jesus: Ouça, Salomé, esta sopa vai esfriar, não é? Humm... Que cheiro bom!... Vamos ver que gosto tem... “Os melhores dourados, os de Cafarnaum”... Está bom, sim... saboroso, puxa vida... muito gostoso...!

Jesus tinha metido a concha no caldeirão, tinha tirado do fundo uns bons pedaços de peixe e tinha enchido o prato de sopa até as bordas. Logo pegou uma fatia de pão e começou a comer sem cerimônia... Todos nós ficamos assombrados. Meu pai Zebedeu, da outra ponta da esteira, olhava o prato de Jesus com a boca aberta e com os olhos amarelos de inveja...

Jesus: Salomé, pode me servir um pouco de vinho?

Jesus se esticou até onde estava Salomé, que esperava como uma estátua, com uma jarra de vinho em cada mão...

Jesus: Tenho a garganta mais seca que uma telha... Ahhh...! “O melhor vinho, o de Cafarnaum”, deve-se dizer isso também... Salomé, sirva-me mais um pouco... Obrigado...

Aquilo acabou com a paciência do meu pai...

Zebedeu: Ao diabo com todos vocês!... O que está acontecendo nesta noite aqui, hein...? Comemos ou não comemos?
Jesus: Você está com fome, Zebedeu?
Zebedeu: Mas é claro que estou com fome! Já sinto umas agulhadas nas tripas... Pontadas, beliscões, torcidas... E você aí, comendo todo tranqüilo, chupando até os espinhos!
Jesus: Pois então coma também, homem. Quem o proibiu?
Zebedeu: Ninguém, mas como este cara veio com essa história de que deve-se fazer “pe-pe-penitência”...
Salomé: Zebedeu, não seja grosseiro com os convidados!
Zebedeu: Claro, claro, os convidados... claro. Todos estamos convidados a fazer penitência para que o profeta João possa sair do calabouço, não é isso?
Jesus: Tomé, você acha que Herodes, aquela raposa, vai soltar o profeta mais rápido porque você deixou de comer um pedaço de peixe?
Tomé: Herodes não, ma-ma-mas Deus...
Jesus: Deus?... Deus já está contente em ver vocês indo e vindo da cadeia para visitar o profeta e levar-lhe o que necessita...
Tomé: Isso não basta. Deus também manda castigar o corpo para pu-pu-purificar o espírito.
Jesus: Tem certeza de que Ele manda fazer isso?... Sei não,  parece que você imagina Deus... muito sério.
Salomé: E você, Jesus, como imagina que Deus seja?
Jesus: Não sei, mais alegre... Como te direi?... Sim, isso, alegre. Muito alegre. Diga-me, Salomé, o que há de mais alegre nesse mundo?
Salomé: Para mim o mais alegre é um casamento.
Jesus: Pois então Deus se parece com um noivo. Com o noivo desse casamento. E ele nos convida para sua festa. E você chega e diz: não danço, não como, não rio. Escute, então porque veio à minha casa?
Zebedeu: Bem dito, Jesus! Você me tirou um peso da consciência!
Pedro: Então companheiros, ao ataque!
Tomé: Um momento, um momento!... A coisa não é tão-tão-tão simples.
Zebedeu: O que é agora? Pelo umbigo que Adão não teve, o que é agora?
Matias: Vocês façam o que quiserem. Mas João batista disse claramente, tão claro como a água do rio: temos de nos converter, de nos arrepender, de nos sacrificar!

Todos nós ficamos tesos, Pedro, com a concha levantada. André e Tiago, com as mãos no ar, estendidas na direção do caldeirão de sopa. O velho Zebedeu, que já tinha mordido um pedaço, e se dispôs a engoli-lo de uma só vez, sentiu um nó na garganta...

Tomé: Se não fazemos sacrifícios, não po-po-podemos elevar-nos até Deus.
Jesus: Você acha, Tomé? E como é que as árvores crescem e se elevam até o céu, então?
Tomé: Não entendi, Je-je-jesus.
Jesus: Veja, eu vou lhe contar uma coisa que aconteceu comigo quando eu era menino. Eu tinha semeado na frente da minha casa umas sementes de laranja. As sementes se firmaram bem e a plantinha começou a crescer. Mas eu tinha pressa. Eu queria ver logo a flor branca da laranjeira e arrancar umas laranjas maduras...

Rabino: Mas, Jesus, menino, que está fazendo?
Menino: Esticando a planta.
Rabino: Mas, você não vê que é uma planta muito pequena?
Menino: Por isso mesmo, rabino. Eu estou ajudando a planta crescer.
RabinoVocê está causando dano a ela. Com esses puxões ela secará. Deixe-a quieta. A laranja não precisa que pense nela nem que lhe puxe os ramos para crescer... Ande, vai dormir, que já é tarde e Deus fez a noite para gente descansar...


Jesus: E enquanto eu dormia e enquanto eu trabalhava, a plantinha foi se convertendo em árvore e a árvore deu flores e frutos a seu tempo...
Pedro: Então...
Jesus: Então eu penso que o Reino de Deus se parece a uma semente que cresce e cresce sem que nós estejamos encima dela dando esticadas, jejuns, promessas, penitências... Vocês não acham que podem acabar arrancando a plantinha?
Salomé:  O que eu acho, Jesus, é que a vida já tem sacrifícios demais para que a gente fique inventando outros mais.
Zebedeu: Sim, senhor. Falem de jejum para o Seu Eliazim e a todos esses ricaços. Que nós já passamos jejuando todo o ano por conta deles. Vamos, rapazes, metam a concha antes de que isso esfrie!
Tomé: Um momento, um momento! Ainda não estou con-con-convencido...
Zebedeu: Escute aqui, língua de trapo, acabemos de uma vez com esse assunto, porque já estou por aqui com você. Vai ou não vai deixar a gente comer, hein?
Tomé: Eu digo que-que-que...

Nesse momento, o cego Dimas se aproximou da porta...

Dimas
: Que Deus abençoe a mesa e a todos os que estão nela! Dona Salomé, não sobrou por acaso algum pedaço de pão para este pobre infeliz?
Salomé:  Hoje sobrou tudo, velho Dimas. O que você quer?... Pão, vinho, ou peixe?... O que você prefere...
Dimas: Bom, pois se você tem a bondade de me dar alguma coisinha...
Salomé: Venha, Dimas, entre e sente-se à mesa conosco... Já vou lhe servir um bom prato de sopa...
Dimas: Obrigado, obrigado... A verdade, meus filhos, é que estou com uma fome...!
Zebedeu: Não será maior que a minha, velho. Mas de toda maneira, bom proveito...
Dimas: Obrigado, filho, obrigado...
Zebedeu: Enfim, os de fora vêm, se sentam e comem. E nós aqui, esperando que o condenado desse gago solte seu sermão. Para mim acabou, senhores. Estou indo pra taberna.
Jesus: Não, Zebedeu, espere. Não é preciso que se vá. Não percebe? Você já cumpriu com o jejum. Olha o velho Dimas. Este é o jejum que agrada a Deus: “compartilhar o teu pão com o faminto e receber em tua casa aos que não têm teto”... Porque Deus não quer que passemos fome, mas que lutemos para que outros não a passem. Isto foi o que pregou o profeta João e todos os profetas. Não é verdade, Tomé?
Tomé: Bom, é que-que-que...
Pedro: Que enquanto esse dá o arranque, nós vamos nos servindo!

E desta vez todos nós metemos a concha no caldeirão grande. Jesus encheu novamente o seu prato porque naquele tinha trabalhado duro e tinha muita fome. E Matias e Tomé comeram peixe e beberam vinho e riram muito com o velho Dimas que começou a contar histórias do tempo em que era pescador no lago...



Na Bíblia, o jejum aparece como uma forma de humilhação do homem ante a Deus. Era praticado para dar mais eficácia à oração, em momentos de perigo ou prova. Havia dias de jejum, nos quais a lei religiosa determinava que todo o povo devia abster-se de comer, em memória de grandes calamidades nacionais ou para pedir a ajuda divina. Também se podia jejuar por devoção pessoal. No tempo de Jesus, essa prática estava ganhando cada vez mais importância. Os fariseus e os homens piedosos tinham costume de jejuar duas vezes por semana: às segundas e quintas-feiras. João Batista, que foi um profeta de grande austeridade, certamente inculcaria em seus discípulos a necessidade do jejum. E por isso, Matias e Tomé aparecem neste episódio como fiéis observadores deste costume. O jejum, como outras devoções religiosas, foi criticado duramente pelos profetas de Israel. Tinha se convertido em uma espécie de chantagem espiritual pela qual os homens injustos pensavam conquistar a graça de Deus, esquecendo o essencial da atitude religiosa: a justiça. Com o culto, com incenso e orações, com duras penitências, buscavam obter méritos ante a Deus e assim salvar-se. Os profetas clamaram contra esta caricatura de Deus e da religião e deixaram bem claro qual é “o jejum que Deus quer”: libertar os oprimidos, compartilhar o pão, abrir as portas das prisões (Is 58, 1-12). Jesus consagrou definitivamente esta mensagem profética.

Uma equivocada idéia religiosa pode nos fazer crer que Deus gosta mais da gente ou nos concede mais favores se fazemos penitências. Às vezes, não há nisto má intenção. Quando o ser humano se sente doente, quando está diante de um grande problema que não sabe como resolver, quando tem medo, recorre ao céu. E como estas crenças, nascem as promessas (peregrinações, votos, rezas...), os sacrifícios (o jejum, outras mortificações do corpo, os cilícios, as flagelações...). Mas todas estas práticas refletem uma idéia de um Deus realmente horrível: Deus seria um sádico que só se aplaca com nossas dores, que só se abranda quando nos vê sofrer. Este Deus não se parece em nada coom o Deus da Bíblia, com o Deus de Jesus. Parece mais com estes ídolos de pedra diante dos quais os homens primitivos sacrificavam animais para que o cheiro do sangue acalmasse a sua ira. O Deus de quem falou Jesus, o Deus a que ele chama “papai” não quer nos ver sofrer, não quer nos ver com medo, deseja que sejamos livres, nos compreende e nos espera. É um Deus que não se compra, quer que o amemos. Só pede de nós justiça e humildade: que não nos sintamos superiores nem inferiores a ninguém. (Miquéias 6, 8).

Para tirar da mente de Tomé, Matias e dos demais essa idéia mercantilista do mérito, de que com esforços se conquista a Deus, Jesus conta neste episódio a parábola da semente que cresce sozinha. É uma forma de dizer que devemos ser humildes, que não pensemos que depende de nós a salvação. Que durmamos tranqüilos, com a certeza de que Deus vela por nossa vida. Isto não está em contradição com o trabalho que Deus nos confia de transformar a história. É um complemento necessário. Trabalhar, mas sem afobação, com a confiança de que o mais interessado em que nosso trabalho frutifique é o próprio Deus. E sem egoísmo, sem nos preocuparmos tanto com a nossa sorte ou pela de nossos irmãos.

Na primeira comunidade cristã aceitou-se a prática do jejum como uma preparação para a eleição dos dirigentes da Igreja (At 13, 2-3). Mas em nenhuma das cartas dos apóstolos se menciona o jejum. Depois, na civilização cristã, com o passar dos séculos, se impôs esse costume. Deve-se ter em conta que o jejum é uma prática habitual em muitas religiões orientais, como uma medida higiênica para manter a saúde. Considera-se que jejuar uma vez por semana pode ser benéfico para o bom funcionamento do corpo. Isto é recomendado por muitos médicos hoje em dia. A abstinência (deixar de comer carne e comer peixe em seu lugar), costume que durou até os nossos dias, tem uma origem mais econômica que religiosa. No século XII era necessário dar saída, nos mercados europeus, a grandes quantidades de peixe salgado que eram armazenadas nos mosteiros, os quais tinham o monopólio deste produto. Daí, a lei religiosa da abstinência. São só dois exemplos,  mas indicam que sempre devemos analisar e tratar de saber de onde vêm estas práticas de penitência. Nenhuma delas tem suas raízes em Jesus. A mensagem do evangelho é exigente, mas não nestas coisas. Exige justiça, igualdade, liberdade. De Deus, Jesus ressalta a misericórdia com os pecadores e seu amor especial pelos miseráveis, jamais sua mesquinhez com relação aos méritos que podemos acumular. Jesus foi um homem alegre, a quem os que jejuavam acusaram de beberão e comilão. E nos disse que o Reino de Deus era semelhante a um banquete, a uma boda, a uma festa. Isto sim que é autenticamente cristão.

(Mateus 9, 14-17; Marcos 2, 18-22 e 4, 26-29; Lucas 5, 33-39)
47
NOSSO PÃO DE CADA DIA



Tomé e Matias ficaram toda aquela noite nos falando do profeta João, dos maus tratos que recebia lá na cadeia de Maqueronte e da doença que estava lhe arrebentando os pulmões... O sangue da gente fervia contra Herodes, o tirano, que mantinha o profeta preso há tantos meses e que oprimia a nosso povo há tantos anos...

Pedro: Bem, companheiros... é muito tarde... O que vocês acham de a gente ir dormir?
João: Escute, Pedro, me arrume um lugar lá na sua casa. Assim Tomé e Matias podem ficar aqui.
Pedro: Claro, João, venha... onde dormem oito, dormem nove... ou noventa e nove! Vamos, Jesus?

Jesus e eu fomos dormir na casa de Pedro e André. Pelo caminho, Jesus não falou uma só palavra. Parecia muito preocupado...

Pedro: Boa noite a todos! Que descansem muito e ronquem pouco!

Como a casa era pequena e tinha muita gente nela, Jesus e eu nos arranjamos sobre um par de esteiras, junto à porta...

Jesus: Ufff...
João: O que é que há, Moreno?
Jesus: Nada, João... É que não consigo dormir...
João: Deve ser o calor...
Jesus: Sim, talvez seja isso. Sabe? Vou tomar um pouco de ar fresco.

Jesus saiu para fora da casa. Toda a cidade estava silenciosa e escura. Sobre a sua cabeça, milhares de estrelas cintilavam, como pequenas lamparinas penduradas no teto negro do céu... Jesus respirou profundamente o ar da noite e desceu pela ruela que dava no cais... Só se ouvia o ir e vir das ondas, a respiração lenta e contínua da água, como se o lago de Tiberíades também estivesse dormindo... Jesus apalpou uma pedra e se sentou sobre ela. E ficou ali um bom tempo, com o olhar perdido na escuridão...

Jesus: Pai, tu que estás no céu, e também aqui na terra, conosco. Bendito sejas. Em teu nome pômos nossa esperança. Que venha logo o dia de nossa Libertação. Que tua Justiça do céu se cumpra também aqui na terra. Dá-nos amanhã o pão que temos hoje. Dá-nos hoje a fome de lutar para que amanhã todos tenhamos pão. Perdoa-nos e ensina-nos a perdoar. Não nos deixes vencer pelo medo. Liberta-nos de nossos opressores. Liberta o profeta João da cadeia. Liberta nosso povo... Faz-nos livres, Pai nosso!

Depois de um bom tempo, Jesus voltou à casa de Pedro. Jogou-se sobre a esteira, junto à porta, e dormiu em seguida. Ao amanhecer...

Rufina: Levantem, rapazes, que o galo já cantou!... Ande, vó Rufa, levante, vamos... Pedro... já acabou a moleza, vamos, levante!... Jonas, sogro... Jonas!... Fingindo que está dormindo, né?... Pedrinho, meu filho, põe o calção, vamos... Shhh!, vai acordar o Mingo... André, caramba!... Ei, vocês dois, aprumem-se!
João: Hummm...! Raios, ficaria dormindo a manhã toda!
Rufa: Filha, onde será que eu deixei as minhas sandálias, hein? Você não as viu por aí?
Mingo: Mamãe, eu quero leite... estou com fome!
Rufina: Pedro, por Deus, levante-se e vai ordenhar a cabra!...
Pedro: Já vou, mulher, já vou...
Rufina: João, mexa-se. E acorde, Jesus, que não dá pra abrir a porta com ele aí estirado...
João: Deixe-o, Rufina, esse passou a noite fora e agora está dormindo como uma pedra...
Pedro: Ei, Jesus, saia daí, não há quem passe por aqui... Jesus!!
Jesus: Hummm... Não encha, Pedro... estou com sono...
Rufina: Claro, passa a noite dando voltas por Cafarnaum e agora não quer se levantar...
Pedro: E que demônios estaria fazendo este tipo por aí de noite, hein? Caçando morcegos?... Ei, Rufi, me passa a vassoura para dar umas boas vassouradas nesse dorminhoco... Vai ver como ele levanta rapidinho!
Jesus: Está bem, Pedro, está bem, já estou me levantando... Hummm...! Mas se prepare, amanhã vou jogar um balde de água fria na sua boca!
Pedro: Bom, e se pode saber o que o senhor perdeu na rua que saiu para procurar à meia-noite?
Jesus: Não perdi nada, Pedro. Tinha calor, saí um pouco para tomar ar fresco. E me pus a rezar.
Pedro: Rezar?... à essa hora?
Rufina: Como?... Você está com algum problema Jesus?
Jesus: Não, mulher. Simplesmente estive rezando.
Rufina: Mas a gente reza quando tem algum problema, não?
Jesus: Bom, um grande problema é o que tem o profeta João lá na cadeia, não acham? Estive rezando por ele. Para que Deus o ajude e lhe dê forças. Vocês não estão rezando pelo profeta João?
Pedro: Sim, sim... Bom, não. Na verdade, não tinha pensado nisso... E você, Rufi?
Rufina: Ah, Pedro, é que tenho tantas coisas na cabeça...
Pedro: O que acontece, Jesus, é que...
Rufa: O que acontece é que nesta casa se perderam todos os bons costumes e ninguém reza mais. Eu não sei o que tem essa casa que tudo se perde. Veja só agora as minhas sandálias, onde diabos estão as minhas sandálias, hein?
Rufina: Estão aqui, vó Rufa, não reclame mais. Na certa foi o Mingo que as escondeu aí no fogão...
Rufa: Estes pestinhas...!

Aquele foi um dia de muito trabalho, como tantos outros. Quando estava escuro, fomos nos juntando na casa de Pedro e Rufina...

Pedro: Escute, Jesus, me diga uma coisa... esta noite você vai rezar também pelo profeta João?
Jesus: E por que não...?
Pedro: É que eu tinha pensado que poderíamos rezar todos juntos por ele... Ei, o que vocês acham?
Rufa: Eu acho muito bom, meu filho, pois não deve ser à toa que dizem que em casa em que não se reza, a benção de Deus não passa....
Rufina: Ei, homens, venham pra cá, venham rezar!

Todos nós gostamos da idéia e fomos nos sentando um a um, formando um pequeno círculo, sobre o solo de terra da estreita casa de Pedro. Em um buraco na parede, uma lamparina queimava o último resto de azeite...

Jesus: Ande, vó, vamos todos rezar juntos pelo profeta João para que Deus o livre logo da cadeia. Comece a senhora.
Rufa: Como disse, meu filho?
Jesus: Para começar com alguma oração dessas que a senhora deve conhecer.
Rufa: Ah, sim meu filho, eu sei muitas orações que minha mãe me ensinou. Deixa eu ver, deixa eu pensar... uma oração para tirar um preso da cadeia... Eu acho que a melhor será o salmo 87. Sim, vou com esse... Aham.. Senhor-Deus-meu-dia-e-noite-clamo-a-ti-chegue-munha-oração-à-tua-presença-inclina-teu-ouvido-a-meu-clamor-a-ti-invoco-Deus-meu-minhas-mãos-levanto-a-ti-por-que-Senhor-não-me-ignores-por-que-me-escondes-teu-rosto?...
Pedro: Um momento, sogra, um momento. Vai mais devagar, caramba, que não há fogo para correr tanto.
Rufa: É que eu me esqueço das orações, meu filho, e tenho que soltar de uma vez para chegar no fim.
João: Pois eu fiquei no princípio. Não entendi nem o número do salmo.
Rufa: Salmo 87, o dos presos. Bom, se vocês querem, posso rezar também o 78, mas é uma oração muito forte. Temos de ter cuidado com ela.
Jesus: Como que é uma oração muito forte? Que é isso, vó?
Rufa: Bom, é que... é forte. Que não falha, porque pede a Deus sete maldições contra o inimigo, entende? De sete, se não pega uma, pega a outra. Minha mãe me ensinou que cada oração tem seu assunto. Se quer ganhar dinheiro, reza o salmo 64. Quando vai viajar, o 22. Para dor no peito, a oração dos quatro anjos. Quando tem tempestade, salmo 28. Os comerciantes, a oração de Salomão... E assim por diante.
João: E as parturientes, o salmo 126, mas ao contrário, porque senão, a criança sai com os pés primeiro.
Rufa: Ei, e de que vocês estão rindo?
Jesus: Nada, vó. É que a senhora fala das orações como se fossem receitas de culinária.
Mingo: Papai, me dá um pão!
Pedro: Mas, menino, outra vez? Você já não comeu?
Mingo: Mas estou com fome...
Pedro: Cale a boca, que estamos rezando.
Rufina: Vamos, vó Rufa, continue com a oração.
Rufa: Não, minha filha, continue você. Eu já perdi o fio da meada.
João: Então, você, Rufina, reze você agora.
Rufina: É que eu... eu não sei nenhuma oração de memória.
Jesus: Pois melhor assim, Rufina. Por favor, comece.
Rufina: Bom, deixa eu pensar... “Oh, Deus, oh Rei, oh Altíssimo e santíssimo Senhor, oh admirabilíssimo e poderosíssimo Juiz do alto céu...!”
Pedro: Se continuar subindo tão alto, Rufi, logo vai acabar caindo!
Rufina: Escute, Pedro, mais respeito, que estamos falando com Deus.
Jesus: Sim, Rufina, mas também não precisa exagerar... Deus deve gostar das coisas simples, não acha? Fale a Ele como a um amigo, como se estivesse cara a cara com Ele...
Rufa: Tenha cuidado para não se queimar, rapaz. Lembre que Deus é como o sol: não se pode olhar de frente. A gente não pode ver a cara de Deus porque os olhos fritam e... a gente morre!
Jesus: A senhora acredita nisso, vovó?
Rufa: Bom, ao menos assim dizem os livros santos...
Jesus: Eu não sei, mas para mim, quem escreveu isso não conhecia muito a Deus, porque... com Deus se pode ter confiança.
Rufina: Sim, mas também não se deve abusar da confiança. Afinal de contas, Deus é Deus.
Jesus: Afinal de contas, Deus é Pai. E com um pai, a confiança nunca é demais.
Mingo: Mamãe, estou fome, me dá um pedaço de pão...
Rufina: Cale-se, Mingo!... Não vê que estamos rezando?
João: Vamos, Pedro, reze você agora... que nesse passo, nós vamos ouvir os galos sentados aqui no chão... Hummm...
Pedro: Está bem... Vamos rezar então... Hã hum...
Mingo: Papai, estou com fome...!
Pedro: Já não falei pra calar a boca!
João: Vamos, Pedro, começe de uma vez...
Pedro: Espere, João... É que não sei por onde começar... Não consigo pensar em nada...
Mingo: Paizinho, me dá um pão, estou com fome!!
Pedro: Caramba, esses pirralhos não deixam a gente nem rezar! Tome o pão e cale-se de uma vez... Estes moleques acabam com a paciência de qualquer um!
Jesus: Pois veja, Pedro, me parece que Mingo sabe rezar melhor que todos nós.
Pedro: Como disse, Jesus?
Jesus: Que Mingo não se cansa. Que pede e pede e você e Rufina acabam dando o pão, mesmo que seja só para se livrar dele... O mesmo acontece com Deus. Se nós, que temos um coração pequeno, mais pequeno que este punho, damos o que temos de melhor a nossos filhos, como é que Deus não vai nos dar também o melhor a nós, Ele que tem um coração maior que o mar?
Pedro: Então...
Jesus: Então podemos rezar com confiança e dizer-lhe: Pai nosso, que estais no céu, santificado seja vosso nome, venha o teu reino...

Naquela noite, junto ao lago da Galiléia, Jesus nos ensinou a rezar...

Usar cama para dormir era, em Israel, um luxo. Só os ricos dispunham de uma espécie de camas, não exatamente como as atuais, que em algumas ocasiões serviam durante o dia como mesas para comer. As pessoas comuns dormiam sobre a terra, estendendo uma esteira ou colchões de palha e cobriam-se com seus mantos.

Em várias ocasiões o evangelho se refere ao costume de Jesus de rezar no silêncio da noite (Lc 5, 16). Jesus cumpria, com toda probabilidade, com as orações tradicionais em seu povo: Ao amanhecer, antes das refeições, na sinagoga aos sábados, etc. Mas não se limitava às “obrigações”. Falava como Deus de forma pessoal, à margem das leis litúrgicas, quando sentia essa necessidade, quando tinha um problema, quando devia tomar uma decisão. Não rezava por obrigação, mas porque vivia uma relação com Deus que o impelia a falar com ele como se fala com um pai.

Ao ensinar a seus discípulos o Pai-Nosso, Jesus também se afasta do costume. As orações que rezavam os israelitas eram recitadas em hebraico. O Pai-Nosso é, ao contrário, uma oração em aramaico, a língua em uso, o dialeto que o povo falava. Jesus chama a Deus de “Abba”, palavra da linguagem familiar em aramaico. Isto indica que Jesus rezava a Deus em sua língua materna. E quando ensina os seus amigos a orar, lhes entregou uma oração comunitária em aramaico. Com isto, Jesus tirou a oração do ambiente litúrgico e sagrado onde preferencialmente a havia colocado o povo de Israel, para situá-la no meio da vida, no ambiente familiar e cotidiano.

Na língua materna de Jesus o Pai-Nosso soa assim: “Abba, yitqaddás semaj, teté maljutáj...” Jesus ensina a seus amigos a invocar a Deus como “Abba”, como “papai”, “papaizinho”. Usa a mesma palavra com a qual os filhos chamavam a seu pai. “Abba” é, por sua origem, uma palavra típica dos primeiros balbucios infantis. Em aramaico, o bebê começa a falar dizendo “abba”, “imma” (papai, mamãe). Nos tempos de Jesus usavam esta palavra não só os filhos quando eram pequenos, mas também os maiores, como sinal de confiança em  seus pais.  Mas para os contemporâneos de Jesus era inconcebível dirigir-se a Deus com esta palavra tão comum. Era considerado um desrespeito. Não devemos, porém, considerar que para Jesus “Abba” era uma palavra vulgar. Ao contrário, era um termo muito importante. Quando diz a seus discípulos que não chamem ninguém de pai (Mt 23, 9), não se refere ao pai carnal, mas indica que não se deve abusar de uma palavra tão significativa. “Pai”, “Abba”, deve ficar reservado, fora do familiar, só para Deus.

O pai-nosso, como oração, mais que uma fórmula fixa, reúne umas palavras nas quais se resume uma atitude de vida. Das duas versões que dão os evangelhos (Mt 6, 9-13 e Lc 11, 2-4), a de Lucas é a mais antiga e a que conserva as palavras mais originais de Jesus. O pai-nosso é uma oração que ressalta a atitude de confiança total em Deus: Podemos chamar a Deus “Abba” porque temos a certeza de que somos seus filhos e que Ele nos ama. (Rm 8, 15; Gl 4,6).

No Pai-Nosso é central a idéia do perdão, porque toda a oração orienta o coração de quem reza para o futuro: para o Reino que vem, para a justiça de Deus no dia final do ajuste de contas, para o pão definitivo que saciará toda fome. Nesse momento, só Deus e só o perdão poderão salvar os homens. Toda a oração pede que chegue logo o reino de igualdade, de justiça, de liberdade, o Reino de Deus. Repetir uma e outra vez o Pai-Nosso sem se aprofundar nestas atitudes, falseia a mensagem de Jesus, tão oposta às orações rotineiras, ditas com a boca e não com o coração.

Jesus reza neste relato pela liberdade de João Batista. Na oração de Jesus, o pedir pelos outros foi muito importante. Assim consta várias vezes nos evangelhos (Lc 22, 31-32; Jo 14, 15-16). Embora não pareça à primeira vista, isto é muito significativo. Em Israel não era freqüente o costume de que uns pedissem pelos outros. Interceder pelos demais era típico do profeta, do homem que sentia, de forma especial, responsabilidade e preocupação pelos problemas de seu povo. Essa forma de oração de Jesus indica a consciência que estava amadurecendo nele e que o aproximava cada vez mais da herança dos profetas de Israel. Neste episódio, a forma de rezar de Rufa e Rufina, as vacilações de Pedro, expressam os hábitos de oração que tinham as pessoas simples de Israel. Em geral, Deus era visto na oração como um rei distante. Rezar era entendido como uma forma de render-lhe homenagens. E assim como diante dos  reis tinha-se que cumprir com todo um cerimonial, assim também na oração. Por isso se tendia a usar fórmulas fixas, solenes, estabelecidas por antigas tradições.

Naturalmente, a oração estava também ligada à idéia de mérito. Entendia-se que rezando se conseguiam favores de Deus. E se se recomendava a oração comunitária era, sobretudo, porque assim chegava com mais força ao céu. Quando Jesus busca na espontaneidade da criança, em sua simplicidade, em sua insistência confiada, o modelo de nossa oração, está revolucionando a idéia de oração que tinha Israel e as religiões dos demais povos.

(Mateus 6, 5-15; Lucas 11, 1-4)     

























48
OS TREZE



A festa da Páscoa já estava próxima. Como todos os anos, ao chegar a lua cheia do mês de Nisan, os filhos de Israel voltávam os olhos para Jerusalém, desejando celebrar dentro de seus muros a grande festa da libertação de nosso povo. Em todas as províncias do país se organizavam caravanas. Em todos os povoados se formavam grupos de peregrinos que se reuniam para viajar à cidade santa.

Jesus: Por que não vamos nesse ano todos juntos, companheiros?
Pedro: Apóio a idéia, Jesus. Quando saímos?
Jesus: Dentro de dois ou três dias estaria bem, não Pedro? João, André... o que vocês acham?
João: Não há mais o que dizer. Vamos com os olhos fechados.
Pedro: E você, Tiago...?
Tiago: Seremos muitos galileus na capital, para festa. Podemos armar alguma bagunça por llá, não é mesmo? Na Páscoa é quando as coisas ficam mais quentes!
Jesus: Então, já somos cinco.

O dia seguinte era dia de mercado, e Pedro foi ver a Filipe, o vendedor...

Felipe: Bem, bem, mas vocês vão a Jerusalém para quê?... Para meterem-se em confusões e fazer revolução... ou para rezar? Esclarece-me isso, para ver se eu entendi direito.
Pedro: Filipe, vamos a Jerusalém e isso basta. Vem ou não vem?
Felipe: Está bem, está bem, narigão. Vou com vocês. Vocês não podem me deixar de fora.
Pedro: Com você já somos seis!

E Filipe avisou seu amigo...

Felipe: Natanael, você tem de ir!
Natanael: Mas, Felipe, como vou deixar a oficina assim? Além disso, ainda tenho os calos da outra vez que fomos ao Jordão.
Felipe: Aquela foi uma grande viagem, Nata. E esta será ainda melhor. Decide-se homem. Se não vem, vai se arrepender pelo resto da sua vida.
Natanael: Está bem Filipe, eu vou. Mas fique sabendo que faço isso por Jerusalém e não por você.
Felipe: Então seremos sete!

Naqueles dias, passaram por Cafarnaum nossos amigos do movimento zelota, Judas, o de Kariot, e seu companheiro Simão... Também se animaram em viajar a Jerusalém para a festa... Com eles dois, já éramos nove...

João: Escute, André, me disseram que Tiago, o filho de Alfeu, e Tadeu, estavam pensando em ir à capital nestes dias. Por que não falamos para eles irem com a gente?

Com Tadeu e Tiago, os dois camponeses de Cafarnaum, já éramos onze...

Jesus: Ei, Mateus, você vai a Jerusalém para a festa?
Mateus: Sim, á claro que eu vou, Jesus. Por que está me perguntando isso?
Jesus: Com quem você vai, Mateus?
Mateus: Comigo.
Jesus: Vai sozinho, então?
Mateus: Me basto e me sobro.
Jesus: Por que não vem com a gente? Estamos pensando em ir em grupo para lá...
Mateus: Puah...! E quem é esse “grupo”?
Jesus: André, Pedro, os filhos de Zebedeu, Judas e Simão, Filipe... Venha você também...
Mateus: Esses seus amigos não me agradam nem um pouco. E eu os agrado menos ainda.
Jesus: Vamos partir amanhã, Mateus. Se decidir, esteja em frente à casa de Pedro e Rufina ao amanhecer. Estaremos esperando.
Mateus: Pois esperem sentados para não se cansar... Bah, você é o tipo mais doido  com quem eu já topei em toda a minha porca vida!

Tomé, o discípulo do profeta João, foi o último a saber da viagem. Seu companheiro Matias já tinha voltado a Jericó enquanto ele ficou mais uns dias em Cafarnaum...

Tomé: Eu tam-tam-também vou com vocês. Go-go-gostei muito da idéia.

Aquela primeira viagem que fizemos juntos a Jerusalém foi muito importante para todos nós. Mas que idéias tão diferentes nós tínhamos naquela época do que Jesus imaginava que era o Reino de Deus!  O sol ainda não despontara pelos montes de Bassan, mas nós já estávamos agitando toda a vizinhança. Íamos a Jerusalém celebrar a Páscoa. Do nosso bairro já tinham saído uns tantos grupos de peregrinos. E nos próximos dias viajariam muitos mais... Um depois do outro, com as sandálias bem amarradas para o longo caminho, fomos nos reunindo naquela madrugada na casa de Pedro e Rufina...

Pedro: Era só o que faltava, companheiros... Felipe!... Escute, ôh cabeção, você não ia para Jerusalém com a gente?
Felipe: Claro que sim, Pedro. Já estou pronto. Uff, se demorei um pouco a culpa é dele. Não tem graxa nas rodas.
Tiago: E para que você o trouxe? Não me diga que pensa em ir a Jerusalém com esse maldito carroção?
Felipe: Pois eu te digo que sim, ruivo. Eu sou como os caramujos que viajam com tudo o que é seu nas costas.
Pedro: Mas, Felipe, você está louco?
Felipe: Estou mais lúcido que vocês. Nestas viagens é quando mais se faz negócio, amigos. O povo leva suas economias a Jerusalém. Muito bem. Eu levo a mercadoria. Vocês rezando. Eu vendendo. Um pente aqui, um colar ali. Não estou fazendo mal a ninguém que eu saiba.
Tiago: Não, não e não Filipe. Tire isso da cabeça. Não vamos com você empurrando essa lata de lixo. Esse carroção fica.
Felipe: O carroção vai!
Tiago: O carroção fica!
Felipe: Se ele fica, eu fico também!
João: Jesus, diga alguma coisa a Filipe para ver se o convence. Você se entende bem com ele.

Então Jesus piscou um olho para que a gente o seguisse na conversa...

Jesus: Filipe, deixe o carroção de bugigangas. A pérola vale mais.
Felipe: Que pérola? De que pérola você está falando, Jesus?
Jesus: Shh! Uma pérola grande e fina, assim de grande. Você tem bom faro de comerciante. Interessa-lhe tomar parte no negócio, sim ou não?

Filipe coçou sua grande cabeça e nos olhou a todos com um ar de cumplicidade...

Felipe: Fale claro, moreno. Se tem de juntar dinheiro, eu vendo o carroção. Vendo até as sandálias se for preciso. Logo negociamos com ela e tiramos um bom lucro. Quanto pedem por essa pérola?
Jesus: Muito.
Felipe: E onde ela está? Em Jerusalém?
Jesus: Não Filipe. Está aqui, entre nós.
Felipe: Aqui?... Já estou entendendo, claro!... Contrabando. Você está com ela,  João?... E você Simão?... Está bem, está bem. Juro silêncio. Sete chaves na boca. Pronto. Podem confiar em mim. Mas me digam, como a conseguiram?
Jesus: Escute: Tadeu e Tiago estavam trabalhando em um campo. Araram o campo para semeá-lo. E de repente tropeçaram em um tesouro escondido na terra.
Felipe: Um tesouro? E o que fizeram com ele?
Jesus: Voltaram a escondê-lo. Foram ao dono do campo e o compraram. Venderam tudo o que tinham e compraram o campo. Assim, o tesouro ficava com eles.
Felipe: Mas, qual foi o tesouro que encontraram?
Jesus: Aquela pérola que eu te disse antes! Eles a descobriram.
Felipe: A pérola?... A gente encontra pérolas no mar, não na terra. Que trapalhada você está me armando, nazareno?
Jesus: Escute, Felipe: na realidade, a coisa começou no mar, como você disse. Pedro e André soltaram as barcas na água. E lançaram a rede. E a tiraram carregada de peixes. E quando estavam separando os peixes tiveram uma grande surpresa porque...
Felipe: ...Porque foi aí onde encontraram a pérola.
Jesus: Sim. E deixaram tudo, a rede, as barcas, os peixes. E ficaram com a pérola que valia mais!
Felipe: Mas então o tesouro do campo... Ah, claro, já estou entendendo. E então... espere um pouco. Não entendo nada. Cabeça grande, Jesus, mas pouco tutano. Me explique esse negócio.
Jesus: O negócio, Filipe, é que todos nós deixamos nossas coisas, nossos campos, nossas redes e nossas casas pela pérola. Deixe você também o seu carroção.
Felipe: Está bem, está bem. Mas pelo menos me mostre a pérola para...
Jesus: A pérola é o Reino de Deus, Filipe. Ande, deixe suas bugigangas e venha a Jerusalém com as mãos livres. Esqueçe por alguns dias de seus pentes e colares e celebre a Páscoa com a cabeça tranqüila.
Felipe: Então, nem contrabando nem carroção. Cambada de trambiqueiros, se continuarem me tirando o couro, acabarei mais careca que Natanael! Está bem, está bem, o deixarei com a dona Salomé até à volta.

Quando já estávamos indo, chegou Mateus. Embora, ainda fosse muito cedo, já estava meio bêbado...

Tiago: O que você perdeu por aqui, empesteado?
Jesus: Bem-vindo, Mateus... Sabia que viria.
João: Que viria para o quê?
Jesus: Mateus também irá com a gente. Não lhes tinha dito?
Tiago: Disse que este tipo vai com a gente ou eu ouvi mal?
Jesus: Não, Tiago, você ouviu bem. Eu disse a Mateus que fosse com a gente.
Tiago: Ao diabo, moreno! O que isso quer dizer?
Jesus: Quer dizer que a festa da Páscoa é para todos. E que as portas de Jerusalém, como as portas do Reino de Deus, se abrem para todos.

As palavras de Jesus e a presença de Mateus nos tiraram do sério. Tiago e eu estávamos a ponto de cobri-lo de porradas. Em meio à confusão, Simão e Judas nos levaram para o canto...

Judas: Cale-se, ruivo. Não grite mais. Você não entende?
Tiago: Entender o quê? Aqui não tem nada para entender. Jesus é um imbecil.
Judas: Os imbecis são vocês. Jesus está planejando as coisas muito bem.
João: O que você quer dizer com isso?
Judas: A fronteira da Galiléia está muito vigiada, João. Temem um levante popular. Todos nós já estamos fichados. E Jesus é o primeiro da lista. Indo com Mateus, a coisa muda. Ficamos com as costas quentes, entende? Mateus conhece  todos esses porcos que controlam a fronteira.
João: E você acha que Jesus o convidou por isso?
Judas: E por que seria então, diga-me? O sujeito é astuto. Pensa em tudo.
João: Mas,  e o Mateus, por que se presta a esse jogo?
Judas: Mateus é um bêbado, é só lhe dar  vinho e ele o segue como um carneiro.
Tiago: Tem razão, Iscariotes. Cada vez me convenço mais que com este de nazareno iremos longe. É o homem que precisamos! Venham, rapazes, vamos embora!
Tomé: Não, não, esperem um po-po-pouco.
João: O que foi agora, Tomé? Esqueceu algo?
Tomé: Não, não, não é isso. Vocês pe-pe-perceberam quantos somos?
Tiago: Sim, somos treze. Com este por..., quero dizer com este Mateus somos treze.
Tomé: Di-di-dizem que este número dá azar.
Pedro: Ah, não se preocupe com isso, Tomé. Quando cortarem a garganta de algum de nós, seremos doze, número redondo, como as tribos de Israel. Vamos companheiros, andando, Jerusalém nos espera!

Éramos treze. Pedro-pedrado, ia na frente, com a cara curtida por todos os sóis do lago da Galiléia e o sorriso largo de sempre. A seu lado, André, magricela, o mais alto de todos,  e o mais calado também. Meu irmão Tiago e eu, que sonhávamos com Jerusalém como um campo de batalha em que todos os romanos seriam destruídos pela força de nossos punhos. Felipe, o vendedor,  levava na cintura a corneta com que anunciava suas mercadorias e, de vez em quando, a fazia soar.  Não quis se separar dela. A seu lado, como sempre, Natanael. O sol da manhã reluzia em sua calva. Caminhava devagar, cansado já, antes de começar a marcha. Tomé, o gago, olhava de um lado para o outro com olhos curiosos. Não fazia outra coisa senão falar, com sua meia língua, do profeta João, seu mestre. Mateus, o cobrador de impostos, com os olhos vermelhos e o passo vacilante por causa do álcool. Tiago e Tadeu, os camponeses de Cafarnaum, caminhavam juntos. Simão, aquele fortão cheio de sardas, ia com Judas, o de Kariot, que levava no pescoço o seu lenço amarelo, presente de um neto dos Macabeus. Éramos doze. Treze com Jesus, o de Nazaré, o Homem que nos arrastou para aquela aventura de ir pelos caminhos de nosso povo anunciando a chegada da justiça de Deus.



O número doze tinha um significado especial no antigo oriente. Certamente, pelo fato do ano estar dividido em doze meses. Em Israel, era considerado um número importante, que designava a totalidade. Nele se sintetizava, com um só número, todo o povo de Deus. E assim, doze foram os filhos de Jacó, os patriarcas que deram o nome às doze tribos que povoaram a Terra Prometida. Uma tradição muito antiga dentro dos evangelhos lembra, em várias ocasiões, que Jesus elegeu doze discípulos, como núcleo entre os muitos que o seguiram. Estes doze transmitiram depois da Páscoa sua mensagem e levaram adiante sua causa. Quando nos textos do Novo Testamento se fala “dos doze”, se está fazendo referência a doze pessoas individuais – dos quais temos a lista de nomes – e, ao mesmo tempo, “os doze” designa uma representação da nova comunidade, herdeira do povo das doze tribos. O número doze é particularmente preferido no livro do Apocalipse; aparece nas medidas da nova Jerusalém, no número dos eleitos: 144.000 (12 X 12 X 1.000 – totalidade de totalidades), etc.

Este estereótipo numérico, “os doze”, se transforma no relato: “os treze”. É uma forma de indicar a integração de Jesus no grupo, em que era, naturalmente, o líder, mas sem deixar de ser mais um. Jesus não veio “de fora”, enviado celestial desconectado de uma história e de um povo. Surgiu de um povo, de uma classe social, e trabalhou junto a seus irmãos e compatriotas, ombro a ombro, para criar uma comunidade onde Deus fosse o único Senhor e todos fossem iguais.

Três vezes ao ano, por ocasião das festas da Páscoa, Pentecostes e das Tendas, os israelitas tinham o costume de viajar a Jerusalém. Também viajavam para capital multidões de estrangeiros dos países vizinhos. A festa da Páscoa era a que atraia maior número de peregrinos a cada ano. Ocorria na primavera, e isto facilitava a viagem porque, em fevereiro ou março, terminava a época das chuvas e os caminhos estavam mais transitáveis. Buscar companhia para o caminho fazia parte essencial dos preparativos da viagem. Os bandidos eram muitos naquele tempo e ninguém se atrevia a fazer uma viagem desse tipo sozinho. Por isso formavam-se sempre grandes caravanas para as festas.

Neste episódio, a convocatória para ir a Jerusalém para celebrar a Páscoa vai passando de boca em boca e assim se reúnem os doze com Jesus. Uns e outros se animam, se dão razões. Jesus os chama e eles também se convidam entre si. Deus nos chamou por Jesus, o Homem Novo, para que sejamos também homens novos, mulheres e homens capazes de dar a vida pelos demais, artesãos da paz e da justiça. Mas este chamado de Deus, esta vocação, não nos vem nunca do alto, como se nos soprassem palavras de convocação ao ouvido ou algo assim. Deus nos chama através da comunidade. A comunidade cristã, na qual Jesus vive, é a que nos convoca, a que nos orienta e nos acolhe, a que nos perdoa, a que nos ajuda a superar medos, limitações, a que fortalece nossa esperança. À terra nova de Jerusalém só se vai em comunidade.

O grupo de Jesus não foi um grupo homogêneo, de uma só cor. Vindo de todas as classes populares, a história e as intenções de cada um deles tinham de ser diferentes e, com certeza, em algumas ocasiões, opostas. Jesus aglutinava a todos, como acontece quando um líder surgido da própria comunidade é capaz de conseguir a unidade na diversidade e fazer avançar o grupo. Na comunidade cristã nem todos são fabricados em série nem todos também são chamados a prestar os mesmos serviços. A variedade é um valor que deve ser cultivado. O mesmo vale para sociedade: no dia em que reine a justiça e todos tenham as mesmas oportunidades para desenvolver-se como pessoas realmente livres, contemplaremos a beleza que existe na variedade.

Jesus convence Felipe para a viagem contando-lhe duas parábolas: a da pérola e a do tesouro escondido no campo (Mt 13, 44-46). Os tesouros escondidos são um dos temas prediletos dos contos orientais. Naqueles tempos tinham, além disso, uma base histórica. As inumeráveis guerras que sacudiram a Palestina ao longo dos séculos fizeram muita gente, no momento da fuga, deixar escondido na terra o que de mais valioso que possuía, até um possível retorno que nem sempre acontecia. Por outro lado, as pérolas foram um artigo muito cobiçado nos tempos antigos. Tinham um alto valor simbólico, especialmente de fecundidade. Eram o fruto precioso das águas, cresciam ocultas e se desenvolviam como ocorre com o embrião humano... Os mergulhadores as pescavam no Mar Vermelho, no Golfo Pérsico e no Oceano Índico e eram muito usadas em colares. Com estas parábolas, Jesus busca surpreender e ressaltar precisamente o valor dessa atitude vital: a surpresa. Se surpreende quem de repente e sem esperá-lo encontra um tesouro ou quem acha uma pérola de imenso valor. Se surpreende e se alegra. Jesus quer dizer que quando um homem encontra o sentido do Reino de Deus, a grande alegria deste achado o arrasta, o atinge no mais profundo e o brilho deste “tesouro” faz com que tudo o mais perca importância. Nenhum preço parece demasiado alto para conservar o que se encontrou. O amor pelo Reino de Deus é um amor apaixonado, entusiasta. Felipe deixa seu carroção e se esquece de seu negócio. Outros deixarão sua apatia e se porão a trabalhar por seus irmãos. Outros se despojarão de seu egoísmo e aprenderão a construir a comunidade. Outros esquecerão até sua própria vida e a arriscarão continuamente pela causa da justiça. E é sinal do Reino que essa inversão de valores se faça sem amargura, com uma imensa alegria.

(Mateus 10, 1-4; Marcos 3, 13-19; Lucas 6, 12-16)       


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